Estes assuntos de corrupção não são objeto de unanimidade, em Itaparica. Na verdade, receio ter de admitir que a corrente ideológica liderada pelos irmãos Toninho e Jorginho Leso - assim chamados, não apenas porque filhos do finado Roque Leso, mas por serem, no geral, ainda mais lesos que o pai - vem crescendo em importância e hoje pode ser tida como uma força política de peso. No entendimento dos Lesos, como já tive oportunidade de explicar aqui, o dinheiro, por ser público, não tem dono e, portanto, todos os que podem devem botar a mão nele, está lá para isso mesmo. E quem não pode meter a mão trate de dar um jeito de poder, é assim que se sobe na vida.
Para resumir a posição dos Lesos, eles nutrem grande admiração pelos corruptos e não veem xingamento nisso, antes o reconhecimento do valor de quem se deu bem na vida e, quando passa pela ilha, é em cada lanchona que só se vê na televisão, tomando seus belos uísques com água de coco, abocanhando as filhas dos outros, viajando para o mundo todo sem tirar um tostão do bolso nem para comer, indo para lá e para cá de carro oficial, não respeitando fila nem repartição, não pagando nem gasolina nem hospital, recebendo casa de graça, aposentadoria com oito anos de serviço, 15 ou 16 salários, sem patrão, sem horário, com assessor até para coçar as costas - é possível não admirar um homem desses?
Claro que não é possível, um homem desses venceu na vida e quem fala mal são os invejosos, que não conseguiram chegar lá. Na ilha cresce o número dos que já não acham os Lesos tão lesos assim e, sem guardar muito segredo, procuram seguir os passos que eles consideram acertados. Por exemplo, orientar logo os meninos para seguir a carreira de corrupto, pois, no dizer já imortal de Jorginho Leso, "quem não tem essa ambição fracassa na criação". Quanto às meninas, apesar dos grandes progressos feitos pelo sexo feminino, podem não querer nada com estudo ou trabalho, mas devem procurar um bom corrupto para marido, é futuro garantido.
Contudo, faltando aos Lesos prestígio intelectual, tradição na vida política e talentos de oratória, dificilmente sua posição prosperaria, se não fosse o decidido apoio de lideranças reconhecidamente sólidas, entre as quais, como já suspeitavam os frequentadores mais assíduos do Bar de Espanha, a do próprio Zecamunista, que esteve ausente algum tempo e retornou à ilha na semana passada. Ele já sabia da opinião dos Lesos, mas nunca se manifestara contra ela, como seria de esperar-se. Sua volta era aguardada com ansiedade.
Que novidades se escutariam? As perguntas quase se estampavam no ar, enquanto ele, com seu chapéu do Exército Vermelho e o ar sisudo, passava pela porta da igreja de São Lourenço, tirava o chapéu para depois repô-lo rapidamente e se dirigia ao bar. Ninguém achou incongruente um ateu militante, comunista até no nome, tirar o chapéu para saudar o santo, pois todos se lembram de sua resposta a quem lhe tirou pergunta: "A ideologia não se sobrepõe à boa educação, meu caro asno." Inesperado era Jacob Branco ao lado dele, com o sobrolho franzido e as feições contraídas. Jacob só faz essa cara quando o discurso está baixando na ideia dele e vai disparar a qualquer momento.
Instalados os dois, pedidas as cervejas, Pedro de Piroca (é Pedro de Piroca mesmo, filho do finado Piroca, irmão de Raimundo de Piroca, de Zé de Piroca, de Regina e de Raquel, quem quiser pode checar; ele é, aliás, excelente mecânico), que gosta de ouvir um discurso, provocou Zecamunista, informando-lhe que Toninho Leso estava revoltado porque ia haver julgamento do mensalão, uma injustiça para quem trabalhou para conseguir suas melhoras.
- Eu estou de acordo! - explodiu Zecamunista. - Fui o primeiro a expor aqui a tese de democratização da corrupção. Chega de ladroagem só para as elites, chega de exclusão! Já tenho até o nosso lema em latim: Omnes rapere volunt, todos querem furtar, abaixo os privilégios! Toninho Leso tem toda a razão. Agora que já roubaram, não querem deixar mais ninguém roubar? Se forem condenados, isso abre um precedente péssimo para os corruptos do futuro, é um desestímulo cruel e um golpe na economia do País, que pode ser fatal. Quantos sonhos desfeitos, quantos projetos desmoronados, quantas vidas desbaratadas não virão? Quem estiver - atenção, alienados, idealistas vulgares! - querendo melhorar de vida não olhe para os lados, porque só vai ver otário. Olhe para cima! Quem está se dando bem é quem está em cima! E não prestem atenção no que eles dizem, prestem atenção no que eles fazem, é muito diferente! A corrupção é nossa, omnes rapere volunt!
Os aplausos se prolongar-se-iam, se Jacob não tivesse dado a sacudida de pescoço que prenuncia a chegada do discurso. Tinha a subida ventura de anunciar que já estavam sendo traçados planos para que a ilha não ficasse fora da prosperidade a ser trazida pelo Projeto Mão Grande, nome cogitado para a iniciativa que oficializará de vez a corrupção e acabará com a hipocrisia que nos faz pecadores. De fonte limpa, informava que fora criada na ilha a grife Camaleão, destinada a fabricar e vender trajes adequados à nova era. Cuecas capazes de transportar com discrição mais de US$ 100 mil em notas de 100. Calçolas e calçolões, a depender da portadora, para mais de 500 mil, capacidade do modelo Canguru XL. Todo o Brasil usaria as roupas íntimas Camaleão, produto de uma ilha agora na rota irreversível do progresso.
- Todo mundo faturando, sua propina é nossa adrenalina! - finalizou Jacob, arrepanhando no ar uma bolada invisível. - Independência sem morte!
- Nessa parte capitalista eu não me envolvo - disse Zeca. - Vou dirigir o departamento das calçolas, mas somente na área técnica.
O Globo, 8/7/2012