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Barbárie banal

 

É de chorar e se desesperar, mas choro e desespero não resolvem. Aliás, nem dá para desconfiar o que pode ajudar a resolver. E rápido, porque já ultrapassamos o insuportável. Mas como? Se nem ao menos está dando para tentar entender...

Nem nos espantamos ao ler nos jornais sobre um tema que une prefeito e secretário municipal de Educação: a urgência do emprego de argamassa especial em paredes de escolas para reforçá-las contra tiroteio. Reforço escolar costumava se referir a aulas extra.

O que vem acontecendo no país (de massacres de lavradores e índios a motins e degolas em prisões), e muito especialmente no Rio, mostra a que ponto podemos chegar se houver oposição entre garantir direitos e fazer cumprir a lei. Vira o império da barbárie pura e simples.

Só nos últimos dias, só aqui. Mãe e filha mortas a tiros na Mangueira. O bebê Arthur baleado ainda no útero de Claudineia, lutando pela vida, em risco de ficar paraplégico. O porteiro na Sá Ferreira, abatido por uma granada lançada por traficantes em guerra com a polícia. Vanessa, 10 anos, morta no Lins, baleada na cabeça. A enfermeira assassinada no segundo assalto que sofreu em quatro dias. O noticiário dá conta de 25 tiroteios em 24 horas

Vamos lendo as tragédias, uma barbaridade após a outra. Não podem ser vistas como fatos banais. Temos que, ao menos, procurar compreender, para evitar que continuem. Nada disso é repentino. Começou com tolerância desmedida a todo tipo de delito.

Quem esqueceu a máxima de que “em meu governo, polícia não sobe morro”?

Da complacência com malfeitos aparentemente simples e inocentes (tipo construir desrespeitando a legislação ou molhar a mão do fiscal), acaba-se por culminar nos mais graves — de tráfico de armas a policia corrupta. E esta cultura de confronto.

Por mais que o clichê diga que ela existe desde a Carta de Caminha, essa apoteose de corrupção que se revela tem a ver com a aceitação passiva do “rouba mas faz”, e do “todo mundo é assim”.

No processo, a desmoralização da lei, vista como letra morta, serve para instaurar um ambiente generalizado de cumplicidade travestida de tolerância ou esperteza.

Nesse quadro amplo, agora que justiça e informação ao público parecem funcionar para revelar os fatos e buscar sua apuração e punição, surgem também zonas de sombra a embaralhar tudo.

Ocombate à corrupção não pode se opor ao estado democrático de direito e vice-versa. Não é por garantir direitos de acusados que se precisa deixar de seguir o que a lei manda. Nem a sanha de incluir todo dia novas acusações deve impedir que outra versão traga mais luzes. Mais que isso: interpretações da lei podem ser diferentes. A Justiça está em foco no noticiário. Estamos aprendendo na prática como pode haver tantas variantes e, até mesmo, que pode ser fecundo considerar asituação desde um ângulo diverso.

Mas o que não pode levar a bom termo é a percepção distorcida de que a lei depende apenas da vontade pessoal. Ou que, na luta contra o crime, dispositivos legais podem ser suprimidos se quem os aplica se convence de que faz o certo, ou apenas aproveita que tem poder e se atribui o direito de ser uma exceção. Reiterada, essa visão vai corroendo ademocracia e a esperança das pessoas de bem.

Decisões judiciais já andam difíceis de entender por parte do cidadão comum, sem distinguir o que leva um juiz a mandar prender e outro a soltar. Sua cobertura não deve virar torcida individual, interpretável como se fosse fruto da veneta de cada julgador — porque um acha a carreira política do acusado elogiável ou outro costuma jantar com políticos, um terceiro deu depoimento na campanha eleitoral do PT, um quarto tinha amizade familiar em São Bernardo ou um quinto atuara como advogado em benefício do partido.

A não ser que isso seja verdade comprovável, a população não pode ficar achando que são fatores desse tipo que explicam decisões e sentenças. Daí ser importante ter clareza. Mostrar em que mudam as circunstâncias. Tem um efeito didático.

Estamos tão acostumados a ver figurões importantes funcionando na base do toma lá dá cá, que a primeira tendência da pessoa comum é achar que é sempre assim. Por que convinha prender num primeiro momento? Por que depois se achou que já podia soltar? Toda prisão é uma sentença, fruto de julgamento? Quando é diferente? Por que um condenado a 32 anos pode estar solto por aí? Por que o médico estuprador podia ser mandado para casa numa semana e na seguinte ser preso de novo? Por que a assassina confessa da mãe pode sair da prisão para festejar o Dia das Mães? A mídia e a Justiça têm o dever de ser claras nessas questões. Impessoais. Não contribuir para desmoralizar a garantia de direitos.

Se a sociedade começa a olhar com desconfiança seu conjunto de leis ou os agentes que as aplicam, abre-se o caminho para que a legislação não seja respeitada. O resultado é a banalização do crime, o domínio do mais forte ou mais esperto. A lei da selva. Leviandade conduz à barbárie.

O Globo, 08/07/2017