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Cinqüenta anos depois

 

Cinqüenta anos depois de lançado, mais importante se apresenta o romance " O ventre", de Carlos Heitor Cony, ocupando uma vanguarda rara na ficção brasileira. Escrevi sobe ele na época, realçando sua presença numa nova fase de nosso romance. Sai agora edição comemorativa desse livro sob a égide da Academia Brasileira de Letras e da editora Objetiva/Alfaguara.


Vários ângulos presidem o julgamento de uma obra literária. Um deles, o ético, tem permanecido através de transformações técnicas e do aguçamento de métodos de compreensão, como critério geral de homens que vêem, no livro, um retrato de suas possibilidades de progresso espiritual. Contudo, mesmo do lado ético, pode o escritor fixar o ventre das trevas, porque é muitas vezes aí que se encontra o germe do homem como ser que procura os caminhos mais claros do entendimento. "O ventre"; de Carlos Heitor Cony - vem revelar a diversidade de caminhos que a ficção brasi1eira percorreu. Que tipo de livro é " O ventre"?


Um romance, sem dúvida, e bom, em que o lado menos suave de um grupo de gente integra uma série de acontecimentos narrados com segurança. Carlos Heitor Cony pega seu personagem central, José Severo, numa infância sem cor, leva-o para o colégio interno, descreve-lhe a incapacidade de ser feliz, solta-o no mundo num jeito entre torturado e irônico, coloca-o no centro de realidades comuns, até um quase-clímax em que a amargura do personagem se dilui em angustiada displicência. Que Carlos Heitor Cony sabe narrar, é coisa que a gente vê logo nas primeiras frases do livro.


Que sua narrativa decorre num ritmo acima do comum, o resto do romance se encarrega de provar. Seu estilo oscila entre um começo de desespero e um romantismo que faz questão de não ser romântico. Quando descreve seu personagem, diz: "Examinei-me no espelho. Feio, decididamente. O nariz enorme, um respeitável senhor nariz. Espinhas brotando no rosto, como furinhos de ralador de coco. Barba feia, nascendo rala e irregular. Uma caricatura. A natureza caprichara em minha formação. Magro, esquelético, principalmente o rosto, só olhos de fora. Pior mesmo o nariz, agressivo, preponderante. Na visita, notado o inusitado volume da narigueira. Ninguém explicava a responsabilidade genealógica de tanto nariz".


Quando se queda na forma que, quase pedindo desculpas pelo fato, se aproxima de uma apreciação romântica, Carlos Heitor Cony tem trechos como este, em que o motorista de ônibus fala de seu veículo: "Gostava dele, amava o barulho do seu motor, conhecia-o de sobra, adivinhava sua preguiça e seu cansaço. Batida simpática, os cilindros certinhos um depois do outro, sem falhar um. Barulho bom de coisa que não existia, um dia não mais existirá, mas em dado momento existe, tremendamente existe e sofre e cansa nas ferragens, nos aços, no sangue negro e pastoso dos óleos lubrificantes. Barulho imbecil só o do mar, eterno, sempre existiu, antes da gente, um dia existirá, depois da gente. Imbecis as coisas eternas".


As cenas do internato, desenvolvidas com justeza, se entremeiam de visitas à casa, num contraponto inicial que vai dando volume à narrativa. O encontro do rapaz com o diretor do colégio e o capitão é um dos bons momentos do romance brasileiro de alguns anos a esta parte. Carlos Heitor Cony demonstra, depois, no interlúdio de Maceió e na atitude de José Severo adulto diante de Helena abandonada, uma capacidade de análise psicológica e de contenção que costuma ser característica do escritor talhado para o romance. E, ao longo do livro, em crescendo, existe o bom estudo do irmão, feito aqui e ali, em frases curtas, pelo narrador.


Num simpósio de ensaios intitulados " The Novelist as Thinker" , procurou B. Rajan destacar o fato de que o romancista é, de fato, um pensador. Já Everett W. Knight, no livro " Literature Considered as Philosophy" , se preocupou em defender, com exemplos franceses, a tese de que toda literatura é uma espécie de filosofia. Filosofia ligada ao homem, e sem um tom obrigatoriamente especulativo, mas sempre filosofia.


A busca da realidade, o surpreender os ângulos do que é verdadeiro, e a adequação do ser humano a essa realidade e esses ângulos - seriam alguns dos motivos que levariam um homem determinado, numa determinada época, a fazer literatura. O Deus sinistro de Thomas Hardy, e o desânimo que seu conhecimento provocava, teriam sua base no determinismo do século XIX.


Corneille viria de Descartes. Péguy e Proust, de Bergson. E assim por diante. Nada disso chega a ser novidade. Os caminhos da literatura e das artes em geral sempre se cruzaram com os da filosofia e das ciências, e tal sempre foi reconhecido. A própria vida individual de cada homem está ligada a todos os movimentos em prol de entendimento que se fazem num tempo. Qualquer pessoa poderá reconhecer, no rock'n'roll, uma forma norte-americana de existencialismo. Ou, na poesia concreta, uma vontade de se por de acordo com o geometrismo (tanto espiritual como da experiência diária) de uma época que se busca a si mesma.


Os escritores que, como no caso de Carlos Heitor Cony, procuram o lado ético - tristemente ético, mas ético - dos acontecimentos, promovem um reajustamento de valores. São, na verdade, humanistas que não vêem por que ser humanistas. Mas que, no meio da angústia da gente de seus livros, gritam a necessidade do humanismo. E podem preencher uma corajosa finalidade: apontar, com as armas da própria rotina, o branco desespero da rotina.


A nova edição de "O ventre" teve a produção editorial de Monique Cordeiro Figueiredo Mendes, capa e projeto gráfico de J A Barros, revisão de Anna Lee e editoração eletrônica do Estúdio Castellani.


Tribuna da Imprensa (RJ) 17/6/2008