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Avião, tráfego e garoa

 

TIVE UM COMPROMISSO de almoço com meu editor em São Paulo para tratar do lançamento de meu próximo livro. Depois, à noite, eu teria que comparecer à formatura das primeiras turmas de administração e direito da Universidade Zumbi dos Palmares, obra do professor José Vicente, a quem a comunidade negra deve um extraordinário serviço.


Um amigo ofereceu-me em Brasília uma carona num avião pequeno. Ele viria com a mesma finalidade. Aceitei. Em seguida, para saber a hora da partida, falei com o piloto, que me advertiu: "Teremos de sair cedo, pois não há slot para Congonhas e nossas opções são Guarulhos, Campinas ou Jundiaí".


"A que hora chegaremos?" "Não sei, depende do tráfego." Liguei para o amigo que me oferecera a carona: "Obrigado, mas vou mesmo no avião da carreira, que me parece o mais confiável. Tenho um compromisso ao qual não posso faltar".


Marquei minha passagem para as 10 horas e fui para o aeroporto de Brasília certo de que chegaria a São Paulo às 11h30. Doce ilusão. Dentro do avião, avisaram que, por uma falha técnica -um dos motores acusara alta temperatura-, tínhamos que esperar. Fiquei 40 minutos lendo os jornais. Depois, mais 30 na fila de espera para a decolagem. Enfim, ao chegarmos a São Paulo, fomos avisados de que havia outra fila e teríamos mais uns 30 minutos de vôo. Com paciência, conformei-me. Milton Campos contava que, certa vez, numa situação dessas, ficou angustiado. Um companheiro ao seu lado perguntou-lhe: "falta de ar, doutor Milton?". "Não, falta de terra".


Saltei rapidamente e peguei o táxi. Chovia. Duas horas de trânsito me afastavam do restaurante. Os nervos -os meus são sempre tolerantes- agüentavam. Liguei para meus convidados do esperado almoço. Disse-lhes do meu sofrimento. Estava tudo parado. Responderam-me que o mesmo acontecera com eles, e docemente esperei que o tráfego andasse. Nada. A avenida Brasil estava cheia e intransitável. O locutor de uma rádio, do helicóptero, afirmava que havia na marginal um congestionamento de 30 km. Dei graças a Deus. O nosso não parecia tão grande. Eram 15 horas quando entrei no restaurante. Meu editor e meu livro cederam lugar aos comentários sobre o futuro das cidades com uma área de ruas limitada. "Será que não descobriremos uma pílula para automóveis?", foi minha saudação aos amigos com quem iria almoçar. "O diabo", respondeu-me um deles, "é que os automóveis não ovulam".


Eu, que vi na minha juventude a "garoa do meu São Paulo", na expressão de Mário de Andrade, via agora a fumaça do trânsito. E a data do lançamento do meu livro ficou para outro almoço.


Ou engarrafamento.


Folha de S. Paulo (SP) 28/3/2008