Devo esclarecer que também não conhecia a palavra “coincho” ou, se a conhecia, tinha esquecido. Fui espiar “vozes de animais” no Houaiss e peguei-a lá. Refere-se ao som emitido pelo – como direi? – aparelho fonador do porco. Para nós, humanos, o coincho tem uma capacidade de comunicação muito limitada, mas vai ver que isso não passa de antropocentrismo preconceituoso e a porcalidade terá, quem sabe, até mesmo seus oradores. A esta altura grandemente ofendidos com a nova nódoa sobre sua imagem, que, por obra de lamentáveis e injustos mal-entendidos, nunca foi das melhores, haverão de estar coinchando protestos revoltados, em pocilgas pelo mundo afora. Os porcos, milenarmente transformados em pernis, presuntos e linguiças, devem achar é pouco essa gripe aí, como resposta aos muitos gravames que lhes infligimos. Mas não serão escutados, porquanto – reza um dos ditados em que acho que estou ficando viciado –, se o lobo compreendesse o cordeiro, morreria de fome. Pois é, não entendemos coinchos e não queremos entender. E assistimos impassíveis até a genocídios suínos, como acaba de acontecer num país cujo nome agora esqueci, onde, ao que parece, não sobrou viva nem a Petúnia do Gaguinho. É assim a ingrata existência, não se pode fazer nada.
Os porcos, informam especialistas e noticiaristas, não têm nada a ver com a disseminação da gripe suína, que está sendo transmitida de pessoa a pessoa. Só passaram o vírus para os humanos porque estes os confinam em grandes criatórios, em que trabalha muita gente. Bem que suspeito que as lideranças porcais gostariam que não fosse assim, mas ressaltou-se também que a gripe não é contraída através do consumo de produtos suínos. Ou seja, o porco continua a levar a fama, mas quem transmite a gripe somos nós (lá eles, t’esconjuro, batamos na madeira). Outra vez nenhuma novidade, tudo dentro dos padrões da humana e da suína existência.
Mas Itaparica está aí mesmo, para descortinar novos horizontes e desbravar novos caminhos. Eu próprio, que devia estar acostumado, me surpreendo. Na quinta-feira passada, o bar de Espanha foi mais uma vez palco de um debate acirrado e fecundo, a partir de uma iniciativa de Zecamunista, que chegou de Itabuna cheio da grana que faturou da burguesia decadente em altas rodas de pôquer e carregado de jornais e revistas de todos os tipos e origens.
– Espanha, meu bom taverneiro – disse ele –, bote aí a do Zarolho.
Silêncio pesado no ambiente. A do Zarolho é uma raríssima uca de Santo Amaro, assim alcunhada porque uma vez um padre cujo nome não pega bem citar provou dois dedos e ficou vesgo irreversivelmente, o mesmo ocorrendo depois a vários desavisados. O próprio Zecamunista só a encara em ocasiões muito especiais, de maneira que a expectativa se justificava plenamente.
Depois de um silêncio insuportável, ele finalmente revelou o plano que acabara de conceber. A situação dos deputados e senadores brasileiros requeria um corretivo severo, muito mais severo do que a embromação ora em curso. Mister se fazia, disse ele com a voz roufenha própria dos agitadores, partir para uma ação revolucionária radical. E ele já sabia o que ia fazer, precisava de voluntários heroicos para uma expedição a Brasília com o objetivo de soltar duas varas de porcos endefluxados, uma na Câmara, outra no Senado. Pronto, resolvido o problema, o porco sempre foi um animal de grande utilidade e agora mostraria de vez o seu valor, salvando a pátria.
A adesão foi imediata e acho que já amanhã a força expedicionária da ilha estaria desembarcando em Brasília (o dinheiro que Zecamunista ganha no pôquer é todo destinado à causa, com a modesta exceção do que ele gasta com as duas raparigas que mantém discretamente no Baiacu), se não fosse outra vez a intervenção das forças conservadoras, representadas por Jacob Branco, que abriu com uns versos sobre grandes e patrióticos porcos na história da ilha (houve vários porcos ilustres em nossa história, Jacob sabe é de coisa) e disse que o porco itaparicano jamais serviria de arma terrorista.
– Além disso – bradou Jacob, gesticulando como aprendeu no curso de oratória de Ary de Maninha –, não vamos fugir novamente da realidade. E a realidade, meus nobres amigos, é que, se alguém soltasse uns porcos no Congresso, o que ia acontecer era um deputado ou senador qualquer aproveitar para montar um açougue. Ou então criar o Dia Nacional do Lombinho e usar os porcos para o churrasco de comemoração. Atenção na realidade!
Sim, havia esses inelutáveis aspectos a considerar. Por uma questão de coerência ideológica, Zecamunista concordou com a alegação de terrorismo e, por uma questão de Realpolitik, também concordou com a hipótese do churrasco. Mas alguma coisa tinha que ser feita, a inspiração dada pelos porcos não podia ser desprezada, insistiu ele. Tanto Itaparica quanto os porcos humilhados e ofendidos não podiam deixar a situação passar em brancas nuvens.
O Globo, 3/5/2009