Espasmos de amor, de frustração, de desejos frenados, de toques, de fruição, de medo. Os alunos ou se retraíam ou se amavam com olhares. O coronavírus ia fechar a UFRJ e a Academia no dia seguinte, sexta-feira. A gente lia Morte em Veneza, aproveitando o gancho da pandemia decretada pela Organização Mundial da Saúde. A atração indomável do escritor personagem Gustav von Aschenbach, com os seus 50 anos, pelo angelical menino Tadzio, de 14, em Veneza, vai jogar o romancista de sucesso na Alemanha - bem sentadinho na poltrona burguesa da rica Munique - na metáfora do caos veneziano, luxúria e pecado debruçados nos saraus e nos braços urbanos e fétidos do Adriático esquadrinhando a ex-capital dos dodges. A ordem e a disciplina na forma da arte bem-comportada do ficcionista estrebucha diante de um amor pecaminoso, mas platônico, incentivado pelo olhar de cobiça do Tadzio cúmplice no jogo entre o sagrado e o profano. Gustav von Aschenbach, o escritor racional e formal, cuja ficção é aplaudida por um público fiel a enxergar naqueles traços a solidez do modelo sócio- econômico em vigor, leva um tranco.
Do fundo da sala, um jovem robusto com máscara contra o coronavírus e dois chifres estilo viking na cabeça, uma espada de plástico cinza amarrada à cintura, pediu a palavra. Hesitei. Solicitaria que retirasse os chifres ? Se sim, porque não o fiz antes? Deixei então que se pronunciasse. Li, afirmou ele, e vi que nada acontece fisicamente entre o escritor e o jovenzinho. Significa que o romancista reverencia no jovem o ideal de beleza da arte. O lado homossexual não tem a menor importância, continuou ele ajeitando a fita que segurava o seu aparato viking. Falou da relação conflituosa entre Apolo e Dionísio, explicou que leu num texto por aí e que concordava, leu uma frase anotada no celular sobre “ princípio do prazer para evitar a dor”.
Retruquei com delicadeza, estranhando o “menor importância da homossexualidade”, e o lado pudico da sua intervenção. Não falei de preconceito. A ruptura do belo via comportamento pecaminoso é que, entendo, deve ser ressaltado. Daquele pecado – o escritor sofre tremendamente entre o desejo e a razão conservadora – nascerá uma nova estética e um novo modelo social? Essa me parece a revolução. Gustav não revela para a família de Tadzio, todos de férias num hotel de luxo e de lá pouco saindo, a mortífera epidemia de cólera que se abate aos poucos sobre Veneza. Acumplicia-se aos interesses econômicos dos capitais investidos no turismo - que escondem dos clientes o terrível mal trazido do oriente -, mas por outra razão: deleitar-se com a visão edênica do efebo até ser possuído pela moléstia e a consequente morte. A arte literária ganha um outro contorno e a estética modernista ocupa, vitoriosa, cabeças e mentes naquela primeira década do século XX. O movimento sindical também se organiza. O viking pareceu concordar. Me disseram depois que a namorada do Asterix trocou-o por uma menina loirinha recém transferida da UFF para a UFRJ e vivem aos beijos pelo Campus do Fundão. E – pasmem todos, só soube no dia seguinte - , foi justamente ela, também aluna da mesma turma, que perguntou se o coronavírus não vai mudar alguns paradigmas sociais e artísticos. Se a questão de classe social não conhecerá outro combate. Se os preconceitos serão os mesmos ou se haverá novos. Como serão recebidos os imigrantes e os excluídos contaminados pelo vírus nos hospitais do Brasil e do mundo? Serão tratados como todo mundo? O assunto foi se adensando e interrompemos a aula no horário, 12:50h.