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A CPI da língua portuguesa

 

Em recente noticiário da Folha, foi registrado o recorde de reprovação na seccional paulista da OAB. Dentre os 20.237 candidatos (bacharéis em direito), o índice de reprovação foi de 92,8% -apenas 1.450 conseguiram aprovação. O dr. Luiz Flávio Borges D'Urso, presidente da OAB/SP, acha que "há pessoas que chegam à prova e não sabem conjugar verbos ou colocar as palavras no plural", dizendo que "é preciso reagir". Concordamos inteiramente.


Muitos comunicadores, até renomados, com a desculpa de que é a modernidade, erram à vontade, como acontece com freqüência na CPI dos Correios. Pensamos, até, para ficar na moda, que se poderia criar a CPI da Língua Portuguesa. Os erros mais escandalosos seriam punidos com multas e até prisões com leituras obrigatórias, como um dia pensou o deputado Aldo Rebelo. Isso sem esquecer as freqüentes derrapadas nas concordâncias verbal, nominal e pronominal.


Fui convidado pela equipe do "Fantástico", da TV Globo, para acompanhar um grupo de estudantes de 14/15 anos às voltas com uma novidade cibernética: linguagem icq, sigla da expressão inglesa "I seek you". O experimento teve lugar no colégio Anglo-Americano da Barra da Tijuca (RJ). Os jovens, meninos e meninas, eram sete, cada um pilotando o seu computador.


Eles se entendem (!) numa linguagem estranha. E me explicaram: "A gente escreve como se pronuncia. Por exemplo, o não é "naum" e o nosso querido João virou "Joaumm'". Virei para a direita e li no computador a menina perguntar "si stou tranquilu". É claro que dei a resposta negativa. Não estou tranqüilo porque a coisa é esquisita.


Estabeleci um diálogo curioso com os jovens. Eles se entendem entre si e podem também se comunicar com outros integrantes do sistema conectados no icq. Todos escrevendo a linguagem inovadora e discutível: "Vc goxta di lr?". As vogais sofrem, sobretudo o "e", que pouco aparece, como pude perceber.


Então, perguntei a uma bonita menina de óculos: "Os seus pais aprovam esse uso do computador em casa?". Ela confessou que não. O pai, outro dia, aborrecido, entrou no sistema e corrigiu tudo. Ficou uma fera com o que ele qualificou como "desrespeito à língua de Camões".


Insisti em saber da Júlia se ela gosta de ler. Afirmou peremptoriamente que não: "Os livros são muito chatos". Perguntei se a escolha não tem sido infeliz, ela diz que não. E confessa que o icq é um barato, às vezes fica horas conversando com colegas, amigos e até professores. Perde-se no horário. Em determinada ocasião, deu-se conta, ficou até depois da meia-noite nesse exercício de comunicação. Foi dormir feliz da vida.


O "eu procuro você" nasceu no Estado de Israel, provavelmente por motivos locais. Nós adotamos e, se for como brincadeira, tudo bem. Mas, trocar por isso o livro, que é notoriamente um instrumento insubstituível de cultura, francamente, nem pensar.


Discuti com os alunos, na frente das câmeras, o que é linguagem popular e o que é norma culta. O João sabia direitinho a diferença e deu uma explicação convincente: "Se um dia depender de concurso público para exercer uma profissão, precisarei utilizar a norma culta". Se os jovens tomarem consciência dessa necessidade, separando o joio do trigo, o icq valerá como curiosidade. Mas, se for permanente e substitutivo da nossa língua inculta e bela, estaremos perdidos.


Não se pode defender a existência de uma separação lingüística, dividindo o falar do rico e o do pobre. Temos uma realidade plurilingüística, considerando-se basicamente que a norma culta deve ser respeitada sobretudo nos códigos escritos.


Está em funcionamento em Brasília o Conselho de Comunicação Social (CCS) do Congresso Nacional, que hoje presido com muita honra. A ele incumbe zelar, como órgão auxiliar do Senado, pelas questões normativas que se referem à radiodifusão e às telecomunicações brasileiras. O nosso pensamento é levar o CCS a valorizar a língua portuguesa. Por que, por exemplo, não estimular a realização de programas de rádio e TV que abordem tal problema, de suma gravidade para a nossa cultura?


Se vem aí a nova Lei de Comunicação Eletrônica de Massa, incluindo outras mídias, devemos estar atentos ao que se chama de "cadeia de valor da comunicação social". A entrada de grandes grupos internacionais na produção de conteúdos de informação e entretenimento suscita uma discussão de relevo indiscutível.


O povo brasileiro, em geral, faz questão de acertar. O que lhe falta é o acesso ao conhecimento. O rádio e a TV, às vezes, dão contribuições negativas quando repórteres e atores falam errado, esquecendo as concordâncias nominal e verbal. E a questão da regência verbal? Continua-se a dizer em alto e bom som nas novelas: "Eu lhe amo". Regionalismos à parte, consideramos inaceitável.




Folha de São Paulo (São Paulo) 03/08/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 03/08/2005