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Confiteor

 

Sou do tempo - ai de mim - em que a missa era em latim e nós, meninos, dizíamos ''''confiteor'''', antes de tremulamente confessarmos ao flamívomo (dicionário, dicionário; quem leu Euclides da Cunha deve saber) padre Brito, o qual nos lembrava sem cessar como eram espaçosas as portas do inferno e ardilosas as mil trapaças enredadas pelo Inimigo, que havíamos espiado a vizinha tomando banho. Então achei por bem confessar-lhes alguns pecados meus, involuntários embora, bem-intencionados certamente, mas isso - ai de mim outra vez, porque se esperam grandes lamentações da parte dos penitentes - não impede assistir razão ao bom São Bernardo, que, segundo me ensinaram, foi quem pela primeira vez observou que o caminho do inferno é pavimentado de boas intenções.


O pior cego é o que não quer ver, outra cruel verdade. Não era propriamente que eu não quisesse ver, era talvez ignorância, quiçá burrice, possivelmente má vontade, despeito, inveja e outros sentimentos malfazejos, que muitas vezes nos danificam a visão e o bom juízo. Ou pode ser até que, simultaneamente, as artimanhas do Inimigo também tivessem me assolado, de tal forma que talvez consiga alegar, em minha frágil defesa, que pequei, sim, mas pequei por não me haver socorrido da Providência.


Eu não tinha percebido nada antes de a palavra dele (esse ''''dele'''' aí se refere ao presidente Lula; não escrevi d''''Ele ainda porque, por enquanto, é privilégio divino) me haver finalmente iluminado. Falava ele a seus discípulos e disse que choque de gestão não era enxugar a máquina pública, era contratar mais funcionários. Ou qualquer coisa assim, pois as palavras exatas não vêm ao caso. O que vem ao caso é que, subitamente, notei que antes estava vendo tudo ao contrário, que não tinha até hoje entendido nada. A revolução embutida no que está acontecendo é talvez complexa demais, excessivamente multifacetada para ser vista em espaço no caso tão pequeno quanto este.


Ainda maravilhado, os olhos faiscantes como os de um garimpeiro que vadeia um córrego e vislumbra uma pepita a cada passo, não ouso hierarquizar as nossas bênçãos, a começar por ele (quase escrevo ''''E'''', acho que os dedos já estão querendo se acostumar), no ver dele mesmo um presente do Criador à humanidade, no caso os abençoados brasileiros. E é verdade, não dá para arrolar aqui nem um pedacinho do que ele já fez de mais e melhor na história do mundo, do hemisfério, do continente e do Brasil. E a sabedoria política dele? Mais polivalente não pode haver. Em matéria de posição, só há uma de que ele não goste. Para seu oportunismo (perdão, senso de oportunidade), pode vir de centro, pode vir de esquerda, pode vir de direita, que ele traça, nem quer saber o que são, nem vê utilidade nesses conceitos. Ele - e faz ele muito bem - só não aceita ficar por baixo, o que já experimentou e não gostou, tanto assim que pouca ousadia dava à Câmara, quando era deputado.


E o Estado que ele está fundando, alguém já parou para pensar nisso? Se ele fosse europeu, já teria ganho uns dois Nobéis da Paz (para não falar no de Medicina, quando elevou a medicina brasileira à condição de quase perfeita). Os filólogos estão conclamados a batizar - tremei, radicais greco-latinos! abalai-vos, verbos africanos e nativos! - este nosso novo modelo de Estado. Claro que Estado Teta-Esmoler não fica bem, tem que ser uma coisa bem mais chique, pois o mundo nunca mais será o mesmo.


Vejam o lado Teta, por exemplo. Para começar, quiseram curtir com a cara dele porque prometeu criar milhões de empregos e não criou. E aí, quando ele faz sua parte nesse esforço, a gente reclama? Já disse Washington Luís que ''''governar é abrir estradas''''. Insistia JK em seus cinqüenta anos em cinco. E agora, proclama Lula, governar é nomear. Que simplicidade admirável me escapava, vejam como um diplomazinho escolar pode estragar a visão do sujeito. Claro, até agora, na história deste país, ninguém havia equacionado uma solução tão condizente com a nossa identidade. Aguardo ansiosamente um convite para ser mais um mispone do governo (''''mispone'''' é o equivalente ministerial de ''''aspone'''', nos quais o governo abunda; meus princípios não permitem que eu seja mais explícito aqui), pois gostaria de ficar do lado Teta, não sei por quê. Cada um ministro por um dia, é um país de todos.


Mas, se não der, o lado Esmoler se torna cada vez mais atraente. Não há limites para a inovação. O preconceito da Zelite se ouvirá, mas (se quiserem pagar para ver, é só pedirem para ele botar gente na rua ou fazerem um plebiscito aí, quero ver quem é macho para fazer um plebiscito aí) o idoso pobre também tem direito e o Bolsa Viagra beneficiará incontáveis vovôs e vovós por esse Brasil afora, é disso que o povo gosta, o povo gosta é de alegria simples. E o Bolsa Zona, por que não? Na Holanda tem, por que não pode ter aqui? E a igualdade social, com a proibição de se sair com um livro na mão, para não humilhar os analfabetos? Podemos jamais acabar com o analfabetismo, mas seremos pioneiros dos direitos dos analfabetos. E baixar o Estatuto do Gago e do Fanho? E ser o primeiro a reconhecer o Estado Independente Ianomâmi, que todo mundo sabe onde e de quem vai ser?


Não há mais espaço para devanear, é uma pena. Ele, porém, estará sempre aí, para felicidade nossa. Mas como, haverá um terceiro mandato? Bem, ele diz que não e a Constituição também, mas sabem como são essas coisas. Ele muda muito de idéia e deu no jornal que respondeu ''''quem sabe?'''', ao lhe fazerem ver, numa reunião, que não estaria no poder depois de 2010. Tranqüilizemo-nos. De minha parte, finalmente vi a luz. Espero que um apagão - essa coisa de comunistas ou fascistas, conforme - não venha atrapalhar tudo.


O Globo (RJ) 7/10/2007