Carlos Lacerda , em famoso discurso, ao tempo em que os discursos ainda tinham nomes, com o título de "Corrida dos Touros Embolados", falou sobre a arte do debate no Parlamento. Dizia ele que, em tempos de paixão e crise, todos eram possuídos do desejo de brilhar e, então, passavam ao exercício de fingir. Depois de esgotar o tema, virou-se para os adversários que o atacavam com rudeza e afirmou: "Aqui até o ódio é fingido".
Nós somos a primeira geração da humanidade que assiste na hora e na televisão a tudo o que acontece. Esse instrumento mostra a alma dos falantes, não somente seus gestos. É, sem dúvida, um tempo transformado. Nossos antepassados sabiam por ouvir dizer e ler, nós sabemos por ouvir e ver. O conde Afonso Celso, filho de Ouro Preto, um dos mais brilhantes escritores do nosso país, passou pelo Parlamento e deixou, num pequeno livro, "Oito Anos de Parlamento", algumas impressões do que era viver no Congresso. Descreve tudo o que viu, analisa os homens a que assistiu falar, Rui Barbosa, Andrade Figueira, Joaquim Nabuco, Gomes de Castro (meu conterrâneo), e finaliza comentando um tipo de parlamentar que ele chama "da véspera". "Finge a verdade, representa a perturbação, engana o público, a Câmara, o estenógrafo e a si próprio."
E continua, cáustico: "O político que está sempre a falar de sua probidade faz desconfiar que é tratante; da sua vigilância, que é preguiçoso; da sua gratidão, que é ingrato; da sua coragem, que é covarde". No final, com sua experiência vivida, ensinava: "Tenha sempre diante dos olhos a grande e veneranda imagem do povo".
Falo dessas coisas para alertar sobre o perigo dos espetáculos nas CPIs. É necessário transmitir e dar para a população a certeza de que realmente se investiga e se deseja punir os corruptos, e não brilhar à custa deles.
O Parlamento, com todas as suas mazelas e defeitos, é a maior de todas as instituições políticas criadas pela humanidade. Ele é o coração do povo. Ali pode-se questionar tudo, até o próprio Parlamento. Não é por acaso que em frente a ele se realizam os protestos, as demandas, os apelos, as pressões. Por isso mesmo diz-se que é melhor o pior Parlamento do que Parlamento nenhum. Não devemos julgá-lo pela realização imperfeita dos seus valores. Devemos -e essa será tarefa permanente- expurgá-lo dos que são indignos de a ele pertencer. Ele é a própria democracia.
O Parlamento tem a finalidade de fiscalizar e de controlar o Executivo e tudo. Para isso, tem os discursos -o mais simples de todos os seus instrumentos-, os decretos legislativos, as comissões permanentes, as resoluções, o acompanhamento, os pedidos de informação e as comissões de inquérito. Para que tenham efeito, afaste-se a política menor do seu seio, a vaidade, o fingimento, a paixão. Vamos apurar os fatos, buscar a verdade, punir, adotar procedimentos para que os delitos não se repitam. Não se finja o ódio, porque ele muitas vezes é aquilo que dizia o provérbio judeu: "A inveja alimenta o ódio". E lembre-se o sentimento de Bertrand Russel e de Mencken ("The Vintage", 1989): "Mostre-me um puritano e eu lhe mostrarei um filho daquela".
A ética e a moral não combinam com o teatro nem com o fingimento.
Di Cavalcanti disse-me, uma vez, sobre determinado político: "Não pode ir a enterro, porque quer ser o defunto para ser alvo das homenagens".
É isso aí: complexo de Cachoeira.
Folha de São Paulo (São Paulo) 15/07/2005