José Monteiro Soares Filho, homem de talento e aguda sensibilidade política, líder da UDN na Câmara - um dos poucos que Getúlio Vargas não deixava de temer - contava que um jovem bacharel recém-formado o procurara para pedir apoio à realização do sonho: a deputação estadual. Soares foi logo indagando: "Qual é a sua base no município?" O jovem era de Pádua, centro politicamente muito fértil, e não soube o que responder. Mas o mestre preencheu a ingenuidade do moço, aconselhando-o a ir convivendo com as pessoas e as instituições mais significativas da cidade, sem esquecer as microcomunidades distritais. Que se tornasse, em primeiro lugar, um estudioso do município, principalmente do seu torrão, enfronhando-se nos problemas capitais do meio urbano e do meio rural. Que auscultasse as "precisões" da cidade, como diria um dos chefes locais...
Em suma: o jovem bacharel deveria, antes de mais nada, estudar e pesquisar a vida municipal, para de fato senti-la. O essencial seria começar do começo: pela Câmara de Vereadores. No depois, como diria Guimarães Rosa, poderia pensar na prefeitura da terra e na Assembléia estadual.
Com o tempo, certas experiências fundamentais poderiam inspirá-lo na direção de uma pasta na administração do estado, senão mesmo na chefia do governo. Quanto ao mais, só o futuro, que a Deus pertence, colocaria os pontos e as vírgulas...
A bem pensar, Soares Filho aconselhava o bacharel noviço a racionar a ambição, estancando precipitações - coisa decisiva em política - já que ele próprio, o arguto conselheiro, era expressão de uma carreira intensa, mas gradualmente vivida, como aliás seu mais poderoso adversário, Getúlio Vargas, que escalonou todos os postos da hierarquia política.
Estou recordando estas coisas para atingir o sistema nervoso do assunto: a política, em boa lógica social, é uma carreira e por isso um fim; não é cruamente um meio. Fim porque busca o levantamento e a solução dos problemas vitais da sociedade, em termos, hoje mais do que nunca, de bem-estar coletivo ou de segurança social e econômica para todos.
Mas uma verdade amarga é que o panorama da atualidade ostenta a proliferação dos que vêem na política, às vezes cinicamente, um incrível recurso - um meio precisamente; meio de viver para os dois verbos da época: surgir e lucrar. Isto poderá explicar que mandatos parlamentares e mandados de prisão acabem em triste coexistência.
Mesmo na esfera do Executivo, nos estados e na própria União, será fácil verificar a crescente presença dos que parecem ansiosos por inverter a expressão clássica Negócios do Estado; quereriam um Estado de negócios...
Essa visão mercantil da política, poluição do pragmatismo legítimo, aí está a fazer da ação política não um fim, mas grosseiramente um meio. Que me tolerem o jogo verbal: um meio de atingir devidos fins - fins indevidos.
As urnas brevemente terão de decidir: ou a preservação racional da carreira ou os assaltos do carreirismo. Esta expressão carreirismo define, comumente, certa avidez com que umas tantas pessoas procuram sugar as oportunidades ou as circunstâncias propícias à busca de cargos, honrarias, evidência, popularidade fácil. O carreirismo de que agora me ocupo é bem mais lesivo ou abusivo, está nitidamente marcado pelo espírito de transação ladina, de manobra dinheirista, de golpe econômico, se preferirem.
Cientistas políticos insuspeitos, americanos, como por exemplo Mac Iver, têm mostrado a dinâmica da "pressão democrática" nos Estados Unidos. A verdade final é que os partidos passam a ser apenas "máquinas registradoras" dos interesses, das reivindicações ou propostas das associações de classe, das forças empresariais e sindicais.
Em princípio, tudo isso seria saudável e realmente democrático, se a motivação do dinheiro e suas caudais, jorrando dos dois maiores pólos de atração - indústria e comércio - não transformassem os dois partidos principais em pseudônimos, por assim dizer, das grandes financeiras ou dos grupos lobistas.
Não poderão esses procedimentos, de algum modo liberais, gerar, no entanto, a desnaturação do regime, pelo estímulo ao carreirismo em detrimento da carreira?
Nessa hipótese, será a política um fim ou, capciosamente, um meio?
O GLOBO, 31/05/2001