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Como não ter raiva

 

Lourival Batista, um estreito amigo e experimentado político de Sergipe, sempre me dava um conselho, que era um pouco inútil, uma vez que eu já praticava esse comportamento: "Não tenha raiva, dá erisipela". Ele, também, no exercício de vários mandatos de senador, fazia uma campanha indormida contra o tabagismo e incluía entre os males associados ao tabagismo ser irascível. Quando viajava, seu hobby no avião, em tempos em que ainda se fumava no avião, era dirigir-se às senhoras que estavam fumando, pedir licença e dizer: "Minha senhora, não fume, a senhora é tão bonita; e fumar provoca rugas e raiva, e ter raiva dá erisipela".


Juscelino ficou no imaginário brasileiro pela figura humana, cultora da alegria e avesso a ressentimentos. Ele mesmo tem um texto sobre como não guardava rancor. Eu, aqui para o meu lado, também consegui exercer esse nirvana que é não guardar mágoas. Valter Fontoura, com um pouco de humor e verdade, costumava dizer que "a coisa que o Sarney mais gosta é fazer as pazes, adora encerrar inimizades". Nem tanto ao mar nem tanto à terra, mas eu não me arrependo das brigas que não tive, essas não me causam mal nem me obrigam a pesquisar erros de relacionamento. É verdade que uma das técnicas de assim proceder é jamais aceitar inimigos voluntários, eles têm que ser escolhidos e bem escolhidos. Escrevi, há muitos anos, um artigo no qual eu dizia ter nascido com absoluta incapacidade de ter ódios. Mas fui profundamente ferido com a traição que Valéry dizia enojar a política.


Vivemos no Brasil um instante na política em que a moeda corrente e conversível é o ódio. Todos se odeiam e todos cultivam a infelicidade de odiar, embora Carlos Lacerda, em um discurso famoso que tinha o titulo de "A corrida dos touros embolados", advertisse que, no Congresso, deveríamos ter cuidado porque até o ódio era fingido.


Vejo com tristeza o clima de comemoração e de alegria com que se cultiva a desgraça dos outros. Jogam-se papéis, sorrisos e abraços como se não fosse difícil e árdua, isenta e necessária, a austera tarefa de julgar. O que acontece no Brasil é uma vergonha para todos. Punir é triste, necessário, obrigatório, mas não uma festa. Os padres e juízes, que vivem o cotidiano de julgar pecados e crimes, não o fazem num carnaval.


Eu não sei se estou avaliando mal ou só encontro pessoas que estão revoltadas e indignadas com os escândalos que ocorreram no Congresso, mas todas manifestam que o comportamento de algumas pessoas encarregadas da tarefa de apurar extrapola o dever de julgar, banhando-se na alegria de ser inquisidor.


A política tem uma face cruel que é esta de transformar adversários em demônios. É a face da calúnia, do ódio, do desmonte do opositor por todos os métodos, quaisquer que sejam. Vejam o que aconteceu com o senador Jorge Bornhausen. Encheram Brasília de cartazes em que ele, vestido de Hitler, era apontado como racista por ter falado em "raça petista".


Seu deslize foi verbal, de estilo, mas a política transformou um caso gramatical numa cruel agressão.


É a velha história da política da República Velha: "Se o adversário não tem rabo, põe rabo nele".


É esse ódio que faz dos tempos atuais tempos tristes. Por tudo, até mesmo pelas decepções.




Folha de São Paulo (São Paulo) 28/10/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 28/10/2005