Menina, é tanta coisa que a pessoa não sabe por onde começar. Nunca na História deste país teve tanto assunto por aí dando sopa. Mas ouso crer que as eleições municipais no Rio de Janeiro talvez mereçam especial atenção da parte do estudioso, pelo que trazem de novidades e características singulares, além de nos acenar, muito em breve, com um novo Brasil. Os habitantes deste país, particularmente do Rio de Janeiro, já nos acostumamos (cartas sobre essa concordância aí para o editor, por caridade) à existência louca que levamos e talvez até tenhamos dificuldade em ganhar a perspectiva necessária para observar aonde estamos indo. E não é que eu tenha essa perspectiva, tenho somente umas intuições a que os fatos parecem nos levar.
Para começar, como é complicado fazer campanha municipal no Rio, hein? É bem verdade que há muito que a cidade não tem prefeito e os vereadores parecem servir exclusivamente para receber subsídios, dar medalhas, sacramentar aumentos nas passagens de ônibus e descolar foro privilegiado. Mas as eleições estão sendo disputadas, até porque o sujeito ganha e/ou furta, para cumprir essas funções, são empregaços. Em toda parte há cada vez mais especialistas em todos os aspectos do emaranhado processo que os tratados políticos franceses, com a aura de gozador que todo tratado político francês tem, chamam cinicamente de ''escolha de governantes''. E no Rio ainda há necessidade de um esquema adicional, pois, como sabemos todos, os candidatos só podem entrar em certas áreas da cidade depois de obter permissão do chefe do tráfico local, que acumula (sonho de muitos) os poderes executivo, legislativo e judiciário locais. Na verdade, ninguém pode entrar lá sem autorização ou pelo menos permissão implícita em alguma circunstância. O presidente da República, por exemplo, pode. Se mobilizar, como já mobilizou, um esquema de segurança semelhante ao que imagino terá Bush no Iraque, ou mais. Outras autoridades precisam igualmente solicitar permissão e algumas nem tentam, porque sabem da resposta negativa que receberão.
Cria-se toda uma nova especialidade, todo um novo e promissor mercado de trabalho, sem nos darmos conta. Se já não existem, deverão existir daqui a pouco firmas e profissões especializadas em contatos desse tipo, uma espécie de agenciadoras. O terreno promete, porque a cada dia aparece nova área onde só se entra depois de acordo com o governo local. O governo estadual devia criar a Secretaria Especial de Relacionamento com Comunidades Difíceis, ocupada preferivelmente por um experiente diplomata aposentado. Isso poderá significar muitos passos à frente, em relação ao que temos hoje.
Talvez, por exemplo, se consiga, ao menos em algumas ou na maioria dessas comunidades, que se negociem medidas para facilitar a vida de todo mundo. Os governantes das comunidades, ou seja, os grandes traficantes, emitiriam seus próprios passaportes e seus próprios vistos. Um mesmo passaporte poderia servir para várias comunidades, contanto que tivesse o visto de cada uma delas. Cobrar-se-ia, claro, uma taxa pelo visto e o passaporte só seria válido pelo prazo concedido, conforme o carimbo de um dos pontos oficiais de entrada e saída das comunidades. Tenho certeza de que, levada a sério, essa simples solução traria efeitos muito positivos para todos os interessados, inclusive para o chamado crime organizado, cujo funcionamento ainda deixa margem para críticas e cuja imagem precisa ser mais bem cuidada. Não pode dar a impressão de que é um crime organizado desorganizado, como às vezes acontece, o controle de qualidade é essencial.
Nos domínios do tráfico, segundo nos consta, o processo de escolha de governantes não costuma ser o voto. O fato de que votamos eletronicamente, em urnas nas quais nenhum consertador de caça-níqueis proibidos bota fé, não é o fator principal, não é nem fator. De qualquer maneira, eles escolhem lá seus governantes segundo seus métodos tradicionais. Mas não eleger representantes para tratar dos interesses deles ''aqui embaixo'' não somente os deixa um pouco excluídos e carentes, como eles correm o risco de ser ultrapassados. Já há muitos gângsteres em atividade nos três poderes do Estado cuja sofisticação aumenta cada vez mais, até com uma eventual prisãozinha de um dia ou dois, para satisfazer a sanha odienta dos despeitados, dos derrotados e da imprensa. Então o negócio é eleger mais gângsteres, que pelo menos partilhem do bolo geral e contribuam para maior eficácia da bandidagem como um todo.
Aí fica mais fácil explicar ao gringo. O governo aqui é de direita ou de esquerda? Esquerda ou direita, o que é isso? Já passamos dessa fase obsoleta há muito tempo. Os governantes aqui, abrangendo, naturalmente, todos os três poderes, são de dois tipos: os gângsteres diretos e os indiretos, sendo que geralmente existem alianças entre ambos, para facilitar os furtos e as fraudes. O restante, uma minoria insignificante, os demais políticos, vive pelos cantos, murmurando frases sem nexo e de vez em quando trocando de partido, ou para quebrar a monotonia ou porque lhe avisaram que na outra legenda ainda tem vaga de ladrão, homicida, estelionatário, CG (corrupto geral, na gíria parlamentar), xepeiros orçamentários e assim por diante.
Oposição? Sim, historicamente, sempre tivemos uma Oposição tenaz, capaz de enfrentar com denodo o martírio de ver a Situação roubando e ela de fora. Ou seja, a Oposição se compõe basicamente dos políticos que não estão se locupletando. A ideologia da Situação é se manter no poder e prosseguir larapiando. A ideologia da Oposição é chegar ao poder para larapiar também. E o lema de ambas é de tradição vetusta e nobre: ''Hodie mihi, cras tibi.'' Ou seja, mais ou menos ''hoje pra mim, pra você só amanhã''. Política é cultura.
Folha de S. Paulo (SP) 27/7/2008