O intelectual vem perdendo audiência e credibilidade. Sua cotação na Bolsa de Valores, e até na dos "amores", nunca foi tão baixa
Ainda há pouco se falava, com certa precipitação, no "silêncio" do intelectual. Agora se acusa, com a mesma ênfase, a palavra descalibrada do intelectual. Em nenhum instante se perguntou sobre o que resta do intelectual, freqüentemente acomodado ao ritmo lento, em tempos tão acelerados.
Nem mesmo se indagou com quantos livros lidos ou com quantos aparecimentos no palco, na tela ou na telinha se faz um intelectual. A dieta é cada vez mais ascética. Em princípio, todos são intelectuais. Pouco importa a qualidade do texto, da imagem ou do discurso monotonamente repetido. O que conta é a freqüência ou a audiência. Até a dos que escutam sem ouvir. Ainda outro dia, Lima Duarte, profissional íntegro, porque não fala sobre o que não conhece, disse umas verdades que incomodaram. Aliás, as verdades incomodam sempre. Ao contrário das mentiras, que preservam pelo menos a função analgésica. Albert Camus, que era autor e foi também ator e diretor de teatro, disse que o "ator é um mentiroso sincero". Camus, todo cercado pelo sol mediterrâneo e pela razão cartesiana, dizia coisas muito estranhas. Em uma ocasião, na primeira linha de um livro, adiantou: "É preciso imaginar Sísifo feliz". Mas isso não acontece a toda hora. É claro que, ante uma personalidade estética e ética como Fernanda Montenegro, a gente volta a acreditar na sinceridade e na felicidade. Na nossa primeira modernidade, a modernidade das luzes, não a dos holofotes, o intelectual acreditou demais na sua missão salvacionista. Ele distribuía suas benesses verbais com o inflexível sotaque autoritário herdado do velho republicanismo. Liberdade, igualdade e fraternidade mantinham-se como legendas confiáveis. Hoje, mudaram os tempos ou mudamos nós?
Certamente os dois. Somos, ao que tudo indica, e conforme as palavras irreverentes de Peter Sloterdijk, "sintomas da economia da simulação". Predominam, nas mídias de todo tipo, a prática e o elogio do simulacro, exibidos por atores insinceros e Sísifos adiados. Veja-se o grande teatro do mundo, ou, mais perto de nós, o horário eleitoral ou certos noticiários, aqui e ali, a encenação tenaz da falsificação. O intelectual, esse personagem desencontrado, fascinado menos pelas luzes da ribalta do que pelos refletores do cibermundo, vem perdendo de uma só vez audiência e credibilidade. A primeira, por não conseguir acompanhar a velocidade dos nossos dias. A segunda, porque andou se comprometendo com causas nada relevantes. Nos dois casos, porque confundiu incoerência com originalidade -o seu esquivo objeto de desejo. O fato é que a cotação do intelectual na bolsa de valores, e até na dos "amores", nunca andou tão baixa.
O intelectual se vê às voltas com a questão da identidade, individual e coletiva. Seja o intelectual enquanto opção de vida, destinação inevitável, tarefa cotidiana, seja remetido contra o pano de fundo da sociedade e da nação transnacional. Ele instiga e mobiliza o desafio identitário. Com agravantes atuais: o prestígio do mal e a naturalização do caos. Não é difícil perceber, por trás dessa mímica vazia e opaca, a vontade autoritária, alcoolizada ou não. Talvez seja tão somente o aparecimento previsível do déspota desesclarecido. Faço votos de que esteja eu equivocado. No palco dos sentimentos e das idéias, ou na feira das vaidades, persistem dois tipos de intelectuais: o midiático e o ilustrado. O midiático é a contrafação útil e o exemplo inútil. O acadêmico, circunscrito ao meio universitário, não raro se acha acometido de crises de claustrofobia. Não se trata, de modo algum, de restaurar a velha ética, prescritiva e sentenciosa, porém de instaurar a ética comunicativa, dialógica e livre. Consciente de que o limite da liberdade é a responsabilidade. Enganam-se, estes sim, os que consideram a ética um anacronismo totalmente dispensável. Porque a política sem ética não passa de terra de ninguém, vale tudo, caratê eleitoral. E, nessa hora, ainda mais, o intelectual crítico, constitutivamente inorgânico, reflexivamente emancipado, tem alguma coisa a fazer.
Folha de São Paulo (São Paulo) 03/02/2006