A coisa está boa, pelo menos do ponto de vista de quem precisa achar assunto para escrever, cruel fadário de cronistas, colunistas e assemelhados. Mais uma vez bendigo a sorte de não padecer de falta de assunto, mas de excesso. Olho as gazetas, é um nunca-acabar de novidades, inclusive algumas que a gente não entende bem, ou não entende nada, como o superávit primário. Posso estar esclerosado, mas não me recordo dessa conversa de superávit primário no passado. Deve ser parente do desenvolvimento sustentável ou da já talvez prematuramente abandonada espionagem participativa, de que cogitou o governo faz algum tempo. Vocês podem ter esquecido, mas falaram, sim, em espionagem participativa, a espionagem como direito básico de todo cidadão e mais uma lacuna que seria preenchida pela nova administração.
No começo, vergonha das vergonhas, cheguei a pensar que o superávit primário era uma rara característica desairosa do Brasil, um superávit sem o menor preparo, destituído de sofisticação, atrasadíssimo e empecilho ao nosso sempre iminente ingresso no celebrado Primeiro Mundo. Ficava imaginando a vergonha de nossos diplomatas, confrontados com analistas estrangeiros a debochar do nosso superávit, de tão primário que ele era. Mais tarde, desconfiado de que laborava em erro, passei a prestar atenção às explicações dadas por economistas nos jornais e na TV. Continuei sem compreender patavina (se não existir mais a palavra “patavina”, ou for considerada arcaica, peço desculpas e faço a errata: leiam “bulhufas”, que dá no mesmo e, apesar de também meio velha, pode estar contida no vocabulário de 120 palavras que o governo aparentemente descobriu que é o dominado pelos estudantes da rede pública, incluindo nele grunhidos, muxoxos, arrotos, “foi mal”, “fala sério”, “valeu”, “parada” e “super”, este como adjetivo e advérbio universal).
Mas sabe-se muito bem que o português é língua inadequada para a expressão de qualquer pensamento complexo, embora sirva esplendidamente para descrever mutretas de toda espécie concebível e para explicar que o que se defendia ontem deve ser atacado hoje, ou vice-versa. Faz-se um esforço para transcrever o inglês original para a nossa assim chamada língua, e o resultado não vem sendo promissor, ao menos no caso de inteligências nanicas como a nossa (com exceção da sua, é claro), já viciadas em falar neandertalês desde o bom padre Antônio Vieira, que, por penúria de recursos do idioma, de vez em quando era obrigado a recorrer a um latinzinho. De qualquer forma, tirando pelo orgulho com que governantes falam em nosso exuberante superávit primário, deve ser uma coisa fantástica, motivo de sobranceria para todos. Leio aqui que o superávit primário atingiu 6,58 por cento do PIB, suplantando em muito a marca determinada pelo FMI, que era de 4,25 por cento. Eles não conhecem a gente, pensam que a gente é pouca porqueira. Taí o superávit, para esfregar na cara deles e obrigá-los a oferecer uma festinha para nós, talvez na tradicional data nacional do Halloween.
Pois é, é para isso que serve o superávit primário, para esfregar na cara deles e mostrar que a taça do mundo é nossa e com brasileiro não há quem possa. Consegui também entender que sua existência significa que o governo tem dinheiro sobrando. O que faz com esse dinheiro já é outra questão. Quiçá sejam fundados os rumores de que se destina a prover recursos para as bandalheiras que serão objeto de rigoroso inquérito (aliás, pensando bem, o rigoroso inquérito também está fora da moda, acho que teve o mesmo destino das advertências à nação que os comandantes militares antigamente se sentiam na obrigação de fazer, ordem do dia sim, dia não). Tem que haver superávit, para o país poder suportar o pesado fardo da pilhagem e assim preservar sua ameaçada identidade e não sofrer mais crises socioeconômicas, cortando a fonte de renda de uma indústria que gera milhares e milhares de empregos e talvez até haja contribuído para a jubilosa estatística de que temos mais milionários agora. E mais miseráveis também, mas não se pode ficar querendo ver somente o lado negativo, assim o catastrofismo acaba voltando.
Excetuando isso, não se sabe ainda em que o governo vai usar o dinheiro, embora uma bela grana já tenha sido investida naquela farmácia da Bahia que o presidente inaugurou. Esperemos, que vem coisa aí, como nos dizem desde que nascemos. E, vejam vocês, o espaço acaba e terminei por só abordar um dos assuntos que compõem a pletora (esta vale, acho eu, embora, a julgar pelos citados relatórios educacionais, requeira pós-graduação) mencionada. Faltou a caravana das drogas, show de bola do Ministério da Justiça, que deve estar usando uma merrecazinha (falaram-me em 200 mil dólares, o que não dá nem para uma propina decente hoje em dia) do superávit primário para assim mostrar como estamos vencendo o combate às drogas e ao tráfico - e é capaz de sair, vitória das vitórias, na CNN e no “New York Times”.
E as poses eróticas fotografadas no Ministério da Agricultura? Acredito tratar-se também de inovação revolucionária. Agora vai ficar difícil dizer que não há transparência no governo. Mais transparente do que ficar pelada num recinto do governo só tirando chapa de raios X, o que, convenhamos, não atenderia tão bem ao interesse público quanto as fotos de uma servidora levantando a saia e mostrando um dos produtos nacionais mais respeitados, no qual sempre nos destacamos. Que é que vocês querem mais, reforma agrária? Certamente não é verdade, mas chega a comover, o Ministério da Agricultura reforçando a secular asserção de que aqui, em se plantando, todas dão. A coisa está boa, a coisa está ótima e sobrou até para a consolidação da imagem internacional da mulher brasileira. Bom superávit primário para vocês também, nós somos um povo abençoado.
O Globo (Rio de Janeiro - RJ) 27/06/2004