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Boas entradas num boteco do Leblon

 

- E aí, tudo bem na passagem de ano?


- Tudo bem, na maior tranqüilidade, gostei muito dos fogos.


- Tranqüilidade? Tu chama aquilo de tranqüilidade? Onde é que você foi?


- Lugar nenhum, fiquei em casa. Tranqüilidade. Segurança contratado pelo condomínio, porteiro treinado, tevezinha malocada no elevador e em cada andar e tevezão em casa. Umas garrafinhas de champanhe pro pessoal mais fresco, uma garrafa de uísque para mim, melhor programa não pode haver.


- Ah, em casa, malandro? Não tem nada a ver, tu tinha era que estar lá pessoalmente.


- Otário. Papo de otário. Otário e reacionário.


- Otário? Otário e reacionário? Otário e reacionário é quem fica em casa, podendo curtir a beleza do espetáculo ao vivo, é um dos privilégios de morar no Rio de Janeiro.


- Otário e reacionário. Só não digo burro porque te conheço e sei que tu não é burro. Otário e reacionário. É como jogo pela tevê. Claro que se vê o jogo pela tevê muito melhor que no estádio. E mais barato. Cada um traz sua caixinha de cerveja, morre nuns cinco paus para a vaquinha do sinal da tevê e assiste tudo sem se preocupar com bala perdida ou torcida assassina. Otário e reacionário é o que você é. Não digo bem reacionário, digo retrógrado. Pronto, retrógrado, defasado com seu tempo.


- Desculpe, mas no caso eu acho que otário é você.


- Olha aqui, não vamos discutir, porque tu vai se dar mal e eu prezo muito tua amizade pra querer te melindrar. Mas eu, podendo assistir tudo no conforto e segurança de minha casa, numa zorra de um telão que eu comprei e não me arrependo, foi a melhor coisa que eu já fiz, eu, podendo estar aqui na maior, sem preocupação, vou pra rua, ser figurante gratuito da tevê? Porque isso é o que vocês são, figurantes gratuitos das tevês. Elas vão lá e ainda chamam você de galera, eu não suporto que me chamem de galera. “Olha lá a galera aplaudindo os fogos”, não sei o quê. Isso não tá com nada, cara, o futuro já chegou e é diferente. Burrice sair de casa, o Rio está se constituindo numa experiência do futuro. O Rio e São Paulo e acho que tem outras cidades brasileiras no mesmo caminho, a tendência natural do futuro é essa. Eu sou muito otimista, acho que a informática e as comunicações vão resolver tudo, inclusive o problema das drogas. Nosso conceito de cidade está ultrapassado, nós precisamos acabar de equacionar a cidade do futuro, é só ver as possibilidades. Por exemplo, quem precisa sair de casa?


- Você acha que o sujeito não deve sair de casa?


- O mínimo possível. Não precisa.


- Quer dizer que, por exemplo, acabam as visitas e os papos, acabam os restaurantes?


- Aí é que eu digo que tu é retrógrado. Tu não já leu nos jornais, não? Está desaparecendo o restaurante, agora o sujeito recebe tudo em casa e, se quiser, muitos restaurantes oferecem o mesmo serviço, com garçom e tudo. O restaurante que não se adaptar pode ficar lá desertinho a noite toda, que ninguém mais vai ser maluco de sair de noite, a cidade do futuro é outra, te situa, cara.


- Quer dizer que tu acha que agora, por exemplo, pra conversar com os amigos o sujeito vai ter que promover reuniões em casa. Por aí já se vê que tua tese é furada. Pra fazer reunião em casa é preciso que os outros participantes saiam das suas. Portanto, alguém sai de casa. Esquema furado.


- Desculpe, mas você não está confirmando tua inteligência. Ninguém precisa sair de casa. Tu sabe meu telão? Se eu quiser, eu ligo ele no meu computador e com uma webcam instalada, converso com dois ou três amigos ao mesmo tempo, até as famílias inteiras, sem sair de casa. Sacou?


- Mas isso é uma maluquice. Quer dizer que acha que...


- Maluquice é a sua, que não vê que a realidade é outra. Tu manja o Skype?


- Eu sei, é um programa de computador pro camarada falar.


- E de graça! E é um programa que ainda pode ser considerado primitivo, ainda vai melhorar muito. Pois outro dia, o Lustosa, a mulher dele e o filho mais velho e o Lafayette, aquele coroa baiano que imita Dorival Caymmi, todo mundo ficou conversando pelo Skype horas, como se estivessem aqui na sala. É só botar umas boas caixas de som, um bom microfone e a reunião está pronta, com muito mais conforto e sem precisar sair de casa, dá até para fazer degustação de vinhos, cada qual com sua garrafinha em casa.


- Que horror, eu acho isso o fim.


- É o que eu digo: reacionário, não vê que os tempos são outros. Agora a gente pode dar até uma festa assim. Tenho certeza de que daqui a no máximo uns cinco anos, quando o cara quiser dar uma festa, é só combinar ligar os computadores e os telões e todo mundo participa da festa, sem precisar botar os pés fora de casa. Não, tu tá por fora. Reacionário, retrógrado, pessimista. Tudo vai melhorar, vá por mim. Até o país como um todo vai melhorar.


- Como é que tu sabe?


- O Homem garantiu, tu não viu, não? E, quando ele garante, tu sabe como é, ele faz. O futuro é belo, cara, tu é reacionário.




O Globo (Rio de Janeiro) 1/1/2006