Se houve um brasileiro que, desde a juventude, tenha marcado seu nome com o selo de uma atitude que o fixou para sempre na cultura de seu e nosso povo, este brasileiro foi Astrojildo Pereira. Aos 17 anos de sua idade, soube aquele jovem estudante que Machado de Assis se achava à morte, na mesma hora dirigiu-se para a casa do Cosme Velho e pediu para ver o escritor. À porta, José Veríssimo, que ali se achava, perguntou-lhe o nome e deixou-o entrar. No quarto se aproximou de Machado, que morreria naquela mesma tarde, ajoelhou-se e beijou-lhe a mão. Comovido, Euclides da Cunha, que lhe viu o gesto, publicou um artigo em jornal dois dias depois contando a visita do jovem, declarando ver, naquele imberbe admirador, o próprio símbolo da força de Machado na cultura de nosso povo.
Esse Astrojildo, que escreveria mais tarde algumas das páginas mais originais sobre a obra de Machado de Assis, seria também um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro. Em 1919, escreveria um artigo chamando o sol de "sol camarada!" e "sol anarquista!".
Veja-se o ano de 1922 no Brasil: em fevereiro, se realizaria a Semana de Arte Moderna em São Paulo, em março Astrojildo Pereira fundaria, com um grupo de companheiros, o Partido Comunista do Brasil. A data exata foi 25 de março de 1922, na Praça da República, 40, no Rio de Janeiro, conforme estatutos publicados no "Diário Oficial" de 7 de abril seguinte. Assinaram o manifesto Astrojildo Pereira, jornalista; Cristiano Cordeiro, contador; Luís Peres, operário vassoureiro; Hermogênio Silva, eletricista; Manuel Cendon, alfaiate; João da Costa Pimenta, gráfico; Joaquim Barbosa, alfaiate; José Elias da Silva, sapateiro, e Abílio de Nequette, barbeiro.
É o que narra um livro precioso, publicado este mês no Brasil, "Viva, Astrojildo Pereira!", organizado por J. R. Guedes de Oliveira. Nele aparece parte da obra de Astrojildo, principalmente sobre Machado de Assis, mas também sobre Lima Barreto, mas o que ocupou a maior parte de sua atividade foi sua atuação política: procurou criar um marxismo original que levasse em conta duas heranças: a da tradição revolucionária mundial e da cultura nacional brasileira, que via como base de qualquer avanço.
Jornalista e gráfico, desde cedo se preocupou Astrojildo com a situação social do brasileiro do andar-de-baixo e, preocupando-se, dela se ocupou a vida inteira, a começar na juventude quando se tornou militante do movimento operário brasileiro da vertente anarco-sindicalista. Escrevia para jornais, falava, discutia, participando ativamente da oposição à ordem liberal e oligárquica nacional como também às guerras imperialistas de então.
Os nomes de Octávio Brandão e Paulo de Lacerda ficaram unidos ao de Astrojildo naquele começo de uma luta difícil em favor da um Brasil novo. O que ele queria, nas muitas páginas que escreveu, era um governo que lutasse por uma distribuição de renda mais justa e que resolvesse problemas ainda hoje insolvidos como o de mau-uso e desuso das terras que temos. Lutava ele, como todos nós, pela educação do povo todo. Atravessou os anos 20 e o período de Getúlio sem interromper um trabalho de tentar convencer seus concidadãos de que a solução estava num governo mais popular. Escreveu, participou de congressos e debates, de reuniões de todos os tipos, deu aulas, escreveu livros, conversou.
Exatamente essa luta é que faz parte do livro de José Roberto Guedes de Oliveira, de leitura obrigatória para todos os que perscrutamos as possíveis saídas que se nos abrem para um futuro próximo. Através da leitura de livros como este, com o governo Lula atravessando momentos de luta em prol de uma estabilidade mínima, vale a pena que se tome conhecimento do esforço de Astrojildo Pereira no sentido real de nos convencer a todos de que não somos um povo privilegiado, mas, sim, uma bem pequena minoria privilegiada, cercada de milhões de pessoas que não participam das vantagens de uma sociedade organizada.
De meu conhecimento pessoal com Astrojildo Pereira, lembro-me dos inúmeros encontros que tivemos na Livraria São José, que ele freqüentava muito, principalmente em lançamentos literários, e por onde eu passava umas duas ou três vezes por semana em busca de notícias literárias para minha coluna cultural de então. Era um prazer conversar com ele sobre Machado e Lima Barreto: gostava de falar de seus assuntos. Disse-me certa vez do parentesco existente entre Machado e Lima Barreto. Acentuou que eles representavam a mesma sociedade, vista pelo avesso. Os dois acabaram por abandonar um romantismo muito brasileiro na época, tendo Machado alcançado um realismo puro, não inteiramente diverso do realismo natural de Lima Barreto.
Dos encontros que tive com Astrojildo, lembro-me, acima de tudo, de um homem civilizado, que não só lutava para que todos os brasileiros também o fossem, mas também acreditava que isto poderia acontecer através de uma reforma social. Precisamos de outros brasileiros assim. Que o livro de José Roberto Guedes de Oliveira consiga, através dos exemplos e opiniões que mostra nesta biografia, revelar aspectos do Brasil que às vezes nos escapam.
"Viva, Astrojildo Pereira!" apresenta algumas dezenas de opiniões e muitos depoimentos de contemporâneos do biografado, de tal modo que a figura de Astrojildo ganha um realce fora do comum. Dias Gomes, Nelson Werneck Sodré, Oscar Niemeyer, Artur da Távola, Otto Maria Carpeaux, Austregésilo de Athayde, Antonio Houaiss, Stepan Nercessian, Martin César Feijó, Thiago de Mello, Xavier Placer, Edgar Carone e Hiromar Hart Reis são alguns deles. Lançamento da Fundação Astrojildo Pereira/Abaré, edição de Francisco Inácio de Almeida, revisão de Fernando Pardellas, projeto gráfico de Tereza Vitale, editoração eletrônica e capa de Daniel Dino.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 24/1/2006