Todo santo dia, os meios de comunicação publicam matérias sobre a decadência do nosso futebol. O futebol carioca, então, nem se fala, porque os grandes times do Rio estão em situação ainda pior do que a de outros Estados. E, de fato, mesmo os maníacos, que têm tevê a cabo, pay per view e parabólica e não perdem um jogo, ou os mais fanáticos, que ainda enfrentam os perigos que ameaçam os grandes estádios em dias de jogo, não podem negar que, atualmente, assistir a um jogo de futebol não é mais a mesma coisa e às vezes fica mais chato do que a exibição das fitas de vídeo que um casal de amigos fez de sua excursão pela Europa, onde os narradores são ela e ele discutindo e falando ao mesmo tempo e ele confundindo Bruxelas com Barcelona - "não sei por quê, deve ser por causa dos nomes, Barcelona, Bruxelas, para mim o som é parecido, só pode ser isso".
Não sou comentarista especializado, como todo mundo sabe. Pelo contrário, de futebol somente sei o que qualquer torcedor comum sabe, ou até menos. Nas Copas a que compareci como "comentarista", não só escrevi muito pouco sobre futebol, como devo ter sido objeto de vários jogos de porrinha, para ver quem teria a má fortuna de sentar-se junto a mim no estádio, porque eu só faltava perguntar qual era a equipe brasileira.
- Zinho? - perguntava eu a um companheiro de bancada.
- Sócrates - respondia o caridoso companheiro a meu lado, com a cara de quem havia obtido a dispensa de pelo menos uns quatro séculos de Purgatório.
- Sim, claro, é a semelhança física entre os dois que me confunde.
Dessa mesma vez, em Guadalajara, na concentração, eu, de crachá e sentimento glorioso de repórter esportivo (meu sonho de consumo profissional até hoje), cumprimentei, como acho que já contei aqui, o Falcão.
- Tudo de bom pra você, Falcão!
- Obrigado, mas eu sou Carlos, o goleiro.
- Ah. Sim, ho-ho, que mancada a minha. Eu não enxergo muito bem e assim, com esta luz contra os olhos...
Mas também não sou tão burro, eis que passei de primeira no vestibular da outrora rigorosíssima Faculdade de Direito da Bahia e me formei, hoje tendo alguns colegas de burrice ocupando altos postos na República. E, ainda assim, qualquer burro vê, há árbitros marcando impedimentos onde não houve ou vice-versa, pênaltis onde não houve e vice-versa, expulsando jogadores que não fizeram nada de errado e, de modo geral, melando o jogo todo. Por muito menos, nenhum desses juízes sairia do estádio de Itaparica sem receber um prato fundo de mingau de mandioca na cara.
Mas será que resolve, fazer da tevê uma fonte de referência para atos dos juízes, podendo-se vir a anulá-los? Continuo a protestar. Sem se poder xingar o juiz e dizer que tal ou qual falta foi roubada, o futebol perderia um dos seus grandes encantos, notadamente a choradeira. A má arbitragem continua a ser um problema grave, é certo, até por causa da covardia e da burrice de certas regras. A covardia consiste em não dar cartão amarelo ou vermelho em algumas circunstâncias, com a conseqüência, de que, por exemplo, uma tourada na Espanha aqui tem menos violência do que um jogo de bola de gude. Quem tenta quebrar o outro devia ser expulso. Quem xinga o juiz nessas circunstâncias devia ser processado. E por que se permitem táticas antiesportivas, tais como o uso de cartão amarelo para facilitar a escalação de um time? Fulano está pendurado no amarelo. Se tomar outro, será automaticamente suspenso, não participará de um jogo sem importância por causa do terceiro cartão e aí toma amarelo de propósito. E ainda, ligado a isso: se o sujeito comete uma falta merecedora de cartão amarelo, por que, na segunda, não pode tomar o segundo cartão amarelo, que se acumularia com os outros já recebidos? Muitas vezes, o juiz tem que dar cartão vermelho, embora não seja muito justo, só porque o infrator já tomou amarelo antes.
Devia ser possível dar um, dois ou três cartões amarelos no mesmo jogo, principalmente quando o time está participando de várias competições simultaneamente (copa disso, copa daquilo, taça disso, taça daquilo). A expulsão só devia vir quando fosse caso de cartão vermelho mesmo, ou quando os amarelos chegassem, por exemplo, a três ou quatro. Não deveria ser forçado o cartão vermelho somente porque o jogador tomou um amarelo antes, no mesmo jogo. Todo mundo já viu esse tipo de injustiça, um expulso por ter puxado a camisa de outro, pouco depois de ter chutado a bola para fora de campo num momento proibido. Não é a mesma coisa que expulsar um que quebra a perna do adversário de propósito.
Apesar de maus árbitros, é difícil ganhar um jogo em que o oponente é significativamente melhor. Mas nosso problema principal, pelo menos do meu ponto de vista de torcedor, não está nos árbitros, nos cartolas, nos calendários, nada disso. Nosso problema é que o pessoal anda arrumando cada vez mais times de pernas-de-pau, com um número incrível de pênaltis perdidos, passes errados e jogadas bisonhas. Quem faz duas embaixadas é logo chamado de craque. Botem jogadores bons nesses times, arrumem esses times direito. Futebol virou uma caixa sombria de bisonhice, e nem dar um driblezinho extra é mais permitido, é desconsideração ao adversário, Garrincha não poderia mais jogar. Não pode mais fazer gol de bunda! Por que não pode fazer mais gol de bunda? Desrespeito nada, diversão que pode voltar-se um dia contra seu perpetrador. Em resumo: o que falta em nosso futebol é futebol mesmo. Um dia deste minha turma de boteco aqui no Leblon se chateia e funda um time de beisebol. Pelo menos a gente tem mais tempo para dormir no estádio.
O Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em 20/07/2003