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Acontecimentos alarmantes na ilha

 

De vez em quando eu fico tenso com a vida na cidade grande, bombardeado por uma massa de opiniões e notícias contraditórias, contaminado pela paranóia geral e assombrado por todos os lados, que me dá vontade, como dá a muita gente, de me pirulitar, como se dizia antigamente. E, imagino que ao contrário da maioria dos que querem pirulitar-se, já tenho até aonde ir. Perdoem-me se repito o que disse o baiano Otávio Mangabeira, mas talvez alguns entre vocês ainda não conheçam essa observação. Segundo contam, ele disse que, quando o mundo acabar, a baianada só vai saber cinco dias depois.


Isso na Bahia. Em Itaparica, que fica perto mas é outro solo, sempre pensei que o prazo seria bem maior, a ponto de o sujeito poder pegar um saveiro lá, ir ao continente assistir um bocadinho ao fim do mundo e voltar para contar ao pessoal da ilha. Sossego, sossego, nada de ler jornal, conversar sobre política ou dar alguma pelota para o que acontece aqui fora. Agora então, que Arquivo morreu - Deus o tenha, se bem que eu tema até pela paciência d?Ele com Arquivo, acho que mesmo São Francisco ia ter de resistir a dar umas bolachas nele -, pode-se pegar uma moquequinha de ostra no restaurante do Negão na santa paz e pode-se tentar reaprender a viver humanamente e sem eventuais ganas de homicídio nos vindo à mente.


Mas este mundo é prenhe de surpresas e as novidades que lhes trago da ilha, em absoluta primeira mão, são, creio que posso dizer, inquietantes, alarmantes mesmo. Recrudesce o movimento separatista que tem raízes seculares e que só não foi à frente, como já lembrei aqui, porque o pessoal ficava adiando a proclamação da independência para a próxima segunda-feira. Dizem - não sei ao certo porque não me confirmaram - que o aplaudido orador Jacob Branco (assim chamado para distingui-lo de seu irmão de pai e mãe Jacob Preto) foi quem trouxe o assunto novamente à baila. Defendeu com brilho que lá somos todos afrodescendentes - e, portanto, negros. Sua tese é que deveríamos entrar logo com uma ação para declarar a ilha um quilombo independente, com direito a uma indenização permanente dada por alguém aí.


Quando o negócio já estava bem encaminhado e eu asseverei que minha avó paterna era mulatona sem a menor sombra de dúvida, garantindo, assim, minha cidadania no novo regime e reforçando o fato de eu haver nascido lá, soube que Sérgio Pita, sempre uma liderança discreta mas eficaz e, além disso negro mina, segundo seu finado tio e meu amigo Zé de Honorina, ou seja, negro abusado, abriu fogo contra esse negócio de todo mundo querer ser negro, não era assim, não, não era para qualquer um, não. Telefonei para ele preocupadíssimo, mas ele me tranqüilizou, pois não só eu sou nativo como uma vez ele viu minha avó e quase toma a bênção, achando que era tia dele. Mas não ia abrir mão de sua posição. Negro com ele não era só no gogó, não, tinha que provar. Edson do bar de Espanha, por exemplo, podia ser metido a negro, mas, com aqueles olhos verdes, ia ter de se submeter a uma perícia.


A discussão esquentou muito e ficou ainda mais complicada porque Totó apareceu com umas complicações de vereador. Propunha a volta da velha tabela racial baiana, cada uma com sua legislação específica. Graças a Deus eu não estava lá, porque soube que quase sai cacete na reunião e Xepa deu um chute na canela de Jacob Preto, porque queria a classificação de mulato craro e não de pardo, como tinha sido solertemente insinuado. Totó lembrou, entre outras, as seguintes categorias: a) nego preto roxinho ou lustroso; b) nego normal, sem brilho na pele; c)mulato escuro, mulato mulato e mulato craro; d)pardo; e)gazo (nego preto a mulato, porém de zóio craro, como Edson); f) cabo-verde (nego preto ou levemente raceado, com o cabelo liso); g)sarará (branco do cabelo duro); h)alemão, nego do cabelo vermelho, ou senão de zóio craro e sardas; i)caboco (nego misturado com uma porção de coisas, até japonês, como havia certos casos na ilha); j)branco-da-terra, o branco de lá mesmo, que todo mundo sabe que também é raceado, como o próprio Jacob Branco; j) e, finalmente, o branco-branco xexelento, como os turistas.


Ninguém concordou em nada e de novo o projeto de independência parecia destinado ao fracasso, quando a figura salvadora de Zecamunista voltou de uma excursão pelo Estado em que tomou dinheiro de meia Bahia no carteado e disse que ali era todo mundo burro, inclusive eu, porque estava na cara que o caminho da independência da ilha não era nada de quilombo e que, se fosse por raça, cada itaparicano era uma raça, inclusive ele, que é raceado até com árabe. Nada de raça, nós éramos todos índios nativos, isso, sim, que estava muito mais na moda. Tínhamos ficado misturados assim por causa das invasões estrangeiras, em terra de homens tão sedutores e mulheres tão de venta acesa quanto a ilha. Mas éramos todos índios e, se uns mil ianomâmis tinham direito a umas duas Dinamarcas, os 30 mil itaparicanos tinham direito a nossa ilha. E foi tão convincente que Sérgio Pita mudou o nome para Tibiriçá dos Santos Ogum-Ê e o próprio Zecamunista declarou doravante se chamar Pataxó Ib?n Harafush Axé-Opô Marx van der Hagen.


E agora ninguém segura mais a ilha, só se os americanos bloquearem, mas não bloqueiam, porque as americanas, ho-ho, não deixam. Zecamunista já criou até a moeda nacional, equiparada ao euro. Espanha se recusou a aceitar a nova moeda em seu estabelecimento, mas os revolucionários imprimiram um milhão de cuiúbas (nome da nova moeda, em homenagem ao saudoso filósofo) no mimeógrafo que sobrou da escola de Seu Didi e agora os gringos que chegarem vão ter de trocar seus euros por cuiúbas, pau a pau. Enquanto o mimeógrafo durar, ninguém pode negar, é o desenvolvimento sustentável.


O Globo (RJ) 29/6/2008