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A casa de intolerância e seu dono

 

É preciso fazer justiça a Eduardo Cunha: poucas vezes se viu em Brasília um político tão esperto quanto essa espécie de genérico de gênio do mal.

Os que não se conformam com o desencanto dos jovens com a política é porque não viram as imagens do Conselho de Decoro e Ética, da Câmara dos Deputados, durante esta semana. Além do trivial — bate-boca generalizado, trapaças, traições, chantagens, hipocrisia, ofensas e xingamentos entre si e às inocentes mães — houve novas atrações: o ex-relator contra Cunha denunciou ter recebido oferta de propina, dois deputados tentaram se estapear e, como número especial, a cabeçada de um ilustre confrade no outro, como fazem certos jogadores escondidos do juiz. Um inacreditável barraco de baixarias. O pior é que pagam os justos pelos pecadores, dando a impressão de que “é tudo igual”, são todos coisas ruins, quando é uma banda podre formada pelo cordão dos rabos presos. Os resistentes, como Chico Alencar, correm o risco de serem processados por um pau, ou paulinho mandado qualquer, seguindo a inversão de valores onde vigora todo tipo de permissividade para os desvios de conduta moral.

Eduardo Cunha, o dono dessa casa de tolerância, deveria receber como aviso o que disse o presidente do Senado, Renan Calheiros, numa conversa por telefone presenciada pela repórter Maria Lima. Achando que seu colega de partido e do clube de investigados da Lava-Jato está exagerando com as incessantes manobras para protelar sua cassação pela sétima vez, Renan previu: “Vão acabar decretando a prisão dele”. Não sei se a advertência vai abalar Cunha, que impressiona pela astúcia e frieza. Ele parece não ter medo de ser preso nem de mentir, muito menos do ridículo e da rejeição pública. É preciso lhe fazer justiça: poucas vezes se viu em Brasília um político tão esperto quanto essa espécie de genérico de gênio do mal. Ele não se irrita com a pressão dos repórteres, nem é indelicado com as perguntas inconvenientes; às vezes devolve o que lhe é devido, quando, por exemplo, atribui aos outros a “armação” que é sua especialidade. Quem teria o sangue frio de, diante das provas do insuspeito Ministério Público da Suíça, alegar que suas quatro contas não são dele, são do trust, um fundo do qual ele é “apenas beneficiário” da grana. Quer dizer, não tem conta, só dinheiro. Não sei se Maluf, ex-campeão do cinismo, se sairia tão bem se confrontado com tanta evidência.

Os analistas políticos e nós jornalistas, que tentamos entender essa personalidade complexa, estamos perdendo tempo. É preciso chamar os psicanalistas. A esperança, escrevi aqui outro dia, é que a esperteza quando é demais engole o esperto. Hoje, temo que, com Cunha, ela não vá conseguir, é capaz de se engasgar. 

O Globo, 12/12/2015