“Ao tempo deste meu Ministério pertence o ato que reputo o mais glorioso da minha carreira política, e que me penetrou do mais íntimo júbilo que pode sentir o homem público no exercício de suas funções: refiro-me à instalação dos dois cursos jurídicos de São Paulo e Olinda, consagração definitiva da idéia que eu aventara na Assembléia Constituinte, em sessão de 14 de junho”, disse em suas Memórias o Visconde de São Leopoldo. O êxito de seus esforços e a participação de tantos outros parlamentares se constitui em algo fundamental para a institucionalização de país ainda carente de instrumentos indispensáveis à formatação do Estado nacional.
Para bem entender os fatos é indispensável recuar na História, que, segundo parêmia latina, é mestra da vida. Nos idos de nossa Independência, o Brasil ainda era um Estado em formação. Ele se edificava desconfiando-se da solidez dos materiais e do terreno, em razão de não haver projetos definidos e instituições estruturadas, de viver o País momentos de intensa ebulição política, sobretudo após a dissolução da Assembléia Constituinte, e da existência de movimentos e revoltas nas províncias.
Esse quadro se prolongou durante toda a primeira metade do século 19, uma vez que somente depois da Revolução Praieira de 1848 é que a Nação desfrutou de relativa estabilidade política. Tobias Barreto, quase 30 anos mais tarde, em discurso de 1887, ainda apontava as nossas precariedades funcionais ao dizer: “Entre nós, o que há de organizado é o Estado, não é a Nação; é o governo, é a administração, por seus altos funcionários na Corte, por seus sub-rogados nas províncias, por seus ínfimos caudatários nos municípios; não é o povo, o qual permanece amorfo e dissolvido, sem outro liame entre si a não ser a comunhão da língua, dos maus costumes e do servilismo.”
As nações, mormente as organizadas em Estado, aspiram a durar e, para tal, buscam firmar suas instituições. É certo que as instituições, porém, necessitam de continuado aprimoramento, não devendo deixar-se anquilosar pela erosão que sofrem no perpassar do tempo.
Conforme destaca em artigo o professor Cláudio Lembo, ex-governador de São Paulo, “a inteligência do legislador do século 19 ao implantar os cursos de Direito é captada de pronto. A par da construção do Império, queriam a preservação da unidade nacional”. Essas considerações nos fazem recordar que direito e política, tão distintos quanto imprescindíveis, devem coexistir, lado a lado, posto que percorrem caminhos de mútua interdependência. À época, o País se dividia regionalmente entre Norte e Sul. Daí as duas escolas - uma no Sul, leia-se São Paulo, e outra no Norte, leia-se Olinda -, medida que tornou possível dotar o País de entidades voltadas para a educação e o desenvolvimento cultural, adestrando recursos humanos e ensejando, igualmente, descentralizar o processo de preparação de quadros no campo do Direito.
As duas escolas de Direito nasceram, como é sabido, pelas mãos do Estado, mas à sombra da Igreja: a de Olinda, no Mosteiro de São Bento e a de São Paulo, no Convento de São Francisco, onde até hoje permanece. Em 1854, a escola pernambucana foi transferida de Olinda para o Recife, por nesta residir a maior parte dos professores e dos estudantes; em 1912, inaugurou-se o prédio onde ainda hoje se situa.
A estruturação do Estado brasileiro, garantindo-lhe a desejada governabilidade, muito deve a dois acadêmicos da Faculdade de Direito de São Paulo: Paulino José Soares de Souza, Visconde do Uruguai, com seus Ensaios sobre o Direito Administrativo (1862), e José Antonio Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente, com a sempre reeditada obra sobre Direito Público e Análise da Constituição do Império (1824).
No território das idéias, a Escola do Recife criticou tanto o tradicionalismo, herdado de Portugal, quanto o positivismo vindo da França. No seu lugar propôs o pensamento jurídico de Rudolf Ihering e o filosófico de Emmanuel Kant, o que representou, na ocasião, um extraordinário avanço.
Os mentores da Escola do Recife, também chamada de Escola Alemã, sob a influência de Tobias Barreto, ao lado de Sílvio Romero e Urbano Santos, propiciaram um grande “aggiornamento” à cultura jurídica e filosófica da época. Tobias Barreto, sentenciou Graça Aranha em sua autobiografia: “Abria uma nova época na inteligência brasileira e nós recolhíamos a nova semente, sem saber como ela frutificaria em nossos espíritos, mas seguros que por ela nos transformávamos.”
Malgrado a distância territorial entre a Faculdade de Direito de Pernambuco e a Faculdade de Direito de São Paulo, em razão da inexistência de estradas e da carência dos meios de transporte, havia algo, a meu juízo, muito proveitoso: um grande intercâmbio, não apenas intelectual, mas igualmente na interação de seus alunos. Muitos iniciavam o curso numa escola e o concluíam na outra. Apenas para exemplificar, Rui Barbosa, patrono do Senado Federal, iniciou o Curso de Direito no Recife e se diplomou em São Paulo; o Barão do Rio Branco, consagrado como o pai da política externa brasileira, começou em São Paulo e terminou no Recife.
Lembrar, pois, os 180 anos do estabelecimento dos cursos jurídicos em nosso país, conjuntamente com todas as instituições devotadas ao Direito, é mais do que cultuar o passado que fica do que passou, é celebrar o presente enquanto construção do futuro.
E, ao fazê-lo, estamos certos de que, por este itinerário, consolidaremos a Nação que almeja assegurar a cidadania e fazê-lo sob a égide do Direito e da Justiça.
O Estado de S. Paulo (SP) 29/8/2007