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Caderninho de viagem

 

Tempo bom era o de Marco Polo, em que o sujeito fazia viagens longuíssimas pelo mundo todo e, ao voltar, podia contar algumas das mais magníficas mentiras de que se tem notícia. Mais chegado a nós, o grande Fernão Mendes Pinto é um dos maiores representantes dessa hoje injustiçada categoria. Não me lembro agora das histórias que eles contaram, mas era uma imensa fartura de portentos e maravilhas de todos os tipos. Devo estar misturando tudo, mas creio que havia monstros com a barriga em cima do pescoço e uma cabeça falante em cada pé, monarcas cujos palácios eram construídos de ouro puro cravejado de rubis, rios de leite e mel, lindas mulheres aladas que arrebatavam rapazes pelos ares, desfrutavam deles e depois os devoravam vivos, animais falantes usados como conselheiros, magos que faziam clarear, escurecer ou chover, abismos que levavam ao centro da Terra.

Alguns privilegiados, que, como eu, tiveram a fortuna de nascer na Itaparica de antigamente, ainda pegaram, em escala muitíssimo menos espetacular, mas ainda assim emocionante, relatos de outros viajantes, tais como o finado Nelsinho Bololó, que esteve quatro meses no Rio de Janeiro e, quando voltou, não só passou a falar carioquês o resto da vida, como enfrentava dificuldades em reconhecer os mariscos da região, com a célebre pergunta, diante de um caranguejo, sobre que bichinho esquisito era aquele. Comenta-se que o vendedor de caranguejos, o também finado Gueba, retrucou, não sem uma certa aspereza, que era qualquer coisa relacionada com a mãe do perguntador, mas a versão não é confirmada pelas raras testemunhas ainda sobreviventes.

A televisão também impressionou bastante Nelsinho, foi descrita como uma espécie de cinema, em que o sujeito via tudo, sem sair de casa. Futebol, por exemplo, era perfeito e, assistindo ao jogo pela televisão, o espectador podia até mesmo xingar o juiz, porque ele ouvia e às vezes respondia ao xingador, geralmente com uma banana em sua direção, porque uma resposta oral seria abafada pelo barulho da torcida no estádio. Mas, de tudo o que Nelsinho viu do adiantamento do Rio de Janeiro, o que provocou os comentários mais empolgados foi o cruzamento de urubus com galos de briga, muito praticado pelas rinhas cariocas, que rendia, quando nas proporções certas, contendores invencíveis. E, ao que parece, fez escola na ilha, onde me falam sempre desses cruzamentos e dizem que Vavá Major tem alguns galubus em seu plantel, mas não os mostra a ninguém, com medo do Ibama.

Hoje em dia, a novidade está difícil, até mesmo nos Estados Unidos, de onde ora lhes escrevo. Uma delas põe em conflito duas abordagens técnicas diversas, a respeito do fumo em lugares públicos. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, o limite é o da marquise do estabelecimento ameaçado pelo fumante. Acho que as polícias de ambos os Estados usarão fios de prumos. Para dirimir divergências sobre se o suspeito de fumaça ilegal está ou não debaixo da marquise, o policial acionará o fio de prumo. Já aqui, à porta de um simpático restaurante de Illinois, ninguém dá importância à marquise. A determinação é jogar o cigarro fora quando se estiver a uma distância de 13 pés da entrada do restaurante, nem um pé a menos. A abordagem deverá ser estudada para adoção entre nós, porque apresenta a óbvia vantagem de vir a ser criado, com os indispensáveis empregos e cargos comissionados, o Serviço Estadual de Marcação da Distância entre o Fumante e a Porta do Estabelecimento Público, com técnicos especializados de nível superior e normas baixadas pela Anvisa.

Outra coisa que se nota não chega a ser propriamente novidade, porque todo mundo sabe que os Estados Unidos são obsedados por raça de gente. Faz pouco tempo, distinguiam brancos, negros e índios, como até hoje fazem, apenas substituindo as antigas designações, não sei bem com que serventia, porque um índio americano discriminado continua a ser discriminado, se chamado de Native American, como é o correto hoje em dia. Discrimina-se do mesmo jeito, mas com elegância terminológica, o que certamente é bom para o ego dos índios e faz toda a diferença, como hoje se diz.

Contudo, o mundo rola e, ao que parece, as necessidades de classificação racial vêm aumentando. Talvez devamos ser compreensivos em relação a esse fenômeno. Sem saber claramente a raça do interlocutor, pode ser que os americanos não acertem a conversar, ou a ausência desse dado lhes cause problemas neurológicos, não devemos subestimar os dramas alheios. O fato é que, nos anos recentes, o panorama racial tem passado por alterações, notadamente com o aumento da imigração de grandes contingentes de indivíduos originados da América Latina, o que lá seja isso. Como rotular convenientemente esse pessoal todo? Morenos, louros, mestiços, agora são todos Latinos ou Hispanics, incluindo brasileiros em ambas as categorias. Acrescentem-se a isso os Asians, também cada vez mais numerosos. Talvez, por ignorância, eu esteja deixando de lado um ou outro grupo também importante e é possível que os argentinos já esteja pleiteando uma classificação especial, qualquer coisa como Esplendorosos, ou algo assim.

A tendência é estabelecer-se certa confusão. O governo já deve ter notado esse perigo e creio que em breve serão iniciados estudos de Antropologia, Sociologia, Demografia, Linguística e outras disciplinas, para a correta designação da raça de cada um, esse elemento essencial para a vida contemporânea, que tanta falta faria, se ignorado. Imagino uma operação de centenas de milhões de dólares, que resultará na criação de uma complexa tabela de raças. Deverá ser muito útil para prisões, bombardeios, deportações, aplicação de pena capital e outras necessidades - a Humanidade não cessa de progredir.

O Globo, 8/4/2012