O economista escritor
Senhor presidente da ABL, Domício Proença Filho
Caros Acadêmicos
Senhores e Senhoras
A difícil tarefa desta noite coube a mim e não a nosso recém-colega acadêmico, Edmar Bacha. Explico-me: Edmar Bacha nasceu com o dom da escrita, em uma família na qual desde o berço foi embalado por outros tantos escritores. Ele abre sua saudação citando a tia-poeta, Henriqueta Lisboa. E mesmo que não tivesse na alma e no aconchego familiar o sentimento dos que sabem lidar com as palavras, sua inspiração, de há muito, tornou-o um burilador de mitos e fábulas: inventou a Belíndia; criou um país que se não era imaginário foi grafado do fim para o começo, o Lisarb; e, como se fosse produtor de palavras à Guimarães Rosa, nos veio com uma “inflaflução”.
Desde moço Edmar usou a imaginação para tornar atraente a compreensão de temas econômicos essenciais para entender o que ocorria no Brasil. Tornou palatáveis as explicações, substituindo a aridez de conceitos abstratos, por palavras simples colocadas em um contexto imaginário para deixar claro o que queria dizer.
A fábula “O rei da Belíndia” escrita em 1974 no contexto da crítica de oposição à política econômica da ditadura brasileira, consagrou em nosso imaginário social o termo Belíndia para parafrasear o Brasil de tão grandes desigualdades socioeconômicas. Uma década depois, no ambiente do gradual retorno à democracia, o debate econômico se deslocou para o combate a um mal menos óbvio, mas tremendamente corrosivo, a inflação. A esse tema se dedicaram “O fim da inflação no reino de Lisarb” e “A inflaflução: os preços em alta no país do futebol”, ambos de 1985. Essas três fábulas compõem a primeira parte do livro Belíndia 2.0 com o qual Edmar celebrou seus 70 anos. Essa veia imaginativa - que desponta aqui e ali em sua obra acadêmica e nos artigos jornalísticos – é uma forma muito pessoal da participação de Edmar Bacha em acirrados debates sobre políticas públicas.
Com a fábula “O rei de Belíndia” quis mostrar como a política econômica do período do autoritarismo, em um país de desigualdades como o nosso não ia ao coração das questões, não combatia a desigualdade nem a inflação que a acentuava. Lança mão de inesperadas junções de sílabas para sugerir a mistura entre Bélgica e Índia, na época simbolizando respectivamente a prosperidade e o desalento, para ressaltar que as diferenças de renda e os contrastes sociais no Brasil se acentuavam, a despeito do crescimento da economia. O PIB, que aumentara a “taxas chinesas” na década de setenta do século passado, festejado pelo regime autoritário e apelidado de Felicitômetro dos Ricos por Bacha, escondia a distância cada vez maior entre a Bélgica e a Índia existentes no Brasil.
Com a imagem de um país que estava pelo avesso, Edmar populariza em Lisarb um de seus temas acadêmicos fundamentais: a inflação, que tudo desorganizava e cuja sombra impedia visualizar os demais problemas brasileiros. Já o menos óbvio achado verbal, a “inflaflução”, é um recurso intelectual para mostrar que para debelar a inflação seria necessário que todos percebessem, de uma só vez, os males causados por ela e mudassem de comportamento. O paralelo com as torcidas nos estádios de futebol é uma “trouvaille”, inspirada por nada menos que o proponente da taxa que leva seu nome, James Tobin. Edmar escreveu que, se ao se aproximar o momento em que um craque vai marcar um gol, em um “Fla-Flu” imaginário, uns se levantam na arquibancada, logo outros os imitam na geral, sustentando-se na ponta dos pés para enxergar melhor cria-se uma situação ruim para todos. O desconforto é grande, mas todos permanecem na mesma posição, como se estivessem em um estado de inércia coletiva. Nenhum torcedor toma a decisão de se sentar porque não tem garantia alguma de que todos os demais farão o mesmo e, neste caso, será o único a não ver mais o jogo.
Em face das soluções propostas para conter a inflação – e omito pormenores para não cansar esta plateia mais interessada em abraçar o novo acadêmico do que em ouvir tecnicalidades de outro mais antigo – Edmar Bacha retoma o tema futebolístico. E se o juiz, em vez de apitar para os jogadores, apitasse, por um momento, para a plateia e mandasse que todos se sentassem? Em seguida, o juiz, obedecido, voltaria a suas funções e todos estariam assistindo mais confortavelmente a partida. Claro, o juiz precisaria ter autoridade. Este seria o problema do Brasil com seus líderes, que estariam sem ânimo e sem a energia para, num gesto heterodoxo, voltarem-se para a plateia e ordenarem: acabou a inflação. Quem sabe se houvesse um acordo, termina Edmar Bacha, seria possível matar o mal de uma só cajadada?
Um parêntese. Recordo-me de quando em nosso esforço para colocar em marcha o Plano Real, que na época ainda se chamava Plano FHC, fui ver o presidente Itamar com alguns membros da apelidada “equipe econômica”, Edmar Bacha, entre os quais. Pois bem, a explicação do estádio de futebol foi convincente. O Presidente, que desconfiava um tanto das tecnicalidades dos economistas, se encantou com as palavras de Edmar e este, mineiro que nunca deixa de ser apesar de aclimatado ao Rio, deve haver percebido a súbita simpatia que despertara e sem perder vaza pediu a Itamar, com a gentileza própria de seus coestaduanos, que autografasse uma mensagem para seus filhos. Daí por diante, a escuta presidencial se tornou mais fácil: imagens e palavras, mais do que equações, convencem as pessoas.
Nas fábulas Bacha sublinha algumas de suas obsessões, mas seu percurso intelectual é mais amplo e profundo. Começa com as tentativas de entender como funcionava a economia cafeeira, peça chave por muito tempo na sustentação de nossa prosperidade. É de admirar a persistência no tema: as primeiras referências surgem em artigo publicado em 1961 em um órgão do diretório acadêmico da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG; nele comenta favoravelmente os efeitos positivos sobre a economia cafeeira da Instrução 208 da SUMOC, instituição e norma das quais hoje certamente poucas pessoas hão de lembrar-se.
Foi sobre o café que Edmar Bacha escreveu sua tese de doutoramento em Yale, universidade onde fez os estudos de pós-graduação. Na tese nosso homenageado juntou duas paixões, a do tema em causa e a da medição dos fenômenos analisados: discorreu sobre a economia cafeeira usando a econometria. Em 1992 volta ao tema para fazer uma avaliação sobre cem anos de política cafeeira. É difícil esquecer os primeiros amores...
Começava a ganhar corpo o que viria a ser o intelectual que hoje se cobre com o fardão da Academia: o interesse pelas coisas do Brasil, a capacidade de falar e escrever de modo compreensível e o rigor na medição dos fenômenos que está estudando.
Sua formação intelectual tivera base sólida na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG em Belo Horizonte (a plêiade de intelectuais que foram seus contemporâneos é impressionante – incluindo nosso confrade José Murilo de Carvalho). É de salientar que Edmar fez parte do primeiro grupo de estudantes brasileiros na área de ciências humanas, e não só de economia, que se dirigiu aos Estados Unidos, principalmente a partir dos anos sessenta, para apropriarem-se de métodos científicos mais rigorosos. E, no caso, Edmar Bacha soube escolher para seus estudos temas de significação não só acadêmica, mas mirando as grandes questões do país.
Edmar Bacha mostrou desde o início de sua carreira certo pendor ao ecletismo e à heterodoxia: tinha admiração por Ignácio Rangel e, especialmente, por Celso Furtado. Esta característica ele carrega até hoje: aborda os temas sobre os quais se debruça com independência de espírito, pode adotar posturas críticas que levam os demais a verem nele um “discordante”, um heterodoxo, dirão os economistas. Porém, não defende seus pontos de vista apelando ao dogma, mas à prova dos fatos e, quando possível a sua mensuração.
Foi com este espírito aberto que sofreu a influência de outros professores e colegas nas várias instituições em que trabalhou. Ele mesmo mostra o quanto pesaram em sua formação as influências do Centro de Aperfeiçoamento dos Economistas da Fundação Getúlio Vargas. Aí era Mario Henrique Simonsen quem tinha o papel central. Com ele Bacha revigorou a percepção da importância das matemáticas e, quem sabe, a nostalgia de um curso de engenharia com o qual sonhara na adolescência.
Terminado o estágio de formação universitária, Bacha passou um ano em Santiago entre 1968 e 1969, trabalhando em um projeto de colaboração entre o MIT e os planejadores chilenos da ODEPLAN. Só para citar alguns dos grandes economistas envolvidos na tarefa, o projeto estava sob a batuta de gigantes como Rosenstein-Rodan e Hollis Chenery, tinha entre os colaboradores Carlos Diaz Alejandro (que era professor em Yale) e entre os colegas de trabalho estava Lance Taylor, com quem, aliás, Bacha escreveu sobre “métodos de cálculo do preço sombra da taxa de câmbio”.
Refiro-me a este texto para mostrar que a fabulação com o propósito de esclarecer os assuntos tratados não inibiu Bacha de enfrentar temas a respeito dos quais o leigo só ao ler o palavrório necessário para enunciar “do que se trata” corre assustado. Não por acaso boa parte dos ensaios e textos de Edmar Bacha foi acolhida por publicações em inglês, quando o próprio texto não nasceu com nosso autor escrevendo nesta língua para expressar, com mais precisão, tecnicalidades que nós (i)mortais somos incapazes de escrever em nossa própria língua, mas que nosso confrade pode fazê-lo, e bem, nas duas línguas, o português e o inglês.
Os anos setenta do século passado foram férteis para Edmar Bacha tentar deslindar alguns dos desafios que atormentavam as pessoas e os economistas. Foram os anos de repercussão da controvérsia sobre os efeitos do desenvolvimento econômico capitalista na distribuição de renda. Bacha, juntamente com Lance Taylor, entrou no debate sobre o tema.
Em sua “heterodoxia” foi mais longe: enfrentou outra polêmica da época, sobre o chamado “intercâmbio desigual”, revisando as posições de Raul Prebisch e do economista da ONU Hans Singer até chegar às posições mais radicais de Arghiri Emmanuel. Talvez estes nomes não ressoem hoje, mas nos anos setenta, quando Bacha analisou seus trabalhos, eram o “crème de la crème” do pensamento econômico progressista: discutia-se os alicerces do pensamento da CEPAl, dito estruturalista, que teve enorme vigência até os anos oitenta.
Mesmo estando em Harvard, onde passou dois anos entre 1975 e 1977 como pesquisador visitante, tinha a atenção voltada para o que acontecia no Brasil. Além de Mitos de Uma Década, editado pela Paz e Terra em 1976, a mesma editora publicou, em 1978, Política Econômica e Distribuição de Renda, uma seleção de artigos que Bacha havia escrito para a Folha de São Paulo naquele período. No final dos anos setenta nosso homenageado volta a um tema que sempre lhe foi caro, só que sem as vestes da fábula: as desigualdades. Analisa a “curva de Kuznets” – outro mantra que deixa “a ver navios” os menos habituados, para relacionar o crescimento às mudanças na intensidade da desigualdade. Em 1979, deixa a Universidade de Brasília onde organizara um curso de mestrado e se desloca para a PUC do Rio onde mergulha nos temas do momento. Entre eles o da “crise da dívida externa”, que assolava nossas finanças. Disso é testemunho eloquente a publicação em 1986 do Fondo de Cultura Económica do México --editora que foi importantíssima na formação de parte de nossa intelectualidade -- chamada El milagro y la crisis: economia brasileña y latinoamericana.
Havia mais, porém: nos anos oitenta vários intelectuais brasileiros se debruçavam sobre a “hidra” que nos envolvia, a inflação. As opiniões se dividiam entre os partidários de um remédio “gradualista” que fosse esmagando pouco a pouco a vitalidade da fera, e os favoráveis a um choque, que a derrubasse de vez. Durante o regime militar prevaleceram os gradualistas, mas já havia propostas mais favoráveis ao “tratamento de choque”.
Em meados dos anos oitenta entraram em cena os que nos anos noventa deram a batalha vitoriosa do controle da inflação com o Plano Real. Edmar Bacha, dizendo-se um “danadinho”, na fábula de Lisarb, (voltamos à mineiridade...) conclamou Tancredo Neves, anos antes do Real, a ver que as especulações dos economistas só se transformariam em programa prático se tivessem um timoneiro político, uma vez que a inflação mexe com interesses concretos de pessoas e grupos sociais.
Nos embates teóricos que então se travaram entre “estruturalistas” e “monetaristas” -- os nomes para caracterizar as diferenças de concepção sobre como lidar com a inflação foram se alterando -- Bacha, no geral, achava que o conflito distributivo, a luta entre grupos sociais pela distribuição da renda, era visível a olho nu e que, embora muitas vezes não fosse fácil incluir esse conflito em modelos explicativos expressos em linguagem matemática, era fundamental levá-lo na devida conta na formulação das políticas de combate à inflação. Tampouco fechava os olhos, entretanto, ao que era considerado como uma posição “de direita”, conservadora, na visão de muitos estruturalistas. Bacha sabia e dizia que a contenção fiscal era requisito para o êxito dos programas de estabilização. Era, dirão, “eclético”. Melhor, digo eu, era e é realista e sabia que o instrumental da teoria econômica é indispensável, mas sabia também que a condução econômica é política, quer dizer, há interesses em jogo e seu resultado não é automático nem neutro, depende de as pessoas se convencerem de que as medidas propostas valem a pena. Os economistas acadêmicos vivem a esgrimir conceitos, equações e teorias para procurar provar abstratamente o que é certo. Ontem, hoje e amanhã. Sem eles não há mapa possível, mas de quando em vez é preciso que o bom senso ponha travas à ambição probante.
Dante de dilemas deste tipo, no final dos anos oitenta, em 1987, Bacha foi claro e direto: ”para conciliar estabilização com crescimento e democracia, futuros planos de estabilização precisariam incorporar as lições de cada uma das três perspectivas – a monetarista, a inercialista e a conflitista -zerando o déficit do governo e desindexando salários e preços no contexto de um acordo social”(Belíndia 2.0, pag. 15, aula magna dada em 1987 sobre “Moeda, inércia e conflito: reflexões sobre políticas de estabilização no Brasil”). Quem escrevia isso não era apenas o economista, mas o homem que já havia tido experiências políticas, seja como participante do Plano Cruzado, seja dirigindo o IBGE, no governo José Sarney. Despontava o intelectual público.
A década de oitenta do século passado foi rica na evolução intelectual de Edmar Bacha. Além de manter vivas suas antigas preocupações incorporou outros temas do debate corrente. Com Pedro Malan escreveu sobre a dívida externa, matéria a que dedicou mais tarde um trabalho acadêmico encarando a dívida do ângulo dos impactos que causava na política fiscal.
A lista dos economistas e intelectuais com quem cruzou é enorme. E, com o já referido espírito aberto, absorveu muito do que leu e viveu. Contudo, sua experiência mais marcante foi a de conviver com os professores do departamento de economia da PUC no Rio de Janeiro. Fui neste celeiro que Bacha, como tantos outros, amadureceu sua visão de economista e de cidadão.
Foi com esta bagagem, e com a experiência criticada, mas não renegada, do Plano Cruzado que o novel acadêmico se jogou na dura tarefa de enfrentar de 1993 em diante uma inflação que beirava a hiperinflação. Seu artigo “O Plano Real: uma avaliação” (reproduzido em Belíndia 2.0), talvez seja o melhor resumo analítico do que ocorreu naquele esforço para derrubar a hiperinflação; certamente é um dos melhores textos disponíveis para descrever e compreender a implantação da nova moeda em 1994.
Edmar Bacha concluíra o balanço crítico do Plano Cruzado dizendo: “O monetarismo nos ensinou a necessidade de zerar o déficit operacional, para controlar a expansão monetária e domar as expectativas inflacionárias. O inercialismo nos ensinou a necessidade de desindexar salários e juros e de coordenar as decisões de preço, para evitar a recessão. O conflitismo nos ensinou a necessidade de coordenarmos um acordo social prévio para evitar que a política de estabilização caia presa seja do autoritarismo seja do populismo” (em: “Moeda, inércia e conflito: reflexões sobre políticas de estabilização no Brasil”, Belíndia 2.0, pag. 73).
Era o intelectual maduro que ao refletir sobre o escrito e o feito não se prendia a dogmas, nem a escolas, sintetizava o que dera certo e o que faltara no passado e prescrevia o que se deveria fazer no futuro. O Plano Cruzado se desfez depois de um imenso, mas efêmero, sucesso inicial.
Na nova batalha, a do Plano Real, era preciso evitar estes equívocos. Quando o Plano Real começou a sair da discussão entre seus proponentes para se transformar em política pública, os economistas sabiam, portanto, o que evitar e o que fazer: valeram-se das experiências vividas durante a consecução do Plano Cruzado. Restava combinar com a sociedade, pois o “acordo social” desejado não chegou a existir, senão que sob outra forma.
Não vou cansá-los com a descrição minuciosa dos passos tomados para conter a hiperinflação, Mas é bom recordar que já se partiu da necessidade de fazer o ajuste fiscal. O controle do déficit público era essencial. Por isso, no início criamos o PAI (plano de ação imediata) para cuja efetivação não só Bacha, mas Gustavo Franco, Winston Fritsch e vários outros da equipe do Ministério da Fazenda trabalharam intensamente. E é preciso não esquecer o papel de José Serra, que nesta fase colaborou ativamente. Era a parte, digamos convencional de um “programa de ajuste” fiscal, que se desenvolveu em 1993. Para viabilizar os cortes orçamentários criamos um Fundo Social de Emergência, que nada mais era do que uma autorização para o Executivo cortar 20% das verbas correntes dos orçamentos dos anos fiscais de 1994 e 1995 e utilizar esses recursos para reduzir a dívida do governo.
Nesta etapa começava a se revelar outra dimensão da personalidade de Edmar Bacha: o do hábil negociador, que ia visitar as bancadas partidárias e com competência, fleuma e capacidade de diálogo aplainava resistências. Foi quando o apelidamos de “senador”. Era mais do que o técnico ou o professor e mesmo mais do que o economista: mostrava-se o homem com o dom do diálogo, pressuposto necessário tanto para os políticos, na acepção corrente, como para o homem público. Bacha se tornara um “intelectual público” plenamente. Sua valia neste aspecto foi enorme.
O segundo passo importante, depois do Plano de Ajuste, seria o de conceber a reforma monetária, continuar a fazer a fiscal e induzir as pessoas a mudarem de comportamento. A inspiração básica da reforma monetária, é inegável, veio de um famoso artigo publicado em conjunto por Pérsio Arida e André Lara Resende, conhecido como “Plano Larida”. Como quase tudo na vida, as invenções não surgem do nada, nem muitas vezes de quem leva o nome de sucesso. As experiências com o Cruzado, como reiterei, e as lições deixadas pelo Plano Austral, na Argentina, sob Alfonsín, e sabe Deus que outras contribuições mais, serviram de inspiração para o que veio a ser o Plano Real. Mas é inegável que neste caso a “prata da casa” foi fundamental.
Mais uma jabuticaba, diziam os céticos. Mais uma adaptação vitoriosa que reelaborou múltiplas experiências e considerou as peculiaridades da conjuntura brasileira, digo eu. Há décadas, quando eu era professor visitante em Cambridge, escrevi um ensaio sobre as teorias econômicas elaboradas na CEPAL e dei o título de “A originalidade da cópia”. Por mais que tenham existido fontes e experiências que contribuíram para o Plano Real, o certo é que da junção delas resultou algo original. Para ser original é preciso juntar conhecimento com imaginação. Foi o que não faltou aos economistas a que me estou referindo.
A feitura do Real foi um trabalho penoso, persistente, de convencimento e de ordenação legal. Ele incluiu o enorme esforço de negociação da dívida externa (do qual participaram Pedro Malan e André Lara Resende e, antes deles, diplomatas como Jório Dauster e Sergio Amaral). Passou também por uma batalha político-jurídica para convencer os interessados (e não só os sindicatos de trabalhadores, mas os aplicadores no mercado financeiro) de que uma vez criada uma nova moeda a conversão dos ativos financeiros e dos salários vigentes deveria fazer-se pela média dos valores observados nos quatro meses anteriores, e não pelo “pico”, ou seja, pelo valor mais alto verificado naquele período. Como o “acordo social” prévio não existira, havia que construí-lo caminhando e, quando fosse o caso, que o governo determinasse o que se faria.
Mencionarei apenas a dois pontos mais, para mostrar a complexidade do processo de destruição da hiperinflação e a contribuição de Edmar Bacha. Um ponto refere-se a criação da URV e sua transformação em moeda, outro à “pedagogia” necessária para a aplicação das novas regras.
Comecemos por ver como surgiu este “ente de razão” de nome complicado, “unidade real de valor”, URV. Quanto eu me lembre, ademais do texto da dupla Larida, que inspirou o modo como no Plano Real se tentava quebrar a inércia inflacionária, arriscando-me a omitir nomes, foi Edmar Bacha quem nos influenciou em aspectos importantes do novo Plano. Em meados de junho/julho de 1993 fui à casa de André Lara Resende em São Paulo para incitá-lo a colaborar com nossa equipe e encontrei-o, como de hábito, cheio de ideias e de disposição. Disse-lhe que poderia por mãos à obra para preparar um plano monetário, mas que disso não falasse senão com duas pessoas: Pedro Malan, que ainda era negociador da dívida externa em Washington e Edmar Bacha. Por que falar com este último?
Porque Edmar Bacha, inspirado por um texto antigo de Pérsio Arida, havia sugerido em nossas reuniões que deveríamos indexar todos os preços, inclusive os salários, à Unidade de Referência Fiscal (UFIR), que fazia a correção monetária diária dos impostos devidos. Propunha a “ufirização” da economia. Estava dada a fórmula para um programa de indexação geral da economia, como que a levar a indexação da inflação a seu máximo: se tudo se movesse na mesma direção e na mesma velocidade seria como se a inflação tivesse efeito nulo sobre salários, ativos e outros preços.
A reforma monetária, sob este aspecto, teria efeito neutro na pugna distributiva. Criou-se um referencial para os preços com efeitos equivalentes aos de uma “dolarização”, sem os inconvenientes desta, que manietariam o Banco Central nas decisões sobre o câmbio, pois com a dolarização estas escapariam do controle do governo nacional, com todas as consequências disso, especialmente no comércio exterior.
Denominados em URV, todos os preços e salários passaram a variar diariamente segundo um mesmo e único indexador. Quebrou-se assim o mecanismo que realimentava a inflação: cada agente econômico aumentava os seus preços na expectativa de que os outros fariam o mesmo e a eles buscava se antecipar, com medo de ficar para trás na corrida inflacionária. A corrida favorecia quem tinha maior poder de mercado para impor os seus preços. Quem sempre perdia eram os trabalhadores, sobretudo os sindicalmente menos organizados.
Voltamos à fábula: se o juiz desse uma ordem firme e todos obedecessem se vislumbraria melhor o jogo... Em vez de usar a UFIR como valor de referência inventamos a URV, coordenamos as expectativas e, em princípio, nos livramos das amarras ao dólar. Da URV nasceu o Real como moeda, sem que tivéssemos que recorrer a congelamento de preços e sem os contenciosos jurídicos que caracterizaram os planos anteriores.
Milagre? Não: por trás do passe de mágica havia o trabalho de controle fiscal e a expectativa de que reformas na economia e no Estado, fundamentais para a consolidação da estabilidade, seriam postas em prática a seguir, porque a sociedade apoiaria o real e elegeria um governo comprometido com ele.
Edmar participou de tudo isso junto com seus colegas, entre os quais Gustavo Franco, até que, por motivos pessoais, quando me tornei presidente, teve que voltar ao Rio e comandou o BNDES.
No meio tempo, o economista-senador, participou do enorme esforço pedagógico de mudar as práticas correntes: a outra decisão significativa na execução do Plano Real foi a de antecipar publicamente os passos que a política econômica seguiria. Tratava-se de obter um acordo social por adesão: alcançar um objetivo que todos desejavam através da transparência plena das medidas que iriam ser tomadas. O mantra era: “anunciar tudo que será feito; fazer somente o que tiver sido anunciado”. Esta decisão, quanto me lembre, foi proposta por Pérsio Arida e apoiada entusiasticamente por mim.
À falta de um “acordo social” na partida, que pelo menos a transparência ajudasse na tentativa de ganhar corações e mentes, batalha que foi coordenada inicialmente por mim e depois, brilhantemente, por Rubens Ricúpero, que me substituiu no Ministério de Fazenda em abril de 1994, mas que no dia a dia teve a participação de muitos colaboradores e especialmente a de Edmar Bacha e a de Pedro Malan, a esta altura já presidente do Banco Central.
Deste período em diante, Edmar Bacha continuou, como até hoje, ajudando a mudar as formas de entender a economia, os processos decisórios em geral e o comportamento de quem manda. Seria demasiado longo seguir cada nova contribuição de nosso confrade. De novo, dois pontos apenas. Fiel a suas preocupações, Edmar não se esqueceu dos conflitos distributivos, dedicou muito de seu melhor esforço a reescrever junto com Simon Schwartzman a Agenda Social do Brasil, e nesta tarefa continua. Técnico que é, não cansa também de valorizar a avaliação quantitativa das políticas públicas.
Intelectual público, que também é, escreve, predica, não se esconde, para mostrar que o ambicionado crescimento econômico só virá se formos capazes de nos conectar com os fluxos de comércio e criatividade globais e que o aumento da produtividade é crucial para gerar renda. Esta corre o risco, senão que a certeza, de permanecer concentrada e, ao longo do tempo terá efeitos negativos sobre o próprio crescimento do país, se não formos capazes de melhorar as condições de educação, saúde, emprego e bem estar do povo.
Foi esta a trajetória até aqui do professor Edmar Bacha, diretor de um notável think thank, a Casa das Garças e, de ora em diante, para gáudio desta Academia, nosso colega. Ao escolhê-lo, seus pares se recordaram dos ilustres economistas que o antecederam nesta Casa, Roberto Simonsen, Roberto Campos e Celso Furtado. Com diferentes visões e experiências, coincidiram em um ponto crucial com o qual coincide também Edmar Bacha: puseram seus conhecimentos a serviço de um Brasil melhor. Muito obrigado.