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Autran relê Machado

 

Há, no conto, uma verdade poética, um tom de música de câmara que o torna uma arte de compreensão, com as palavras que o compõem sugerindo mais do que dizendo. Às vezes, até a prosa ganha o ritmo do verso, com trechos de sete sílabas, ou decassílabos, imiscuindo-se no caminho da narrativa, levando-a ao limite mesmo do poema puro e simples. Assim vejo a obra de narrador realizada por Autran Dourado, que vai mais longe agora com seu livro recente, "As imaginações pecaminosas", em que dá uma nova dimensão ao conto brasileiro.


Desde a primeira história, com Valeriano e Orozimbo Preto, num encontro de duas páginas e um terço, que a economia - ou exigüidade - vocabular do autor risca a narração com uma rapidez de arma soltando fogo. Passando pela morte de Emílio Amorim e pelos 10 nomes de Deus, de Ensoph até Adonay, acontecimentos e mortes ganham um viés lírico, examinando a mulher "Aquela destelhada", com nome e sobrenome, atravessando solenemente o diálogo de Cora e Josias (diálogo que é também monólogo e silêncio), em tudo agindo o narrador como preparativo para as páginas finais do livro em que Machado aparece como herói de uma literatura.


Trazer Machado a um trecho de agora, principalmente do modo como o faz, significa também um domínio da linguagem brasileira, que o ficcionista de hoje usa com estranha e poderosa intimidade.


Antes de voltar a Machado, acentue-se que sempre vi a força da ficção de Autran Dourado como estando na acuidade solene de uma técnica narrativa que se esconde. Explico: é no domínio de uma narrativa interna que Autran Dourado atinge o ápice de seus acontecimentos e de seus personagens.


E o importante é que o autor não apresenta recursos técnicos muito evidentes. Consegue dar uma fluência tal a seus relatos que o resultado, algo fluido, se escoa sem os alteamentos quase sempre provocados pelo uso de repetidos truques de técnica. Autran Dourado vai direto ao seu assunto, em contos que transmitem exatamente o que o autor quer dizer.


O final do livro - "Mote alheio a voltas" e "Provocação do visitante" - é do que de melhor apareceu na literatura brasileira nos últimos tempos. O autor pega (o verbo é mesmo este: pega) o conto de Machado de Assis, "Missa do galo", e com ele faz um comentário narrativo de bela feitura. Daquele começo - "nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos" - extrai Autran Dourado uma análise em que a personalidade inteira da personagem de Machado como que depõe diante do leitor o espírito daquela noite.


O que interessava à "senhora" era a fala, a voz, o som do que o jovem dizia. Interpreta o escritor de hoje o que na realidade aconteceu entre Conceição e o rapaz: "Tão perto agora um do outro, que ela sentia o cheiro quente do hálito, o calor da cara, e não sabia se tudo era efeito da luz ou da conversação toda feita de cochichos, a respiração suspensa, o coração saltando.


A fim de não perder uma gota do calor úmido, do estremecimento das palavras (suspiros, gemidos abafados, toda ela uma flor delicada, aberta) disse a Nogueira num sussurro, pela primeira vez, mais baixo: mamãe pode acordar, e levou o dedo aos lábios, pedindo surdina."


O que Autran Dourado faz, nesse ato de puxar Machado de Assis para seu esforço de interpretar, reviver, a noite criada pelo bruxo há tantos anos e inserir, nessa noite, uma cena e uma seqüência de sentimentos que vivem como se verdadeiros fossem - o que ele faz, repito, é de uma sabedoria literária rara.


Com isto, consegue surpreender alguns mistérios do ser humano e fixar momentos da consciência das gentes, mas sem pompa. Naturalmente. Até o método, que adota, de incluir uma quantidade razoável de entre parênteses para realçar, ou explicar, ou iluminar, a ação que Autran Dourado insufla no conto de Machado de Assis, como que transforma sua forma narrativa em poesia que faz questão de mostrar que o é.


Ao mesmo tempo em que interpreta personagens de Machado, Autran Dourado analisa sua própria participação no mundo machadiano. Pergunta-se como deverá mostrar a Conceição que Machado inventara, lembra os olhos aciganados de Capitu e pensa em Rubião louco de amor, como se todos os homens e mulheres inventados por Machado se reunissem na sala em que a "conversação" entre Conceição e o jovem se desenrolava.


"As imaginações pecaminosas", de Autran Dourado, é um lançamento da Editora Rocco. Ilustração de capa de Ciro Fernandes.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 29/03/2005

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 29/03/2005