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Bonecas russas

 

Não me lembro como se chamam as tais bonecas folclóricas russas: são as que são ocas e abre-se a boneca maior e dentro dela há uma menor, e dentro dessa outra menor ainda, e depois outra e mais outra, até chegar à última, que é uma simples miniatura de boneca. No mesmo gênero, também é aquele conto de fadas: “Lá no mar tem uma ilha, dentro da ilha tem um castelo, dentro do castelo tem uma torre, dentro da torre tem um quarto, dentro do quarto tem uma arca, dentro da arca tem uma caixa, dentro da caixa tem um cofre, dentro do cofre tem um frasco, dentro do frasco tem uma pomba, dentro da pomba tem um ovo, dentro do ovo tem uma chave e é essa chave que abre a porta da prisão onde está a princesa encantada”.


Pois a gente também é assim. A princípio eu pensava que, com a passagem das diferentes idades do homem, o maior ia substituindo o menor, quero dizer, o menino ficava no lugar do nenê, o adolescente no do menino, o moço no adolescente, o homem feito no do moço, o de meia-idade no do homem feito, o velho no lugar do de meia-idade e por fim o defunto no lugar de todos. Mas depois descobri que os indivíduos passados não desaparecem, se incorporam, ou, antes, o indivíduo novo incorpora os superados como se os devorasse, e uns vão ficando dentro dos outros, tal como as bonecas russas do começo da história.


E assim, dentro de cada um de nós, a gente procurando sempre encontra os perfis superpostos, encartados um por dentro do outro, sem se misturarem. É só saber como esgaravatar e você descobrirá fácil no sentencioso senhor de cinqüenta anos o inseguro pai de família principiante que ele foi aos trinta anos ou o belo atleta descuidado que foi aos dezoito. Ali está cada um, aparentemente esquecido mas incólume. E estanques todos. Porque um não penetra no outro e aparentemente um não tem o mínimo em comum com o outro; nem sequer um influi no outro - as mais das vezes são antípodas e adversários.


Faça uma experiência: pegue um livro, uma foto, reveja um filme, encontre alguém, qualquer desses serve, contanto se refira especificamente a determinado tempo de sua vida. E então magicamente se suscita aquele instante perdido do passado, com uma força de momento atual. Espantado, você se indaga: então esse fui eu? Que tem em comum com o você de hoje aquele estranho que subitamente acordou ao apelo do seu nome, debaixo da sua pele? Terá em comum só mesmo o nome e a pele, porque o resto, no corpo e na alma, tudo é outro, deformado ou gasto, mas sempre diferente. Você é outro, outro. E quase não acredita ter sido você também aquele rapaz desvairado, ou sonso, ou bobo e terrivelmente inexperiente que de súbito emergiu de dentro dos seus ossos e das suas velhas lembranças.


Em sua avó venerável você também pode descobrir a rapariga inconseqüente que ela foi um dia, e no seu severo confessor de hoje o seminarista em crise religiosa de trinta anos atrás. É só saber procurar. A gente diz disso: “ águas passadas” . Mas talvez seja melhor dizer águas represadas, águas recalcadas. Porque basta bater na pedra, a fonte emerge, o que não aconteceria se as águas fossem passadas realmente.




Publicado em: 23/09/00, Correio Braziliense – Brasília – DF