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Coronavírus, sentimento amoroso, estética, preconceitos

 

Espasmos de amor, de frustração, de desejos frenados, de toques, de fruição, de medo. Os alunos ou se retraíam ou se amavam com olhares. O coronavírus ia fechar a UFRJ no dia seguinte, sexta-feira. A gente lia Morte em Veneza, de Thomas Mann, aproveitando o gancho da pandemia decretada pela Organização Mundial da Saúde. A atração indomável do escritor personagem Gustav von Aschenbach, com os seus 50 anos, pelo angelical menino Tadzio, de 14, em Veneza, vai jogar o romancista de sucesso na Alemanha - bem sentadinho na poltrona burguesa da rica Muniq ue - na metáfora do caos veneziano, luxúria e pecado debruçados nos saraus e nos braços urbanos e fétidos do Adriático esquadrinhando a ex-capital dos dodges. A ordem e a disciplina na forma da arte bem-comportada do ficcionista estrebucha diante de um amor pecaminoso, mas platônico, incentivado pelo olhar de cobiça do Tadzio cúmplice no jogo entre o sagrado e o profano. Gustav von Aschenbach, o escritor racional e formal, cuja ficção é aplaudida por um público fiel a enxergar naqueles traços a solidez do modelo sócio- econômico em vigor, leva um tranco. Pensei nas análises de Bruno Cazauran.

Do fundo da sala, um jovem robusto e espalhafatoso com máscara contra o coronavírus e dois chifres estilo viking na cabeça, uma espada de plástico cinza amarrada à cintura, pediu a palavra. Hesitei. Solicitaria que retirasse os chifres ? Se sim, porque não o fiz antes? Deixei então que se pronunciasse.

Li, afirmou ele, e vi que nada acontece fisicamente entre o escritor e o jovenzinho. Significa que o romancista reverencia no jovem o ideal de beleza da arte. O lado homossexual não tem a menor importância, continuou ele ajeitando a fita que segurava o seu aparato viking. Falou da relação conflituosa entre Apolo e Dionísio, explicou que leu isso num texto por aí e que concordava, leu uma frase anotada no celular sobre “princípio do prazer para evitar a dor” e repetiu mais alguns clichês.

Retruquei com delicadeza, estranhando o “menor importância da homossexualidade”, e o lado pudico da sua intervenção. Não falei de preconceito. A ruptura do belo via comportamento pecaminoso é que, entendo, deve ser ressaltado.. Daquele pecado – o escritor sofre tremendamente entre o desejo e a razão conservadora – nascerá uma nova estética e um novo modelo social? Essa me parece a revolução. Gustav não revela para a família de Tadzio, todos de férias num hotel de luxo e de lá pouco saindo, a mortífera epidemia de cólera que se abate aos poucos sobre Veneza. Acumplicia-se aos interesses econômicos dos capitais investidos no turismo - que escondem dos clientes o terrível mal trazido do Oriente - , mas por outra razão: deleitar-se com a visão edênica do efebo até ser possuído pela moléstia e a consequente morte.

A arte literária ganha um outro contorno e a estética modernista ocupa, vitoriosa, cabeças e mentes naquela primeira década do século XX. O movimento sindical também se organiza. O viking pareceu concordar. Me disseram depois que a namorada do Asterix trocou-o por uma menina loirinha recém transferida da UFF para a UFRJ e vivem aos beijos pelo Campus do Fundão. E – pasmem todos, só soube no dia seguinte - , foi justamente ela, também aluna da mesma turma, que perguntou se o coronavírus não vai mudar alguns paradigmas sociais e artísticos. Se a questão de classe social não conhecerá outro combate. Se os preconceitos serão os mesmos ou se haverá novos.

Como serão recebidos os imigrantes contaminados pelo vírus nos hospitais do mundo? Serão tratados como os nacionais? E concluiu com a afirmação que faz avançar o barco e a interpretação: em relação ao amor, a gente ama uma pessoa, só isso, pouco importa o sexo, professor. Gustav e Tadzio devem ser analisados assim. O assunto foi se adensando e interrompemos a aula no horário, 12:50 h.

Facebook/ Redes Sociais, 03/07/2023