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Alegria, alegria

 

Recebi reclamações sobre o domingo passado. Fui, principalmente, acusado de estar de mau humor. Vejo-me obrigado a concluir, como era costumeiro antigamente, que o freguês tem sempre razão. Que história é essa de fazer comentários desalentados sobre o mundo em que vivemos, quando basta mudar os filtros com que observamos a realidade? Grande verdade, que se incute em minha mente de maneira irrefutável, enquanto saio mais uma vez de uma sessão com um dos conceituados membros de minha malha médico-odontológica, onde apenas uma horinha de tortura me aguardava, como, aparentemente, me aguardarão muitas e muitas outras dessas ocasiões educativas, numa quadra da existência em que cada vez mais tempo é dedicado à manutenção. É, egoísta e autocentrado é o que sou. Fico chateado porque, seguindo a ordem natural das coisas, tudo em mim começa a despencar e, entre muitas outras medidas de contenção de encostas, atacam minha mandíbula com uma Black & Decker e aí desconto em cima dos leitores, que não têm nada a ver com isso.


Perdão, encantadora leitora, gentil leitor, é mais um da minha vasta coleção de defeitos. De fato, uma furadeira aplicada no osso da queixada traz alguma inquietação, mas que é isso diante das recompensas que a vida nos prodigaliza? Para aproveitar o tempo escasso, compro jornais na saída do consultório e vou dando uma olhadinha, enquanto o táxi me leva para outro dentista, que complementará o serviço, eis que os dentistas, em notável evolução, passaram a especializações crescentes - um se especializa em mandar abrir a boca, outro em futucar os dentes, outro em borrifar sprays em gengivas, outro em preparar cáries, outro em obturá-las e assim por diante. Sensibilizo-me diante do progresso e noto como efetivamente o jeito de ver o mundo afeta os sentimentos.


As boas novas estão patentes, é só querer ver. Por exemplo, como tantos de vocês, eu ainda não havia assimilado meu novo status socioeconômico. Observem o que um bom governo pode fazer sem complicações, com uma mera decisão que não requer mais do que um par de declarações, uma ou outra portariazinha, ou quiçá uma medida provisória. Os que, entre nós, se consideravam mal e porcamente remediados passaram a ser ricos. Quem ganha aí seus três mil reais por mês é rico, afirma o governo. Já imaginaram como essa transformação revolucionará nossas vidas? Você, que acaba de comprar este jornal, abdicando de outro para poder tomar um chopinho ou dois, deve comemorar. Somos ricos e, com orgulho, nos preparamos para entregar ao governo o resto do dinheiro que ainda nos chega às mãos. Deve ter sido isso que eles queriam dizer, quando falavam em taxação de grandes fortunas. Os muitíssimo ricos continuarão sem pagar, mas nós, os ricos normais, pagaremos, é a famosa redistribuição de riqueza. Eu, burramente, via isso como redistribuição de pobreza, mas não é correto. E, quando estivermos mendigando na rua para complementar nossos ganhos indecentemente altos, poderemos exibir no peito um cartaz gabola: “Vítima da taxação de grandes fortunas.”


E nosso programa de recuperação de criminosos encarcerados? Erram crassamente os que se escandalizam com o que se mostra e se sabe sobre a situação nos presídios. Qualquer brasileiro tem convicção de que o uso de telefones celulares é direito humano fundamental e, portanto, não pode deixar de ser estendido a uma pessoa somente porque ela foi condenada por cometer uns quatro homicídios. Quanto à droga disseminada nas prisões, não estaria ela enquadrada nas atividades recreativas indispensáveis para a reintegração do apenado na sociedade? E o comércio não é, afinal, uma atividade econômica produtiva, que gera renda e empregos? Há muita incompreensão em torno disso e não será outra a razão por que cidadãos inconformados recorrem a atitudes extremas, metralhando, para citar somente uma nova moda, postos policiais em São Paulo. Tenho certeza de que, se o traficante, assassino ou assaltante fosse tratado com a deferência merecida, isso não aconteceria.


No Rio de Janeiro, mostram aqui várias matérias, as pessoas começam a dispor de opções de lazer em generosa fartura, o que certamente também ocorre em outras grandes cidades brasileiras. Os clubes e serviços de sexo livre e assemelhados experimentam um boom sem precedentes e agora a estabilidade da família tradicional, tão ameaçada pelas vertiginosas mudanças hodiernas, recebe reforços inestimáveis. Qualquer casal pode quebrar a monotonia e trocar parceiros, bastando procurar os inúmeros estabelecimentos do ramo, onde, segundo me contam, são encontrados personal copulators , personal perverts e outros profissionais qualificados, para a satisfação de todos os gostos ou fantasias.


Está certo, não chegamos ainda aos píncaros do ambicionado Primeiro Mundo. Não podemos nos gloriar de um bom episódio de canibalismo, como o da civilizadíssima Alemanha, onde está se revelando a existência de um significativo contingente de indivíduos desejosos de comer outros ou por estes serem comidos. Opinará o superpatriota que isso aqui também temos de sobra, mas não falo figurativamente, falo literalmente. Ainda não chegamos lá, porém chegaremos. É só certos ministros descobrirem isso e fazerem alterações no até hoje claudicante programa Fome Zero. Sugiro que, em coerência com ações anteriores, se inicie a comilança por velhos aposentados e nordestinos. Não haverá de ser a melhor carne, mas dar-se-á um forte estímulo aos produtores de amaciantes e condimentos, para não falar no alívio das contas da Previdência e dos serviços públicos básicos. É isso mesmo, por favor desculpem o mau humor anterior, foi um deplorável equívoco. O fato é que temos todas as razões para sorrir largamente. Sem dentes, mas também, como não cesso de lembrar, não se pode querer tudo neste mundo e com má vontade é que não se vai para a frente.




O Globo (Rio de Janeiro - RJ) em 14/12/2003

O Globo (Rio de Janeiro - RJ) em, 14/12/2003