Pelo que vimos no artigo anterior, o Acordo Ortográfico de 1990, já em plena atividade no Brasil e em boa parte da imprensa portuguesa, é um produto muito intimamente ligado ao Acordo de 1945, vigente na tradição ortográfica lusitano-africana, e que tem, por sua vez, fortes ligações com a reforma que Portugal implantou em 1911, considerada pelos especialistas do ramo a mais acreditada proposta ortográfica até hoje vinda à luz.
Portanto, em poucas palavras, se pode dizer que o Acordo de 1990 participa de muitas qualidades atribuídas à reforma de 1911, que alimenta as Bases do sistema de 1940 que, por sua vez, derrama seus bons frutos em nosso tão apedrejado Acordo de 1990. Quem se detiver a , pacientemente, comparar lição por lição as Bases de 1940 com as Bases de 1990, vai poder acompanhar, quase passo a passo, a mesma redação, surpreender os mesmos exemplos, com pequenas exceções contrárias contidas no Acordo de 1943 que, como sabemos, é a prática vigente no Brasil por mais um ano.
Se existe este círculo, vicioso ou não, como dizia o bruxo do Cosme Velho, em que se encontraram todos esses sistemas, não entendemos por que os mais contumazes críticos portugueses dizem tão mal do Acordo de 1990:"A reforma é um desastre!"; "O Acordo é um erro monstruoso!"; "O Acordo significa a perversão intolerável da língua portuguesa!"; "Ninguém pode passar em claro que o Acordo Ortográfico leva ao agravamento da divergência e à desmultiplicação das confusões entre as grafias e faz tábua rasa da própria noção de ortografia, ao admitir o caos das chamadas facultatividades". Gritos e xingamentos ao Acordo Ortográfico sem nenhum embasamento teórico, como as duas primeiras declarações acima, não passam de histerismos de quem não tem fundamentos, próprios da polêmica do discurso vazio. O terceiro pronunciamento, por falta de comprovação evidente, morre no nascedouro, e é defunto que não merece vela.
Vejamos a última declaração dos argumentos que revelam ignorância, e, quando analisados com o mínimo sopro de conhecimento, caem por terra como castelos de areia. O crítico leviano desconhece e confunde uma gratuidade e desnecessária facultatividade de realidades linguísticas. A boa razão ortográfica elimina a primeira; por isso o Acordo Ortográfico aconselhou não continuar com a dupla 'Egito' e 'Egipto', porque, grafias assim de uma mesma realidade da língua, já que ambas formas têm uma só realidade linguística, as pronunciamos da mesma forma. O mesmo com 'objeção' e 'objecção'. Mas, diante de facultatividades e realidades linguísticas diferentes, como 'António' e 'Antônio', 'bebé' e 'bebê', 'acessível' e 'accessível', entre outras, não podería fugir às duplas pronúncias, traços que são da diversidade linguística inerente a qualquer língua a serviço da comunicação entre usuários. Falcutatividades deste tipo são riquezas da vida democrática que as línguas ostentam. Calá-las é um crime de lesa-pátria. O bom e criativo sistema ortográfico não pode ficar alheio às variedades do idioma. E disto não tem ideia nosso crítico, embora passe como profundo juiz de assunto que não entende.
Está claro que há pontos que precisam ser melhorados nas Bases do Acordo Ortográfico de 1990, como os há nos sistemas ortográficos das nossas mais estudadas línguas de cultura, a inglesa, a francesa, a alemã, a espanhola, a italiana. Que o digam os excelentes estudiosos que elas têm até hoje. Para a melhoria do nosso Acordo há muitos que podem ajudar, dentro e fora dos meios universitários. Defender as facultatividades meramente gráficas, como o crítico, e desdenhar as facultatividades de natureza linguística é, isto sim, fazer "tábua rasa da própria noção de ortografia". (CONTINUA)
O Dia (RJ), 4/9/2011