É meio chato o sujeito nascido em meados do século passado descobrir, numa série aparentemente infinita de pequenos episódios deprimentes, que passou a vida sendo enrolado e acreditando em bobagens. Essa descoberta - tão óbvia, sempre esteve aí o tempo todo, mas nem eu e os outros bestas víamos nada. É uma enfermidade difícil de curar. Embora, ia eu dizendo, não leve à morte, mas aí lembrei que pode levar, sim, tanto à morrida quanto à matada. Mas é difícil de curar, mais difícil que parar de fumar, bem mais difícil. E o quadro se agrava quando o doente ou não reconhece o seu estado ou de tal maneira entortou a percepção que persiste em cultivar as manifestações da doença como até benéficas, sem dúvida louváveis.
Eu posso dizer que estou entre os sortudos. Acho que finalmente avistei o caminho certo e decifrei os sinais que estão aí para todo mundo ver. Como a verdade é fugidia, em sua nudez de fábula. Como é fácil aderir, por voluntarismo ou ingenuidade, a crenças que, por uma razão ou por outra, não podem materializar-se. Como nós, do vasto contingente da bestalhonidade, não aprendemos nunca e persistimos em esperar mudanças de onde elas não virão, ou acreditar que estão havendo mudanças.
E ainda persistimos no mais cruel vício de todos, talvez o maior vetor de nossa doença: acreditar no que as pessoas dizem e não no que as pessoas fazem. Para o eleitor consciente, ou que se esforça por ser consciente, não há coisa pior. Fazemos sempre brincadeiras com promessas de candidatos, mas o fato é que acreditamos nelas. Não sei por que, talvez porque precisemos, mas acreditamos. Acreditamos até mesmo quando eles estão patentemente descumprindo a promessa, mas dizendo que estão cumprindo.
E creio que em nenhuma ''democracia'' do mundo os governados sejam tão governados e os governantes tão governantes. Supostamente - e alguns repetem isso de boca cheia e queixo empinado, coitados -, somos uma democracia representativa onde o poder emana do povo. Emana do povo apenas na medida em que, periodicamente, armamos uma pajelança (de uns tempos para cá, eletrônica e inconferível e, portanto ainda menos confiável) em que obrigamos o eleitor a votar, sacramentando a curiosa figura do direito obrigatório e tendo de escolher entres nomes que, no máximo, representam facções dentro do esquema que sempre dominou e que sempre preservou, dentro das características de cada época, os traços odiosos que ainda exibe, na pobreza, na doença, na ignorância e no atraso.
Tão logo o poder acaba de emanar, o representante, dir-se-ia que por tradição secular, passa a comportar-se como representante basicamente de si mesmo, de seus amigos e de algumas fontes que lhe dão dinheiro. Também automaticamente adota o lema ''quem entra em política é para se fazer'', o qual norteia o comportamento da maioria dos eleitos. Assim, o Estado, através dos representantes (que são, dizem várias fontes, os mais caros do mundo), passa a existir basicamente para custear-se, no nosso caso apor intermédio de uma massa tributária acachapante, que não dá retorno a quem a paga, a não ser em afirmativas como ''o nosso sistema de saúde se aproxima da perfeição'' e que ser tratado num hospital público da mesma forma que o presidente da República está ao alcance de qualquer brasileiro.
O ''dono'' do poder, ou seja, o povo, não tem direito a ser nem ouvido nem cheirado, nem mesmo quando se trata de saber em que estão gastando seu dinheiro. ''Mostre as contas'', diz o povo, através de seu representante. ''Não mostro'', diz o Executivo. ''Vá se catar, vá ser povo e não me aporrinhe.'' Claro que isso é feito em meio a rapapés e arcaísmos interessantemente empregados, tais como ''Vossa Excelência é um ladrão'', respeitando rituais arcanos e enganando ou ignorando os representados. Há todo um balé a coreografar e fazemos isso muito bem.
Na primeira eleição, a Zelite não quis ir de operário. Havia e há muito preconceito contra isso, para não falar que o atual presidente ainda não era completamente branco, vindo a embranquecer de todo e assedar o cabelo depois de candidato. Escolheu um sociólogo de esquerda da moda, com um galanteador ''pé na cozinha'' e bradando furiosamente por reformas. Houve uns meses de frenesi reformador e aí a Zelite resolveu que ia facilitar a vida mole de todos, instituindo a reeleição. Pouco mais que isso foi feito e aí, na disputa para a reeleição, o sociólogo ganhou, mas não convenceu.
Passou-se então ao operário, este cheio de faços-e-aconteços (e suspeito eu, eventuais impulsos de prendos-e-arrebentos). Sua tarefa era delicada, porque a Zelite (acho que ele mesmo agora reconhece que já entrou, podemos deixar as sapatilhas de lado) não podia, no início, deixar que os bestalhões vissem que era a mesma coisa de sempre, com outra cara. E uns ajustes, tais como a criação do futuro cidadão-cliente, através do bolsa isso e bolsa aquilo.
Poderia, mas não há espaço nem real necessidade, argumentar que o atual governo veio para aperfeiçoar tudo a que já estamos acostumados em 400 anos e assim manter a sociedade equacionada nos mesmos termos em que sempre esteve. Em vez de argumento, o fato. O grão-conselheiro do presidente Lula é o deputado Delfim Neto, não propriamente um novato em Brasília, sempre por cima da carne-seca, como sabemos. Pois o Dr. Delfim não só proclamou jubiloso que ''Lula salvou o capitalismo brasileiro'', como lhe atribuiu excepcional prestígio junto a Deus - isto mesmo, Deus. Portanto, colegas bestalhões, eis aí como somos um país dos mesmos, governado pelos mesmos e para os mesmos.
O Globo (RJ) 20/4/2008