É claro que aquele papo da semana passada, sobre saudades dos tempos do bom e velho DC3, é meio fantasioso. Talvez para poder achar que a vida foi melhor do que efetivamente foi, a gente filtra as lembranças, amenizando as más e romantizando as boas. Mas a verdade é que não desperta muita saudade recordar o bom, o velho DC3 baloiçando ao vento debaixo de chuva, com a senhora ao lado deitando os burros n'água não tão discretamente, a boca colada num saquinho de papel. E as viagens longas eram muito chatas, apesar do serviço de bordo extraordinariamente caprichado sob qualquer ponto de vista, muito especialmente os padrões de hoje. Faziam tudo para entreter os passageiros (cinema a bordo era quase ficção científica), até mesmo a festa da diplomação dos que estavam cruzando o equador pela primeira vez. Recebiam um diploma personalizado, assinado por Netuno, champanhe ilimitada de graça e bagulhinhos sortidos.
Na verdade, o serviço era tão bom que, com toda a certeza, uma das lenga-lengas de coroa mais ouvidas pelos jovens é sobre como esse serviço era fantástico. Para estes tempos da barra de cereal, era fantástico mesmo, guardanapo de pano, talheres de metal, aperitivos diversos, menus a escolher e vinhos também, além de espaço para usar isso tudo - na classe econômica. Hoje, como se sabe, o destino de alguns viajantes mais duros ou mais pães-duros já é pagar pelo banheiro. E uma companhia pequena, não lembro onde na Europa, está testando viagens curtas com o passageiro em pé. Em pé, apoiado num encosto especial, quase vertical, em que ele amarra o cinto. Acho que há uma alça para ele se segurar, como no metrô, e não sei a que mais confortos tem direito, talvez apenas o de ser despejado no aeroporto de destino, provavelmente na esteira da bagagem. E estou esperando a qualquer momento aparecer uma companhia aérea oferecendo a classe supereconômica, em que os passageiros viajarão em engradados (muito cômodos e, em mais uma atenção ao freguês, forrados de espuma de borracha).
Bem verdade que, houve, em voos da Varig, até churrascos na brasa, preparados numa churrasqueira por um gaúcho a caráter (eu tenho foto para provar, porque sei que acham isso uma certa extravagância - e era, mas não minha), mas daí a querer viajar nas condições técnicas de antigamente, a não ser uma vezinha, para rememorar, a distância é grande. Suspeito igualmente haver certa dose de exagero nas histórias que ouço sobre os Electras da velha Ponte Aérea, que tinham uma espécie de lounge na parte de trás. De fato, muita gente viajava ali, bebericando, fumando e jogando conversa fora, como num boteco fino. Mas acho que não é verdade que havia quem comprasse passagens para a tarde toda e ficasse voando até o último horário da noite.
E, enfim, a respeito de voos de antigamente, tenho uma história, não sei se verídica, que me foi contada há muitos anos, não lembro mais por quem. Ela me foi passada como a expressão da verdade. Deu-se que, num avião de passageiros de antigamente, decerto anterior ao próprio DC3, começou a espalhar-se pela cabine um cheiro de banheiro sujo insuportável. Havia dois banheiros, um em frente ao outro. Investiga-se o assunto, um esperto comissário de bordo descobre que um dos vasos estava entupido, daí aquela fedentina mortal. Usando a criatividade brasileira, o comissário pensou um bocadinho e se lembrou dos extintores de incêndio, daqueles de boca larga e pressão de não sei quantas libras. Claro, um disparo de arma tão poderosa empurraria toda aquela porcariada lá para baixo, solucionando a desagradável situação. Mira cuidadosamente feita, postura de atirador de bazuca assumida, o comissário deu no gatilho. Um estrondo, seguido de um ploft-ploft, ecoou na cabine. O comissário espiou o vaso, olhou para os passageiros que acompanhavam a ação e sorriu, apontando o polegar para cima. Uma salva de palmas é iniciada, mas aí se notou algum barulho ou movimento no banheiro em frente ao recém-desentupido. Silêncio curioso de todos, um pequeno instante de suspense, enquanto a porta desse banheiro se abre muito devagar e dele sai um senhor de paletó e gravata, com a cara de choro e coberto de coco.
Não imagino que esse tipo de acidente fosse comum naqueles tempos heroicos, mas recontá-lo faz as saudades diminuírem bastante. Até as canetas-tinteiro usadas por todo mundo tinham que ser encaradas com cautela, porque a mudança de pressão durante o voo fazia com que elas vazassem e estragassem a roupa do portador. As melhores companhias ofereciam uma capinha especial, de material absorvente, para o freguês guardar sua caneta. Enfim, sem dúvida a era do jato é infinitamente melhor.
É o que penso, enquanto apalpo os bolsos e remexo a sacola, para ver, pela décima vez, se os papéis estão no lugar. Sou representante da numerosa categoria chato a jato e fico insuportável durante quase toda a viagem, inclusive com pesadelos em que esqueço o passaporte e acordo de repente, para procurá-lo, com a certeza de que nunca mais vou vê-lo e serei preso ao desembarcar. Mas isso é uma simples neura individual, a viagem é outra coisa, macia e silenciosa, sem nenhum dos sobressaltos de outrora.
Mas, ai de nós, nada nesta vida é perfeito. Lembro o que vou fazer nesta viagem. Vou fazer algo que sempre insistem que eu faça: explicar o Brasil a uma educada plateia estrangeira, que acha que todo brasileiro mora na Amazônia e está mentindo, se disser que não come ninguém, pois claro que come, só que literalmente. Cheguei a pensar em não mais aceitar esse tipo de missão, mas por que não? Dança-se conforme a música. Até porque não tem importância, pois, quando se conta como é Brasil, ninguém acredita mesmo em nada.
O Globo, 18/9/2011