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Aqui, como na Síria

 

Foram duas cenas abomináveis do nosso mundo novo: a primeira, na Síria, do relato de uma senhora tentando expressar o horror de ver “crianças de 7 anos sendo violentadas” pelos monstros do Estado Islâmico. A segunda, no interior de São Paulo, de um brutamonte desvairado espancando a ex-namorada indefesa com murros, joelhadas e pontapés. É difícil comparar atos de brutalidade como esses, até porque o primeiro é nefando. Mas nem por isso se pode esquecer que o Brasil tem registrado mais mortes violentas do que aquele país em guerra. De 2011 a 2015, por exemplo, foram 278.839 homicídios, latrocínios, lesões corporais, enquanto lá foram 256.124 casos do mesmo gênero, com a agravante de que há mais interesse em discutir como resolver o que ocorre nas cidades sírias. “Aqui, a gente faz de conta que o problema não existe”, disse o diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima. “Teima-se em não assumi-lo como prioridade nacional”.

De fato, nem agora, durante a campanha eleitoral, os candidatos deram ao problema a dimensão de tragédia que os números denunciam. Não ofereceram, dentro de suas atribuições legais, propostas para um país onde uma pessoa é assassinada a cada nove minutos, perfazendo 160 mortes por dia ou mais de 58 mil por ano. Não sei se existe outro que, em tempos de paz, tenha igual taxa de letalidade, ou seja, tanta disposição de matar violentamente. Se isso não constitui algo como um genocídio capaz de nos escandalizar, é porque a vida passou a valer muito pouco mesmo. E não são “apenas” mortes. Somos campeões em estupros também. São mais de cinco por hora, num cálculo conservador, porque, segundo o relatório do Fórum, muitos casos não são registrados em delegacias, por vergonha ou medo de represália. 

A 10º edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que está sendo lançada agora com todos esses dados, devia ser consulta obrigatória para uma tentativa de integração de município, estado e União em torno dessa dramática e urgente questão.

Ainda bem que as crianças têm Ziraldo, que consegue ser lido mesmo em tempos de iPad. Minha neta de 7 anos é um bom exemplo dessa geração anfíbia, que transita à vontade com um dedo na tela e outro nas páginas. Leitora do “Menino Maluquinho” desde quando não sabia ler e os pais liam pra ela, Alice tem um grande programa hoje, às 16h, na Livraria Travessa do Leblon: ir ao lançamento de “Meninas”, um belo texto poético de Ziraldo, com desenhos lindamente coloridos pelo Renato Aroeira. “É o livro que faltava ao autor”, como ele mesmo escreveu, e talvez o único que fazia falta à coleção dela.

O Globo, 05/11/2016