Com sábia percepção e delicadeza, Fernando de Franceschi e Rinaldo Gama lançam o anzol nas águas mais profundas e vem à tona, como num deslumbramento, a escritora com os seus mistérios e perplexidades. A graça meio irônica das pequenas confissões sobre a criação literária. Os depoimentos de amigos, de críticos. E a riqueza das fotos testemunhando a vida e a obra. Revelações. Uma delas me fez rir, ah, e eu que sempre pensei que aquela pesada pronúncia de "rrrs" viesse da sua origem russa. Eu me lembro, estávamos na Universidade de Cali, na Colômbia, convidadas do Congresso Sul-Americano de Escritores. Certa manhã resolvemos fugir das conferências (tão chatas!) e gazetear pela cidade ensolarada. Aqui as "esmerraldas" são lindas, ela disse. Vamos em busca das "esmerraldas"! Lembrei que o bandeirante Fernão Dias Paes era o caçador das próprias, a inspiração devia vir dele. Pois estou "inspirrada", sorriu Clarice e lá por dentro fiquei sorrindo também, tinha nascido na Ucrânia. Essa pronúncia anasalada seria ainda a antiga marca da Rússia?...
Pois só agora, lendo o livro é que fiquei sabendo, em meio às pequenas confissões: ela contou que essa fala assim pesada era devido ao fato de ter a língua presa, podia ter feito a operação, mas ficou com medo da dor, o médico avisou que a operação era dolorida. Ora, essas minúcias!, dirá o impaciente leitor lúcido entortando a boca. Mas são esses detalhes que fazem o difícil tecido do ser humano e ainda é nos detalhes que encontramos Deus.
"Cadernos de Literatura Brasileira - Clarice Lispector", 344 págs., R$ 80,00. Ed. Instituto Moreira Salles (tel. 0/xx/11/3371-4455).
Folha de São Paulo - Revista Mais! (São Paulo) 23/01/2005