Começo por uma citação de Baudelaire, que escreveu o seguinte na primeira página de seus "Pétits poèmes en prose", dirigindo-se a seu amigo Arsène Houssaye:
"Tenho pequena confissão a fazer-lhe. Foi ao percorrer pela vigésima vez pelo menos o famoso "Gaspard de la nuit" de Aloysius Bertrand (um livro conhecido de você, de mim e uns poucos amigos, não tem o direito de ser chamado de famoso?), que me veio a idéia de tentar alguma coisa de análogo e de aplicar, à descrição da vida moderna, ou antes, de uma vida moderna e mais abstrata, o procedimento que ele tinha aplicado à pintura da vida antiga, tão estranhamente pitoresca."
Quem seria esse Aloysius Bertrand que despertara o entusiasmo de Baudelaire? Três brasileiros, especialistas em Aloysius Bertrand, se reuniram para tornar possível a publicação do livro "Gaspard de la nuit", no Brasil: foram José Jerônimo Rivera, que o traduziu, Xavier Placer, que o conhece de longa data e fez o prefácio para edição brasileira, e o poeta Anderson Braga Horta, autor da "orelha" do volume.
Homem do século XIX, saiu Aloysius em busca das histórias da Idade Média, com seus cantos e seus menestréis, os encantamentos de suas fadas, a glória de seus valentes. Morreu desconhecido (1807-1841), mas seu livro seria publicado menos de dois anos depois.
Nele, o autor divulgava um novo gênero literário, o poema-em-prosa, já usado antes por William Blake e Oscar Wilde e, depois de Aloysius, por Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé, Max Jacob, Francis Ponge, Saint-John Perse e, no Brasil, por Raul Pompéia ("Canções sem metro"), Bandeira, Drummond, Jorge de Lima, Quintana, Murilo Mendes. Numa de suas páginas, conta Aloysius que uma fada, Ondina, por ele se apaixonou. Eis a história:
"Sua canção murmurada, suplicou-me que recebesse em meu dedo seu anel, para tornar-me esposo de um Ondina, e que visitasse com ela seu palácio, para tornar-me o rei dos lagos. E como eu lhe respondesse que amava mulher mortal, ela, amuada e com ciúmes, derramou algumas lágrimas, deu uma gargalhada e dissolveu-se entre jorros de água, que escorreram brancos ao longo de meus vitrais azuis".
E eis como Aloysius Bertrand mandou o original de seus poemas em prosa a Sainte-Beuve. O estilo que usa, é todo ele, cioso do que faz, um tanto zombador, mas também romântico, certo de que o leriam mais tarde, como o estamos lendo agora:
"O imperador dita ordens a seus capitães, o papa dirige bulas à cristandade e o tolo escreve um livro. Meu livro, ei-lo aqui tal qual o fiz e como deve ser lido, antes que os comentadores o obscureçam com seus esclarecimentos.
Mas não serão estas páginas indigentes, humilde labor ignorado dos dias atuais, que darão algum lustre ao renome poético dos dias passados. E enquanto a rosa silvestre do menestrel vai fanar, sempre há de florir o goivo, a cada primavera, nas janelas góticas de castelos e mosteiros."
Do prefácio de Xavier Placer surge, clara e nítida, a figura de Aloysius Bertrand, com sua obra que abre todo um universo de entendimento do que é a palavra e de como o poema, em verso ou em prosa, pode unir inconsutilmente a beleza com a verdade e a verdade com a beleza. Cita, a propósito, os belos versos de Keats:
"Beauty is truth, truth is beauty - this is all
Ye know on earth, and all ye need to know."
"Beleza é verdade, verdade é beleza - eis tudo
que sabes na terra, e tudo que precisas saber"
Em 1842 - um ano e meio depois de seu autor haver morrido num hospital de Paris, o livro "Gaspard de la nuit", impresso pelo editor Victor Pavie, sai com "Notícia" de Sainte-Beave. Comentário posterior de Pavis: "Nunca se viu maior desastre de livraria!" Só 20 exemplares haviam sido vendidos até o final de 1844.
Logo depois, louvada por Baudelaire, a obra de Aloysius, baseada na prosa que é poesia ou na poesia que é prosa, às vezes narrativa, passou a ser amplamente conhecida, chegando a, em 1908, ter uma suíte para piano, de Maurice Ravel, que a compôs, inspirado no livro e com o título de "Gaspard de la nuit."
Bom exemplo do modo como Aloysius Bertrand pega seus assuntos está neste poema seu, baseado numa frase de Victor Hugo: "Uma fada se esconde em tudo quanto vês":
"Toda noite uma fada perfuma meu sonho fantástico com os mais frescos, mais ternos hálitos de julho - essa mesma fada bondosa que repõe no caminho o bastão do velho cego extraviado, e que enxuga as lágrimas e cura a dor da menina que teve o pezinho nu picado por um espinho."
"Gaspard de la nuit", de Aloysius Bertrand, foi lançado pela Thesaurus Editora, de Brasília. Tradução de José Jerônymo Rivera, prefácio de Xavier Placer, "orelha" de Anderson Braga Horta, capa de Tagore Alegria.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 13/04/2004