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Discurso de posse

Discurso do Sr. Ivan Junqueira

Senhores Acadêmicos:

A Cadeira número 37, para a qual tão generosa e temerariamente me elegestes, está circundada por uma aura de singularidade que não quero aqui deixar sem registro: tem ela como patrono um poeta, e poetas foram o seu fundador, pelo menos durante a juventude coimbrã, e quem tão longamente a ocupou antes de mim, como poeta é quem agora dela toma posse. Curiosamente, essa linhagem literária só foi interrompida por homens que, alguns mais, outros menos, se envolveram com a política e a história, pois delas não se podem desvincular as atividades que exerceram José de Alcântara Machado, Getúlio Dornelles Vargas e Francisco de Assis Chateaubriand. Devo dizer, todavia, que discordo do juízo deste último quando, em seu discurso de posse, qualificou esta cadeira como um “paiol de pólvora” e sugeriu que a Academia o elegera “como quem busca uma natureza de equilíbrio para tirar o demônio que há mais de cinqüenta anos” a rondava. E dele discordo ainda quando, nesse mesmo discurso, aliás brilhante, se refere à "barulhenta memória" dos que nela se sentaram - é bem de ver que Gonzaga jamais o fez - ou quando insinua que, para compensar esse estigma de perpétua bulha, os acadêmicos, ao elegê-lo, haviam se decidido por aquela “tranqüilidade de lago suíço” a que se comparou então Assis Chateaubriand. Teria ele se esquecido de que foi, ao longo de toda a sua vida, uma das mais turbulentas, polêmicas e controversas personagens de nossa história mais recente? Ou do contínuo barulho que orquestrou enquanto vivo? A ele, sim, senhores acadêmicos, caberia, não no sentido de nenhuma ação deletéria, mas antes no de uma multifária atividade jornalística e empresarial, esse conceito explosivo de “paiol de pólvora”, já que foi, no mais puro e estrito sentido dessa palavra, um subversivo convicto e impenitente que afrontou todas as formas de convencionalismo de seu tempo.

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Muito embora haja se envolvido na Conjuração Mineira de fins do século XVllI, pouquíssima é a pólvora que lastreia o álgido arcadismo lírico e o comportamento político-social de Tomás Antônio Gonzaga, poeta brasileiro de origem portuguesa, nascido no Porto em 1744, e que aqui esteve pela primeira vez ainda menino, aos oito anos de idade, durante o período de 1751 e 1761, quando concluiu seus primeiros estudos em conventos franciscanos da Bahia, tanto assim que, ao regressar a Portugal, trouxe consigo os certificados de que havia completado os estudos de filosofia e retórica, juntamente com os de latim, indispensáveis para a matrícula na Universidade de Coimbra, pela qual se doutorou. Gonzaga só voltou ao Brasil em 1782, ano em que foi nomeado ouvidor em Vila Rica, atual Ouro Preto, pouco depois de exercer o cargo de juiz em Beja. Tinha, portanto, 38 anos, e ninguém nessa idade será capaz de adquirir espiritualmente outra nacionalidade, razão pela qual permaneceu português no sentimento e na poesia que escreveu. Sabe-se que, ao chegar em Vila Rica, fez amizade com o grupo de poetas liderados por Cláudio Manuel da Costa, que também estudara em Coimbra. Foi ali que Gonzaga conheceu, além de outras musas, Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, vinte anos mais moça do que ele, a quem dedicou versos sob o nome poético de Dirceu, chamando-a de Marília, e com quem acertou casamento pouco antes de ser nomeado desembargador da relação da Bahia, cargo que não chegou a assumir, pois foi denunciado como participante da Inconfidência Mineira.

Na noite de 21 de maio de 1789, sua casa foi cercada, o poeta preso e enviado para O Rio de Janeiro. Encarcerado por três anos na Ilha das Cobras, foi condenado afinal à prisão perpétua, mas teve a pena comutada em degredo de dez anos em Moçambique. Gonzaga sempre negou sua participação na Inconfidência e fez sua defesa de próprio punho, embora tenha sido esta firmada por José de Oliveira Fagundes, mestre régio de poética e retórica. A prisão do poeta deve-se antes às amizades que mantinha com muitas das pessoas envolvidas no movimento, sobretudo os poetas da Arcádia mineira. Se, como já pretenderam alguns, Gonzaga houvesse de fato enlouquecido naquela distante ilha africana em razão da ausência de sua amada Marília, talvez fosse cabível evocar-se algum rastilho de pólvora. Mas a verdade é bem outra, e de descabelada ou romântica pouco tem: em Moçambique, Gonzaga desfrutou de boa situação social e administrativa, casando-se com a filha de um rico mercador e vivendo burguesmente seus últimos anos de existência, o que confere com o que dele diz Rodrigues Lapa na mais autorizada edição dos textos gonzaguianos, quando observa que a obra do poeta, “no que ela tem de mais profundo e certamente mais duradouro, é a viva concretização do ideal familiar e burguês, para que tendiam os espíritos do século XVIII”.

De pólvora tem muito pouco o arcadismo ilustrado e o neoplatonismo quinhentista de Gonzaga, cuja Marília de Dirceu, que alcançou a sexta edição ainda em vida do autor, deixa-se embeber de um sentimento idílico e contemplativo, tendo como pano de fundo o locus amenus da poesia pastoril, neste caso a paisagem de Minas Gerais. É nesse passo oportuno transcrever o que diz a respeito Adelto Gonçalves, autor de Gonzaga, um poeta do iluminismo, a mais completa e abrangente das biografias do autor, publicada no ano passado, quando sublinha a propósito dos árcades: “De todos, Gonzaga é o mais

apegado à tradição clássica no sentimento e na linguagem. São comuns em sua poesia os cenários da vida pastoril, o que significa que também o árcade Domingos dos Reis Quita pode ter contribuído para a sua formação”. Apesar do erotismo e do sentimento elegíaco que afloram em alguns versos da Marília de Dirceu, temperados por alusões mitológicas e pelo bucolismo, Gonzaga não deve ser identificado, a rigor, como um pré-romântico. Foi árcade até o fim, e como tal se comporta quando escreve os versos satíricos das Cartas chilenas, em que jamais excede a medida neoclássica do Barroco seiscentista português. É que Gonzaga, como todos os demais poetas do período, tem formação clássica e é filho da retórica, disciplina agonizante na segunda metade do século XVIII e que só passaria a ser contestada no limiar do século seguinte, quando surgem as sátiras de estilo realista. Essas Cartas chilenas, cuja autoria foi afinal comprovada pelos estudos de Rodrigues Lapa e Manuel Bandeira, entre outros, denunciam a prudência conservadora do autor, que nelas raramente ultrapassa o nível das discórdias pessoais, embora todo o poema possa ser entendido como uma sátira aos desmandos do Fanfarrão Minésio, identificado como o governador Luís da Cunha Meneses, desafeto político de Gonzaga. Sem grandes vôos filosóficos ou temática arrojada, a poesia de Gonzaga, como a dos demais árcades, valoriza-se por meio da forma, na qual melhor se evidencia o seu engenho poético, que é - repetimos aqui - essencialmente português, apesar da influência que recebeu o autor das modinhas baianas que ouviu na juventude vivida em Salvador. Isso não impede, como agudamente observa Antonio Candido, que Gonzaga seja “um dos sete ou oito poetas que trouxeram alguma coisa à nossa visão do mundo; e, nas literaturas românticas do tempo, forma, sem deslustre, ao lado de um Bocage”. Mas é pouco, muito pouco, para caracterizar como explosivo um temperamento que foi, acima de tudo, bucólico e burguês.

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É também nenhuma a pólvora que se vê no paiol de preocupações gramaticais e filológicas em que tranqüilamente transcorreu a vida de José Júlio da Silva Ramos, o fundador desta Cadeira. Como a de Gonzaga, a formação de Silva Ramos é coimbrã e, ao longo dela, escreveu o autor alguns poucos versos que reuniu em volume sob o título de Adejos, além de outras coletâneas poéticas de menor ou mesmo ínfima importância. Em seu elogio a Silva Ramos, sustenta Alcântara Machado que esse livrinho era bom, ou mesmo muito bom, e emparelha-o com as obras dos grandes líricos portugueses que lhe foram contemporâneos em Coimbra, de Guerra Junqueiro a Gonçalves Crespo, de Gomes Leal ao grandíssimo e solitário Cesário Verde. Historiador exemplar, como sobejamente o atesta Vida e morte do bandeirante, Alcântara Machado não era, ao que parece, leitor muito exigente de poesia, pois esses versos de Silva Ramos, além de irremediavelmente datados, refletem antes, ou tão-somente, os arroubos de um espírito ainda em ebulição e as fundas influências que recebeu em Coimbra, as quais seriam decisivas para a sua sólida formação de gramático e filólogo. Ao contrário de sua análise relativamente à poesia de Silva Ramos, é minudente e grandiosa a reconstituição histórica a que procede Alcântara Machado, em seu discurso de posse, quanto à época social e ao ambiente literário coimbrão em que se moldou e consolidou a formação de Silva Ramos. Pode-se mesmo dizer que se trata quase de uma biografia do autor durante esses anos cruciais de sua vida e de seu impecável embasamento filológico.

Silva Ramos haverá de se destacar entre nós como gramático e filólogo, tendo realizado importantes estudos sobre a colocação dos pronomes átonos e a gradação do adjetivo em Pela vida fora..., que publicou em 1922 e onde se lê esta jóia de sabedoria e pertinência gramaticais relativa ao tormentoso problema da colocação dos pronomes oblíquos:

“Não sou eu” - esclarece o mestre - “quem os coloca: são eles que se colocam por si mesmos, e onde caem, aí ficam”, pois a situação de tais elementos na estrutura da frase “não obedece a normas ditadas pela sintaxe ou pela morfologia”, e sim “ao ritmo, ao número, à cadência do discurso” - enfim, “a princípios do domínio fonético”.

Como todos sabemos, na pronúncia lusitana são átonas aquelas formas pronominais, ocorrendo o contrário na fala brasileira. Daí o fato de serem enclíticas em Portugal e tenderem à próclise no Brasil. Lembre-se ainda que Silva Ramos muito lutou, nesta Academia, Pela adoção da ortografia simplificada em todo o território nacional, e vê-se agora que sua lição acabou por vingar.

A Silva Ramos foi sempre muito caro o que é caro e sagrado a esta Casa: a língua portuguesa, esse sistema cujos fenômenos ele encarou como fatos naturais, e não como criações arbitrárias. Por isso mesmo é que os estudou tanto nos textos dos grandes escritores quanto na linguagem do povo, pesquisando-lhes o sentido mais profundo e as leis que os regem. Foi medularmente lusófilo, é bem verdade, mas numa época em que sê-lo era exigência de bom-tom e de defesa do idioma, desse mesmo idioma que hoje vai perdendo entre nós em elegância e concisão, em clareza e vernaculidade, sob o absurdo e estúpido pretexto de que um dia chegaremos a uma estupidez ainda maior, ou seja, à estapafúrdia existência de uma língua brasileira, cuja possibilidade é negada com veemência por todos os filólogos, semanticistas e lingüistas modernos. A propósito, bastaria o bom senso de um Barbosa Lima Sobrinho, em A língua portuguesa e a unidade do Brasil, publicado em 1958 e recentemente reeditado, para atestar a extensão de tamanha falácia. E nesse sentido, ou seja, o da defesa de nossa língua, Silva Ramos foi tão brasileiro quanto qualquer um de nós. Que o diga Manuel Bandeira, um de seus mais ilustres discípulos e, talvez, o poeta poeticamente mais culto dentre todos os que escreveram esse fluido, maleável e musicalíssimo português do Brasil. É que com Silva Ramos, “pela vida fora”, aprenderam Bandeira e muitos outros a buscar nos novos e antigos padrões do vernáculo não “a personalidade irregular de um infinito” ou “o atestado de bom comportamento de um pronome”, mas sim as formas superiores que ilustram as idéias, a flexibilidade e a energia, a clareza e a graça, a naturalidade e a transparência, ou seja, esses traços cujo enfraquecimento envelhecem e envilecem a língua portuguesa. E ainda aqui o que vemos não é a explosiva distensão da pólvora, como insinuou Assis Chateaubriand, mas apenas a coesa concentração de um pensamento.

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A pólvora não freqüenta também a trajetória política ou magisterial de José de Alcântara Machado, como tampouco as obras históricas que nos legou, em particular a sua esplêndida Vida e morte do bandeirante, cujo estilo e cujos pressupostos são antes cautelosos e tradicionalistas do que propriamente revolucionários. E, não obstante, pode-se dele dizer que foi, até certo ponto e em certo sentido, exatamente isto: revolucionário. Provam-no, de forma cabal, dois textos distanciados no tempo: os das introduções que lhe escreveram Sérgio Milliet e, mais recentemente, Laura de Mello e Souza. O primeiro observa: “Numa época em que mergulhávamos nas preocupações eruditas, numa época em que os estudos de sociologia não passaram de divagações filosófico-literárias, sobretudo na parte que diz respeito ao condicionamento pelo grupo, à influência determinante dos fatores econômicos e sociais, Alcântara Machado teve a noção muito clara de que o indivíduo é, em última análise, apenas um aspecto subjetivo da cultura.” E em sua obra diz o próprio Alcântara Machado: “Não é frívola a curiosidade que nos leva a inquirir onde moravam os nossos maiores, a maneira por que se alimentavam e vestiam, de que tiravam os meios de subsistência, a concepção que tinham do destino humano. Tudo isso facilita o entendimento do que fizeram ou deixaram de fazer. Só depois de freqüentá-los na intimidade e situá-los no cenário em que se moveram estaremos habilitados a compreender-lhes as atitudes.” É bem de ver, senhores acadêmicos, que outra não seria a orientação triunfante de Gilberto Freyre em Casa-grande & senzala, quatro anos mais tarde. Pode-se dizer assim que, com a publicação de Vida e morte do bandeirante, em 1929, iniciava-se o estudo da história social do Brasil graças à análise direta e objetiva dos documentos de ordem cultural, no sentido mais amplo e sociológico da palavra, relativos a um dos períodos mais apaixonantes de nossa História: o bandeirismo.

Se já é agudo e premonitório o texto de Sérgio Milliet, mais fundo ainda mergulha o estudo introdutório de Laura de Mello e Souza, que nos pergunta logo às primeiras páginas de sua sagaz abordagem: “Fomos nós, historiadores dos anos 80 e 90, que inventamos Vida e morte do bandeirante, ou foi esta obra que nos inventou?” O que mais intriga no livrinho de Alcântara Machado, que lhe trouxe imediato prestígio nacional e o trouxe a esta Academia, é sua atualidade e seu caráter inovador, já que o autor é um intelectual à moda antiga e figura afinada com a oligarquia de seu estado. Mas esse apego aos valores tradicionais não comprometeu a obra de Alcântara Machado, servindo-lhe antes de estímulo e nutriente, pois seu intuito não é “louvar as elites, às quais pertence, mas compreender a história de São Paulo para melhor compreender a história do Brasil - e, nisto, reside sua feição inequívoca de historiador”. Quase nada em Vida e morte do bandeirante,  pondera Laura de Mello e Souza, lembra o “bandeirismo monumental”, mas sim o cotidiano, “carregado de sustos e incertezas”; não se vê ali a história paulista como um “rosário contínuo de epopéias maravilhosas”, mas, ao contrário, os aspectos mais pedestres da vida no sertão; e a São Paulo de Alcântara Machado “não é opulenta, mas pobre e acanhada, pois as referências sobre o cotidiano, que colhe nos documentos, destroem pragmaticamente as mistificações ideológicas inauguradas pelos linhagistas”.

Assim como Sérgio Milliet, também Laura de Mello e Souza sublinha a precedência do método historiográfico de Alcântara Machado, afirmando que sem ele, além de Capistrano de Abreu e Paulo Prado, seria difícil conceber Casa-grande & senzala, Sobrados e mucambos ou Açúcar. É que o autor de Vida e morte do bandeirante inaugura entre nós “o uso pioneiro e inovador dos inventários e testamentos paulistas”, da mesma forma que Gilberto Freyre o faria com relação aos anúncios de jornais, livros de receitas, diários familiares e toda sorte de documentos menores. Outra particularidade crucial da obra de Alcântara Machado é que nela não pretendeu o autor “explicar o Brasil, mas uma de suas capitanias, aliás, uma das mais afastadas dos centros de poder colonial: São Paulo”. E, ao fazê-lo - quem no-lo diz é ainda Laura de MelIo e Souza -, “acabou trazendo novos elementos para se compreender o País: como quase sempre acontece com as análises particularizantes bem-sucedidas, elas acabam sendo básicas para a compreensão dos aspectos mais gerais”. Diz em seguida a autora que o  que nos surpreende em Vida e morte do bandeirante

“é a modernidade na escolha do objeto e das fontes, a dissolução das personagens no destino comum da capitania, a valorização de temas até então desconsiderados, uma sensibilidade histórica que, apesar de certos preconceitos, é nossa contemporânea, e que vasculha o nexo das estruturas por detrás de fenômenos aparentemente insignificantes”.

E chega mesmo a vaticinar: “Vejo Vida e morte do bandeirante como a primeira obra da historiografia contemporânea”. Lamente-se aqui, portanto, que, publicado em 1929, o livro de Alcântara Machado, apesar da imediata repercussão nacional que alcançou, foi logo depois mergulhando numa espécie de semi-esquecimento, sendo poucos, ou muito poucos, os que dele ainda hoje se lembram.

Jurista, político, historiador e autêntico homem de letras, pai do ficcionista Antônio de Alcântara Machado, prematuramente falecido e muito celebrado pelos modernistas graças aos volumes de contos Brás, Bexiga e Barra Funda e Laranja da China, Alcântara Machado nos deixou uma obra solitária e pioneira a propósito da qual sublinha Sérgio Milliet: “Estilo e linguagem que se podem rotular de clássicos pelo funcionamento da expressão, pela simplicidade da imagem e o pudor da eloqüência. E pelas mesmas razões anti-românticas, antibarrocas, modernas integralmente. Ao contrário dos que imaginam escrever bem porque imitam a sintaxe quinhentista e enchem sua literatura de arcaísmos, Alcântara Machado despe a dele de toda indumentária inútil”. Ao meditarmos sobre esse estilo, nunca será demais repetir aqui a antiga lição do velho Boileau, como o faz Milliet ao final de seu estudo: “Ce que l’on pense bien s'énonce clairment. / Et les mots pour le dire arrivent aisement.” Como também nunca será demais, em se tratando de alguém que nasceu em Piracicaba, relembrar aqui sua inesquecível e emocionada profissão de fé paulista no discurso de posse em que fez o elogio de Silva Ramos:

Paulista sou, há quatrocentos anos. Prendem-me no chão de Piratininga todas as fibras do coração, todos os imperativos raciais. A mesa em que trabalho, a tribuna que ocupo nas escolas, nos tribunais, nas assembléias políticas deitam raízes, como o leito de Ulisses, nas camadas mais profundas do solo, em que dormem para sempre os mortos de que venho. A fala provinciana, que me embalou no berço, descansada e cantada, espero ouvi-Ia ao despedir-me do mundo, nas orações de agonia. Só em minha terra, de minha terra, para minha terra tenho vivido; e, incapaz de servi-Ia quanto devo, prezo-me de amá-la quanto posso.

4

Haverão decerto percebido os senhores acadêmicos que não venho aqui me alongando sobre a vida de meus antecessores, mas antes sobre a obra literária que nos legaram. E a escolha se deve apenas ao fato de que não somos imortais, ou sequer “imorríveis”, como pretendem alguns. Quando era de penúria a situação financeira desta Casa, o Acadêmico Olavo Bilac, em um de seus chistes, chegou a dizer que éramos imortais porque não tínhamos “onde cair mortos”. Ora direis, agora temos. Enfim, imortal será, quando e se o for, a obra que porventura deixarmos à posteridade, mas a posteridade não passa de uma esfinge que sempre nos dirá: “Decifra-me. Ou te devoro.” Pouco ou nada sabemos agora daquilo que ficará de tudo o que escrevemos. A momentânea glória de um dia, por mais estrondosa que seja, não nos garante absolutamente nada. Celebradíssimos hoje, muitos dos que o são morderão amanhã o pó de uma prateleira esquecida. E, pior ainda, se essa glória vier depois de nossa morte, é como se houvessem nos ludibriado. Talvez para iludir essa decepção tenha Manuel Bandeira escrito o poema que leva o título “A morte absoluta”, em cujos últimos versos se lê:

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: “Quem foi?...”
Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.

E, no entanto, Manuel Bandeira foi e decerto continuará a ser um imortal. Mas nem todos nesta Casa deixaram legado semelhante ao seu. Ainda assim, cabe-nos falar das obras, não necessariamente literárias, que lhes ultrapassaram a contingência e a caducidade da vida terrestre e cujas raízes germinaram em nossa história mais recente. É que esta Casa, como bem o sabeis, não abriga apenas escritores, mas também personalidades que se notabilizaram em diversos outros campos do saber humano. A rigor, além de seus discursos e crônicas, Getúlio Vargas e Assis Chateaubriand foram acadêmicos que jamais possuíram uma obra propriamente literária. Mas quem poderia compreender este País sem a histórica contribuição que prestaram no cenário da vida política, no jornalismo e na área empresarial ou mesmo cultural? Não me deterei aqui na vida de um ou de outro, mesmo porque são ambas por demais conhecidas de todos. Quem poderia nos esclarecer mais acerca de Chateaubriand, por exemplo, do que Fernando Morais em seu monumental e definitivo Chatô, o rei do Brasil, publicado em 1994? Ou quem será capaz de dizer hoje mais do que já foi dito e repetido sobre Getúlio Vargas por incontáveis e modelares historiadores ou cientistas políticos? Mas algo sempre fica por dizer. Ou mesmo por repetir. Ou quiçá por comentar. E aqui seria o caso, penso eu, de evocar alguns traços do esplêndido retrato que Chateaubriand, em seu discurso de posse, debuxou a propósito da personalidade política e humana de Vargas. E nem esta, senhores acadêmicos, tem tanto assim de pólvora como a princípio se supôs, muito embora, neste caso, se possa falar de algum “demônio que ronda esta cadeira”. Vejamos, em poucas palavras, o que nos diz Chateaubriand a respeito do “monstro”.

Ao contrário do que muitos imaginam, Vargas era um homem de temperamento frio ou, na melhor das hipóteses, alguém que sempre soube dominar-se. Aparece no cenário político brasileiro num momento em que o mundo estava em convulsão. Bastaria lembrar aqui o advento do capitalismo industrial, mercantil e bancário que eclodira nos Estados Unidos durante a década de 1930, a da grande depressão. Ou a ascensão política de Hitler e Mussolini à frente de regimes totalitários. Ou, ainda, a consolidação sanguinolenta da ditadura stalinista na Rússia soviética. Ou, afinal, a truculência fascista que se abatera sobre a Espanha e Portugal. Vargas surge, portanto, em meio à exaltação das ideologias populares, e delas haverá de ser fiel e pertinaz caudatário, não lhe faltando, inclusive, o exercício da ditadura fascista, particularmente entre 1937 e 1945, ou seja, a época do Estado Novo. “Solitário, introvertido, impenetrável, vivendo dentro de si mesmo, suas duas instâncias, a primeira e a última, era Deus”, como observa Chateaubriand. “Claro, objetivo, místico e elementar”, sublinha seu analista, Vargas exibia, paradoxalmente, dois pólos: o dinâmico e o estático, mas foi no vértice daquele primeiro que transcorreu toda a sua trajetória política, a daquele que tentou, com mão de ferro, socializar o País. Diz ainda Chateaubriand que “a política, em Vargas, era uma plenitude, a sublimação de sua natureza”. Eram poucos os que conheciam “aquele temperamento tímido, reservado, sensitivo” e que “não gostava de agir ostensivamente”. Por isso mesmo, apenas intervinha pessoalmente o mínimo, e só se expressava por intermédio dos outros, especialmente dos políticos com os quais convivia, mas nos quais jamais confiou, tanto assim que, nos momentos decisivos de sua vida pública, recorria apenas ao povo e às Forças Armadas, como ocorreu em 1930 e em 1937, quando instaurou a ditadura estado-novista.

Afirma Chateaubriand que Vargas só será entendido se o examinarmos sob a perspectiva de um outlaw. Daí seu olímpico desdém pelas constituições que elaboraram os mandatários do povo. Era voraz seu apetite em violar todas as que encontrou em seu caminho. Assim como o nacional-socialismo de inspiração nazista nunca teve uma Constituição, Vargas, que historicamente o precede e que se revelou sensível a várias de suas práticas autoritárias, nunca teve maior apego a esse gênero de literatura. Como um deus que criasse suas próprias leis, Vargas, como esclarece Chateaubriand, “fabrica, ele mesmo, igualmente, as suas”. Mas não acredita nelas, “até porque sua inventiva criadora, no curso da vida, será mais útil ao povo do que as constituições paradas no tempo”. E aqui reside, sem dúvida alguma, o prestígio de que sempre desfrutou junto às massas populares. Diz Chateaubriand:

“Foi o primeiro chefe de Estado, aqui, a não cruzar os braços diante da injustiça social, a lhe oferecer combate com franqueza e valor. De 1930 a 1945, seu corpo traz a marca do que sente o indelével daquela injustiça. Dar-lhe combate será a sua obsessão; extirpá-la da face do Brasil, a sua luta.”

Pode-se dizer que o êxito prodigioso de Vargas radica na circunstância de que ele ascendeu ao poder impregnado pelos filtros do populismo, ou seja, do paroxismo da exaltação das massas. Como o pretende Chateaubriand, ele “era povo e foi povo, desde que em 1927 foi para o governo de sua terra natal até o dia 24 de agosto de 1954”, quando saiu “da vida para entrar na história”. Sua carta-testamento, embora não traga a sua assinatura - mas aqui o espírito vivifica e a letra mata -, atesta-o de forma cabal, pois foi ela, além de seu gesto extremo, que o devolveu aos braços do povo.

Seu retorno ao poder em 1951, investido das funções de presidente constitucional, deve ser entendido, do ponto de vista do próprio Vargas, como o início do fim, pois cava-se um abismo intransponível entre ele e o regime democrático com o qual será obrigado a conviver. Pergunta Chateaubriand: “Como poderia caber o antigo tirano dentro das instituições recondicionadas, com o Legislativo e o Judiciário como peças suscetíveis de congelar noventa por cento das atribuições de que ele vivia?” Seu Estado Novo ruíra em 1945 e o País voltara a viver com uma Constituição vazada nos moldes do liberalismo que Vargas expurgara em 1937. Há, por assim dizer, um divórcio profundo entre sua personalidade e o regime que o elegera. Em verdade, Vargas já vive a sua morte, e a idéia da morte, de qualquer morte, traduz invariavelmente, como salienta Chateaubriand, “um estado emocional de alta responsabilidade e de beatitude de espiritualização”. Em certo sentido, Vargas pode ser definido como aquele homem  paciente" de que Ulisses foi o supremo arquétipo entre os antigos gregos, ou seja, uma natureza saturada de heroísmo. É talvez por isso que Chateaubriand, no estupendo perfil que nos traçou do caudilho, alude a uma incompreensão da crítica para com a personalidade de Vargas, que, segundo ele, “não encontra antecedentes em nenhum outro ponto do cosmos latino-americano”. E remata wagneriamente seu  discurso de posse assegurando-nos: “Encontramos no quadro da morte voluntária de Vargas o ritmo da epopéia dos Nibelung. Matando-se, o que ele procura é sobreviver. A idéia da morte deverá ocorrer no ser que se dispôs, graças à plenitude do sofrimento, a encontrar os motivos do renascimento.”

5

Para falar de Assis Chateaubriand, assim como falei brevemente de Vargas por intermédio deste e de seu agudíssimo perfil, seguirei os passos de meu antecessor imediato nesta cadeira, João Cabral de MeIo Neto, quando, em seu discurso de posse, sustenta que "a extraordinária presença humana de Chateaubriand, de quem já se disse que era um 'homem do Renascimento', parece pedir que se faça dele um perfil do mesmo tipo do que ele fez, aqui mesmo, de seu antecessor na Academia". De caso pensado, João Cabral deixou um pouco à margem a figura do homem de ação que foi Chateaubriand para concentrar-se na figura do jornalista e do escritor que igualmente ele foi, justificando a sua escolha com o argumento de que essas duas vertentes andavam à época algo esquecidas. João Cabral não ignorava os riscos que corria, ou seja, os de que sua fala, ao invés de configurar-se como discurso, tangenciasse o ensaio, já que nos daria a ver não tanto o homem, mas a prosa jornalística e literária que nos legou. Prosa, aliás, ciclópica e variadíssima, da qual é ainda rala a parte que se recolheu em volume. Defendia-se João Cabral com base na alegação de que só estivera pessoalmente uma única vez com Chateaubriand e de que esse diálogo se prolongara "por umas duas horas de monólogo". Como Benedito Valadares em determinada reunião política, João Cabral, provavelmente, ficou "rouco de tanto ouvir". Enfim, preferiu o nosso poeta falar de Chateaubriand a distância, isto é, por meio da singularíssima linguagem escrita de que se valeu o jornalista, do que traçar-lhe um perfil que seria, como o próprio João Cabral admite, apenas anedótico. E penso que andou certo em sua escolha.

Como o próprio Chateaubriand se definiu em um de seus  discursos no Senado, era ele, acima de tudo, "uma índole de controvérsia", uma espécie de "paiol de pólvora", imagem com a qual tentou caracterizar, como já se viu anteriormente, o comportamento explosivo dos ocupantes desta Cadeira. Di-lo bem João Cabral quando  observa a propósito da personagem polêmica do autor de A morte da polidez:

"Índole que, sem dúvida nenhuma, Chateaubriand pôde expressar amplamente, pois não sei de jornalista que mais se tenha envolvido em controvérsias, que mais tenha amado a controvérsia. Era como se só concebesse viver nesse clima; e não espanta que, apesar  de tudo o que de positivo ele realizou, tenha vindo a ser um dos homens mais controvertidos de nosso tempo."

Uma dessas atitudes controversas, por exemplo, reside no fato de que Chateaubriand jamais se interessou em ser editorialista de nenhum jornal ou de seus próprios jornais, embora para tanto não lhe faltasse talento ou poder empresarial. E entenda-se que ele sempre foi um jornalista de redação, vale dizer, um jornalista que escrevia cotidianamente. João Cabral estranha esse desinteresse por duas razões mais ou menos óbvias: primeiro, porque o editorial representa o vértice hierárquico de uma categoria, a daqueles que escrevem e argumentam bem; segundo, porque é a tribuna política de qualquer jornal, e Chateaubriand foi, acima de tudo, um jornalista político. Talvez lhe faltasse, como insinua o nosso poeta, a "necessidade mínima de disciplina que o gênero requer", mas acrescenta que, provavelmente, Chateaubriand não confiava "em sua capacidade de escrever impessoalmente", já que o editorialismo clássico não admite em sua dicção tudo o que seja timbre ou sotaque pessoal. Por isso mesmo é que preferiu sempre o artigo assinado, ou seja, um texto que melhor se ajustasse ao estilo daquele profissional de imprensa com o qual Chateaubriand gostava de ser identificado: "simples repórter". E foi como tal que escreveu seus artigos, suas crônicas, suas impressões de viagem e seus textos polêmicos, preferindo sempre à linguagem das idéias abstratas a linguagem fatual do repórter.

Seduz-me sobremodo a análise que, desse ângulo, fez João Cabral da figura do escritor que foi Chateaubriand. Seduz-me, acima de tudo, porque é por meio dessa figura que se revela a vertente mais especificamente literária desse homem complexo e numeroso, pois, diante de tudo o que realizou nas áreas empresarial e cultural, quase se esquece de que ele foi, desde o início, alguém que se valeu, com talento e imaginação, justamente da palavra escrita, dessa palavra que está na raiz de uma tentacular galáxia que um dia se chamou Diários Associados, um conglomerado que, criado em 1924, chegou a reunir 32 jornais, 22 estações de rádio, 16 estações de televisão, 19 revistas, uma

agência de notícias e outra de publicidade. É claro que a magnitude desses números, os quais são quase premonitórios da tendência atual que rege as megafusões empresariais, nos remetem antes ao homem de negócios do que propriamente àquele que, em seus momentos mais dramáticos, sempre se socorreu da palavra. E ainda uma vez é João Cabral quem nos esclarece quanto ao valor intrínseco e específico que adquire essa palavra na prosa que nos legou o autor de A Alemanha,

"sobretudo quando se permite inverter os termos da tendência mais geral e dizer que Chateaubriand foi um grande jornalista não por suas realizações nem por suas lutas, mas, antes de tudo, porque foi um grande escritor em prosa. E grande escritor não por haver escrito conservadoramente, mas sobretudo porque foi um escritor criador: um escritor que soube passar ao lado de todos os rolos compressores a serviço da uniformidade, e, portanto, da pobreza estilística, não pelo puro gosto de subverter regras, mas porque havia nele essa coisa especial, e rara, que revela, mais do que qualquer outra, o verdadeiro escritor: certa maneira pessoal de usar a linguagem que dá um sotaque original ao que ele escreve".

E há ainda uma outra peculiaridade no estilo de Chateaubriand para a qual nos chama a atenção o seu lúcido e sagaz intérprete: a da oralidade. É que, na condição de jornalista que era também dono de jornais, Chateaubriand escrevia como bem lhe aprouvesse, ou seja, escrevia como quem falava, o que lhe acrescentou à linguagem jornalística o timbre e a dicção da linguagem do Nordeste. Entenda-se que não se trata do uso de uma língua coloquial, e sim falada, sem aquela entonação horizontal, quase chã, de quem conversa. Como pondera João Cabral, nessa língua falada não se percebem os "tons variados de uma conversa, mas o tom único de uma discussão, ou de um debate; e é a língua de uma pessoa que fala como quem discute, como era a própria fala de seu autor, e que discute sempre apaixonadamente". E o estranho é que nela jamais aflora o tom oracular  ou professoral, e menos ainda o de alguém que pretendesse dizer "a palavra definitiva e lapidar". É sempre, como sustenta João Cabral, "a voz de Chateaubriand, a voz física de quem busca convencer e influenciar alguém". E aqui reside o segredo mais recôndito da prosa do autor, dessa prosa falada que nele se foi fazendo tão espontânea que, a partir de certo momento, ninguém mais distinguia o que ele escreveu como articulista ou como tribuna, ou o que, eventualmente taquigrafado como discurso de improviso, acabou sendo publicado como artigo de jornal. O que posso aqui repetir, em suma, é que andou certo João Cabral em seu elogio a Chateaubriand, pois, ao deixar um pouco de lado o homem público e o empresário de tantas e cruciais realizações no campo da cultura nacional, realçou-lhe o que de fato mais de perto interessa a esta Casa, vale dizer, o singularíssimo uso que fez da língua, dessa língua falada que o tornou único e inimitável como prosador e jornalista.

6

João Cabral de Melo Neto, a quem não hesito em situar como o maior de nossos poetas nesta segunda metade de século e fim de milênio, nasceu em 9 de janeiro de 1920 na Rua da Jaqueira, atual Leonardo Cavalcanti, no Recife, e faleceu em 9 de outubro de 1999 no  Rio de Janeiro, pouco antes de completar 80 anos. Pelo lado paterno, foi primo de Manuel Bandeira e, pelo materno, de Gilberto Freyre, e a mim me parece que essa ascendência ilustre nos sugere algo de premonitório. Passou a infância em engenhos de açúcar: primeiro, no Poço do Aleixo, em São Lourenço da Mata, e, depois, nos engenhos Pacoval e Dois Irmãos, no Município de Moreno. Se lembro aqui esses pormenores, é menos por exigência de ordem biográfica do que, a rigor, por estritas razões de caráter poético, pois, como todos sabemos, considerável parte da poesia que escreveu o autor está indissoluvelmente vinculada à sua infância e aos temas e cenários nordestinos. Não é minha intenção traçar aqui nenhum perfil biográfico daquele a quem tenho a alta honra de suceder nesta Cadeira, mesmo porque não sou biógrafo, mas sim, como ele, apenas poeta. Buscarei, isto sim, senhores acadêmicos, evocar, e às vezes analisar, se arte e engenho houver para tanto, a grandíssima poesia que nos deixou. E é nela, não tanto na vida ou na morte do homem que a escreveu, que reside a imortalidade de João Cabral de MeIo Neto. Dizem alguns que minha eleição para esta Cadeira foi obra do destino, de um destino com o qual eu não contava, pois, após a derrota para Affonso Arinos de Mello Franco em minha primeira tentativa de ingressar nesta Casa, engolfou-me uma estranha e reconfortante sensação de alívio, a sensação de quem combatera o bom combate e o perdera para um adversário digno, leal e fidalgo de quem, ainda em meio às agruras e alegrias de uma dura e difícil campanha, me tornei amigo fraterno. Não estava em minhas cogitações voltar tão cedo à disputa de uma vaga na Casa de Machado de Assis, mas a mão do destino de súbito nos privou do convívio com João Cabral e me trouxe de volta à pugna acadêmica, cujo resultado todos conhecem. Cabe-me agora fazer o elogio de quem sucedo. É imensa a responsabilidade e pouquíssimo o talento, mas, ainda assim, enfrentemos o desafio. Entendam todos, porém, que se  trata apenas do pobre elogio que um poeta menor faz de um poeta maior, de um elogio de quem foi seu pertinaz e aplicado discípulo e que com ele muito aprendeu desse áspero mas venturoso ofício em que consiste a diuturna prática da poesia.

Pouco depois da morte de João Cabral, escrevi brevemente sobre  a sua poesia em artigo que se publicou em dezembro do ano passado na imprensa brasileira. Fiz questão de ali deixar claro que, com a morte do autor, se abria uma lacuna de provimento problemático ou mesmo improvável nos quadros da poesia brasileira contemporânea. É que, a rigor, João Cabral não tem sucessores ou herdeiros em linha direta, mas antes epígonos, pouco importa aqui se talentosos ou não. E isso se dá em razão da exasperante originalidade de seu estilo, o estilo das facas, das lâminas, da lancinante e desértica secura de sua linguagem realista e antilírica, ao arrepio, portanto, de toda uma tradição que não é apenas da língua, mas da índole e do próprio pensamento da língua, cujas matrizes poéticas radicam na melopéia e na logopéia. Toda a poesia de João Cabral, ao contrário, mergulha suas raízes na fanopéia, ou seja, na vertente que expressa uma realidade visual ou visualizável, tal como o vemos em García Lorca e em quase toda a poesia espanhola desde EI Cid, em boa parte do mosaico alegórico da Commedia dantesca e, no  âmbito da língua portuguesa, neste solitário e desconcertante Cesário Verde, poeta de um livro só, como Leopardi e Dante Milano. Ademais, a poesia cabralina é sempre concebida, como o pretendiam Leonardo da Vinci e depois Paul Valéry, no que toca a qualquer realização artística, em termos de uma estrita cosa mentale. Ao próprio João Cabral aprazia repetir - e fê-lo por vezes incontáveis - que, "para mim, a poesia dirige-se à inteligência, através dos sentidos", ou que "a poesia não é linguagem racional, mas linguagem afetiva. Dirige-se à inteligência, sim,  mas através da sensibilidade". O vezo realístico e antilírico de seu temperamento era tal que o levou a observar, ainda em 1966:

"Você vê os gregos, o Pégaso, o cavalo que voa, é o símbolo da poesia. Nós deveríamos botar antes, como símbolo da poesia, a galinha ou o peru - que não voam. Ora, para o poeta, o difícil é não voar, e o esforço que ele deve fazer é esse. O poeta é como o pássaro que tem de andar um quilômetro pelo chão."

Uma reminiscência às avessas, talvez, daquele canhestro e patético “albatroz” baudelairiano que, preso ao chão, sonhava com a altura. Convém esclarecer aqui que essas declarações de João Cabral, bem como muitas outras de que faremos uso, estão reunidas num voluminho precioso que se publicou em 1998 sob o título Idéias fixas de João Cabral de MeIo Neto, de autoria de Félix de Athayde, amigo já falecido do poeta e que com este manteve longo e  profícuo convívio, dele recolhendo opiniões e depoimentos que hoje constituem uma inestimável fonte primária dos pensamentos de João Cabral acerca da arte de fazer versos.

Antes de prosseguirmos, porém, falemos um pouco, ainda que  brevemente, sobre a formação de João Cabral antes de estrear na poesia. No início da década de 1930, a família do poeta se muda do interior para o Recife, e João Cabral cursa o primário no Colégio Marista. Em 1935 arruma tempo para sagrar-se campeão juvenil de futebol pelo Santa Cruz Futebol Clube, da capital pernambucana. Essa paixão pelo futebol, aliás, o acompanhará pela vida afora. Em 1938, João Cabral passa a freqüentar a roda literária do Café Lafayette, que se reúne em torno do crítico Willy Lewin e do pintor Vicente do Rego Monteiro. Dois anos depois, viaja com a família para o Rio de Janeiro, onde conhece Murilo Mendes, que o apresenta a Carlos Drummond de Andrade e outros intelectuais que se reuniam no consultório de Jorge de Lima, na Cinelândia. Em 1941 participa do Congresso de Poesia do Recife, no qual apresenta suas Considerações sobre o poeta dormindo, tese em que aborda as relações entre o sono e a poesia e na qual sustenta: "Há inegavelmente, nos críticos e poetas de hoje, uma decidida preocupação com o sonho. Fala-se nele muito freqüentemente. Quando se escrevem poemas, procura-se fazê-lo com a linguagem do sonho." Datam daí, como se vê, suas relações com o Surrealismo, visíveis nos dois primeiros volumes de versos do autor.

Quando João Cabral faz a sua estréia poética com Pedra do Sono,  em 1942, a situação da poesia brasileira era muito distinta daquela em que a encontraram os modernistas no princípio da década de 1920. O  problema da Geração de 45, à qual o autor pertence à sua revelia e sobre a qual pormenorizadamente discorreu, não era demolir o que já fora conquistado pelo Modernismo de 22, mas sim buscar uma identidade pessoal que permitisse a cada um de seus integrantes individualizar-se entre os grandes poetas que começaram a publicar na década de 1930, os herdeiros do Modernismo, como Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Cecília Meireles, Vinícius de Moraes, Augusto Frederico Schmidt e Jorge de Lima, os quais, é bom que se diga, já encontraram um terreno limpo do hieratismo parnasiano e da evanescente música simbolista, que nada tinha a ver com aquela music of poetry de que nos fala T.S. Eliot. A tarefa era bem mais árdua do que aquela que realizaram os modernistas de 22, sobretudo Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e Dante Milano, muito embora este último só faça a sua estréia tardiamente, em 1948.

Em Pedra do Sono é ainda visível o tributo que João Cabral paga a certa dicção da poesia drummondiana e ao Surrealismo. O próprio poeta o reconhece em diversas entrevistas ou depoimentos, como a que concedeu a Antonio Carlos Secchin, um de seus mais agudos intérpretes e autor de João Cabral: a poesia do menos. Nela diz o poeta que "poderia perfeitamente eliminar Pedra do Sono" de sua obra, admitindo que, nesse livro, "a influência surrealista é muito forte, mas o Surrealismo só me interessou pelo trabalho de renovação da imagem". Em outra entrevista, esta a Vinícius de Moraes, afirma que, com Pedra do Sono, "minha intenção foi escrever poemas com uma certa atmosfera noturna obtida através de imagens de aparência surrealista". O ambiente desse primeiro livro de João Cabral é acentuadamente onírico,  ou mesmo hipnótico, povoado de pesadelos e alucinações. O poeta parece sonhar ou dormir acordado, como se estivesse em estado de semivigília, tecendo cuidadosamente o seu verso com base no conceito tradicional da associação psicológica e, em alguns casos, reflexiva, como se pode ver no poema “Noturno”, em cuja última estrofe se lê:

De madrugada, meus pensamentos soltos
voaram como telegramas
e nas janelas acesas toda noite
o retrato da morta
fez esforços desesperados para fugir.

Mas Pedra do Sono já traz em si o germe do construtivismo racionalista que irá caracterizar, a partir de O engenheiro, toda a poesia de João Cabral. Quem o intuiu foi Antonio Candido em artigo que escreveu sobre o livro de estréia do autor, artigo que o próprio João Cabral disse que poderia colocar "como prefácio em minhas poesias completas porque ele previu tudo o que eu ia escrever, a maneira como eu ia escrever e meu primeiro livro não é ainda muito característico de minha maneira posterior, mas ele pressentiu tudo". É que Antonio Candido, em sua premonitória avaliação crítica, observou que a poesia aparentemente surrealista desse livro era, no fundo, "a poesia de um cubista". E conclui João Cabral: "De fato, de todas as escolas, estilos de pintura, a coisa que mais me influenciou, mais me marcou, foi o Cubismo. Daí também essa grande influência de Le Corbusier. O Antonio Candido previu esse meu construtivismo, essa minha preocupação de compor o poema, de não deixar que o poema se fizesse sozinho, de falar das coisas e não de mim."

Entre Pedra do Sono e O engenheiro, que virá a lume em 1945, insere-se Os três mal-amados, única experiência que levou a cabo o autor no âmbito do poema em prosa, gênero que não o entusiasmava, como ele mesmo admitiu. Na verdade, trata-se de uma peça de teatro hierático que se frustrou e que, no estágio em que se encontrava, foi publicada em 1943, por sugestão de Carlos Drummond de Andrade, na Revista do Brasil. Mas não é texto de importância para a compreensão da poesia que João Cabral escreveu posteriormente. A partir de O engenheiro, cujos poemas atestam que a écriture de João Cabral jamais foi automatique, e sim artiste, o autor assume o compromisso com uma práxis a que nunca mais renunciará: poesia é construção, cálculo, projeto planejado em que não cabem os súbitos éclats da inspiração ou as névoas do encantamento - enfim, é cosa metale. O que se nota nesse livro é o trânsito do poeta entre o irracionalismo do "sono" e do "sonho" e a racionalidade construtivista de um "engenheiro". O próprio João Cabral diz que O engenheiro "é um livro marcado pela idéia de que um poema pode ser feito apenas com um trabalho de exploração de comportamento das palavras associadas: isto é, através de um trabalho puramente intelectual e voluntário", acrescentando que "certa preocupação de trocar a atmosfera meio mórbida e noturna do primeiro livro por outra mais solar e clara é o resultado direto de ser este último um livro mais intelectual". É também a partir de O engenheiro que se percebe o embrião de uma linha evolutiva que marcará toda a poesia do autor, e pode-se mesmo dizer que o caso de João Cabral é particularmente singular porque talvez seja ele o único poeta desse período - o outro, mas em direção muito distinta, é Ferreira Gullar - que jamais deixou de renovar-se livro após livro. Diz Antônio Houaiss em Seis poetas e um problema que, ao contrário de Pedra do sono, cujos poemas "não definem, não conceituam, não expressam", tentando apenas criar e transmitir uma "atmosfera, um clima, um ambiente", O engenheiro "procura ser um todo objetivo, deliberadamente organizado", e, em seus poemas, "com efeito, já tudo é possível de clarificação, como exercício para o leitor". E remata: "Se há hermetismos, são eles decorrentes de uma forma preciosa e arrevesada por determinação; mas a determinação é clara e expressável em termos lógicos." Exemplo disso seria "A pequena ode mineral", onde se lê:

Procura a ordem
que vês na pedra:
nada se gasta
mas permanece.

Procura a ordem
desse silêncio
que imóvel fala:
silêncio puro,

de pura espécie,
voz de silêncio,
mais do que a ausência
que as urzes ferem.

Psicologia da composição com a fábula de Anfion e antiode, publicado em 1947, inaugura a terceira fase da produção do poeta e, a partir daí, são tantos os estudos que procuram interpretar-lhe a poesia que se torna difícil sobre ela dizer algo de novo. Nesse sentido, parecem-me lapidares e insuperáveis os textos que sobre João Cabral escreveram, entre outros, Antônio Houaiss, Antonio Carlos Secchin, Benedito Nunes, João Alexandre Barbosa, Modesto Carone, Lauro EscoreI, Eduardo Portella, José Guilherme Merquior, Othon Moacyr Garcia, Augusto e Haroldo de Campos, Sérgio Buarque de Holanda, Eduardo Prado Coelho, Luiz Costa Lima, Marly de Oliveira e Marta de Senna. Quem hoje escreve sobre João Cabral, ou quem agora lhe faz o elogio, não pode ignorá-los, pois foram eles que estabeleceram os parâmetros dentro dos quais deverá ser julgada a obra do poeta.  Parecem estar todos de acordo com o fato de que A Psicologia da composição introduz um novo elemento na poesia cabralina, ou seja, como o autor "pensa" o poema no momento em que se dispõe a compô-lo. Como se vê, estamos diante de um discurso metalingüístico em que João Cabral tenta encontrar uma razão de ser do poema, especula sobre o acaso (e não, como entenderam alguns, contra o acaso) e promove uma celebração da secura do deserto e da pedra, como se aqui oficiasse uma missa em louvor das características que, a cada passo e cada vez mais, irá adquirindo sua própria poesia. Tanto assim que dirá, na "Fábula de Anfion", que seu lema é: "Cultivar o deserto/ como um pomar às avessas." A "Fábula de Anfion" é importante também porque, ao contrário do herói de Valéry diante de Tebas construída, o Anfion de João Cabral aposta na dessacralização da fábula e atira a flauta aos "peixes surdos-mudos do mar". E nesse gesto, como corretamente sustenta José Guilherme Merquior em A astúcia da mímese, o poeta reconhece o símbolo desse "processo múltiplo, maior que o homem, mais amplo que o seu espírito".

É ainda na Psicologia da composição que João Cabral rompe em  definitivo com todo um conjunto de tabus verbais preconcebidos e aceitos em virtude de sua posição no âmbito da escola a que aderira e da qual, logo em seguida, se afastaria por discordar das premissas que fundamentavam seu ideário estético. Pelo menos é isso o que se vê nos quatro densos e extensos estudos críticos que publicou sobre a Geração de 45. Na "Antiode", ou seja, a terceira parte da Psicologia da composição e que traz como subtítulo "contra a poesia dita profunda",  essa rejeição ao ideário dos formalistas de 45, dos quais Ledo Ivo foi um dos poucos que sobreviveram porque se afirmou como poeta para além de sua geração, é sobremodo violenta e ostensiva, pois o que aqui se percebe é um processo de cotejo em que a poesia, comparada de início a uma flor, se degrada a condIção de fezes, isto é, a algo que jamais poderia constar de um inventário de palavras eleitas. Assim, de início se lê na "Antiode":

Poesia, te escrevia:
flor: conhecendo
que és fezes
como qualquer.

E no fim do poema:

Poesia, te escrevo
agora: fezes, as
fezes vivas que és.
Sei que outras

palavras és, palavras
impossíveis de poema.
Te escrevo, por isso,
fezes, palavra leve

contando com sua
breve. Te escrevo
cuspe, cuspe, não
mais; tão cuspe

como a terceira
(como usá-la num
poema?) a terceira
das virtudes teologais.

O cão sem plumas, publicado em 1950, constitui, com a Psicologia da composição e O rio, o ápice do estilo apologal cabralino e introduz um outro dado novo na poesia do autor: o da fusão do sujeito com o objeto real, ou seja, O rio Capibaribe. Numa entrevista concedida em 1985 a Antonio Carlos Secchin, que este incluiu como apêndice em seu lapidar João Cabral: a poesia do menos, conta o poeta que O cão sem plumas "nasceu do choque emocional que experimentei diante de uma estatística publicada em O Observador Financeiro. Nela, soube que a expectativa de vida no Recife era de 28 anos, enquanto na Índia era de 29. Nunca tinha suposto algo parecido." Se transcrevo aqui esse pequeno trecho da entrevista, faço-o apenas porque ele constitui um dos primeiros indícios de que, a partir de 1950, João Cabral voltará as costas a si mesmo e às suas preocupações pessoais para celebrar, por meio de sua ótica realista, a miséria e o destino desértico do homem do Nordeste. Assim, talvez mais do que o Capibaribe, esse "cão sem plumas" seja o homem que vive às suas margens, nutrindo-se da lama e dos miasmas que estas lhe oferecem. O cão sem plumas ostenta um notável avanço na poética do autor no sentido de que, aqui, João Cabral busca uma justificação ética para o destino humano, bem como uma autocrítica de sua obra anterior. Ele mesmo o reconhece numa entrevista em que diz: "A quarta parte de O cão sem plumas é uma autocrítica da minha poesia anterior." Ou quando confessa a Vinícius de Moraes em 1953:

"Depois, compreendi que aquilo era um beco sem saída, que poderia passar o resto da vida fazendo esses poeminhas amáveis, requintados, dirigidos especialmente a certas almas sutis. Foi daí que resolvi dar meia-volta e enfrentar esse monstro: o assunto, o tema. O cão sem plumas, meu livro seguinte, escrito em Barcelona, foi a conseqüência."

É ainda em O cão sem plumas, como agudamente sublinha  Antonio Carlos Secchin, que João Cabral "ultrapassa o território do silêncio anfiônico". Mas, "se o silêncio fora conquistado, a palavra que o desterra também deve sê-Io, sob pena de, levada pelo espetáculo sensível das coisas, não apreender o rigor de máquina que nelas subjaz". Cumpre então, como o faz Secchin, entender que, superada a poética "negativa" do silêncio, a poética "positiva", isto é, a que aceita o risco da participação social e denuncia o horror da miséria humana, "não é simples resposta não-dialética, pois recusa, de modo cabal, uma positividade órfica, ávida de integração e celebração da existência". É tão profunda e radical essa reviravolta no comportamento de João Cabral que Antônio Houaiss foi levado a classificar o livro como "um acontecimento anômalo dentro da poesia brasileira contemporânea", acrescentando que dele sai o autor com uma lição: a de que, "no dia em que o poeta quiser fazer das populações do Capibaribe o conteúdo do seu poema, nesse dia irá escrevê-lo sem cifras: o homem do Capibaribe estará no centro e a necessidade de afirmar o futuro no fim".

Contemplado com o prêmio José de Anchieta, do IV Centenário da Cidade de São Paulo, em 1954, O rio, que o autor concluíra no ano anterior, aborda a mesma realidade do poema precedente e, segundo o próprio João Cabral, "foi feito propositadamente prosaico, rude, tosco, mal-acabado". O rio é - nem mais, nem menos - a relação de viagem que faz o Capibaribe da nascente à foz, e, porque assim o é, há, com a antropomorfização de seu curso, duas decorrências: a alegoria e o apólogo, ou fábula. E há também aí, como outra vez sabiamente o denuncia Antônio Houaiss, uma finalidade moral: "O rio quer algo - e muito haveria o que dizer sobre a sua vontade." E há mais: é em O rio que João Cabral começa a cristalizar sua dicção definitiva, sua sintaxe áspera e mineral, a geometria de sua estrofação e os esquemas rímico-métricos de que não mais abriria mão, como o uso sistemático da rima toante e de metros pouco usuais na poesia de língua portuguesa, como os de seis, oito, nove e onze pés, e nunca o decassílabo da tradição camoniana. Como já o dissemos, não apenas o antilirismo e a secura da dicção cabralina, mas também os metros de que se serve o autor, chegam mesmo a contrariar a índole da língua. O verso de João Cabral  é, de longe, o mais duro e desértico dentre todos os que já se escreveram entre nós, e nele não há, ao contrário do que ocorre em quase toda a poesia de língua portuguesa, nenhum indício de melopéia. A propósito, o autor sempre afirmou que não era um poeta musical e que nunca teve bom ouvido para a música. Seu verso, o mais medido e  calculado de toda a poesia brasileira, é visual, plástico, e se insere nas vertentes da fanopéia e da logopéia.

E O rio, em suma, é o paradigma cabal desse comportamento. Todo o poema repousa no sistema hispânico da arte maior, com versos ímpares fixos e versos pares variáveis, mas sempre evitando a redondilha maior, o que, segundo o autor, tornaria o poema "muito rápido". Assim, os versos ímpares são sempre hexâmetros, enquanto os pares ostentam medida métrica variável. E é isso, de par com a utilização rarefeita da imagem e da metáfora, que confere a O rio uma estranheza quase arcaica, bem como seu pedestre e fibroso prosaísmo "de juta, de aniagem, de saco", como sustenta o próprio poeta. Enfim, e sempre, uma "poesia do menos", sem ornato nenhum, como observa Antonio Carlos Secchin. Curiosamente, entretanto, é ele mesmo, João Cabral, quem revela o segredo dessa áspera e desértica tessitura: "Para o ouvido brasileiro, o verso de oito sílabas, sobretudo se você não acentua na quarta sílaba, soa como prosa." Entenda-se que, mais uma vez, João Cabral, que foi um mestre do prosaico, deixa que seu poema seja contaminado pelo prosaísmo, e o que mais surpreende é que, graças a esse procedimento, consiga o autor arrancar tamanho e tão insólito proveito poético.

O rio é, portanto, uma tentativa de "fazer um livro poético com assuntos considerados não poéticos, uma reação contra o rumo que tem tomado grande parte da poesia atual: o jogo de palavras e a rotulação das palavras e dos assuntos em poéticos e não poéticos", como admitiu o próprio João Cabral. Mas boa parte da crítica não o entendeu assim, acusando o poeta de prosaísmo, de incapacidade lírica e de utilizar uma linguagem dura. Essa crítica partiu de preliminares preconceituais  cediças, ignorando, inclusive, o que já postulara a respeito o New Criticism, quando chamou a atenção para as nebulosas fronteiras que separam a poetry da fiction. Ignorando até o que já dissera T.S. Eliot, no memorável ensaio The Music of Poetry, a propósito da viabilidade do poema longo:

"num poema de certa extensão [...], as passagens de menor intensidade serão, com relação ao nível sobre o qual todo o  poema opera, prosaicas - isto é, no sentido que o contexto implica, poder-se-ia dizer que nenhum poeta será capaz de escrever um poema longo a menos que seja um mestre do prosaico".

E João Cabral o foi. A crítica a que nos referimos acima incorreu no equívoco de supor que a linguagem poética fosse algo predeterminado, fixado, canonizado, sistematizado, e cuja essência estivesse definida formalmente desde sempre. Ora, como ensina Antônio Houaiss, a "linguagem poética, como sistema de símbolos lingüísticos, faz-se cada dia, está em perpétua transformação, não se trata de preencher tais ou quais 'fôrmas' com conteúdos verbais mais ou menos novos". Assim, o que essa crítica não percebeu, e O rio sobejamente o demonstra, é que se a visão do mundo não é poética, não há veículo que a transforme em poesia, e se essa visão é poética, mesmo a supressão dos veículos tradicionais de transmissão de poesia não será capaz de invalidá-la. E visão poética é o  que não falta em O rio, como o comprova esta pouca e solitária estância:

Casas de lama negra
há plantadas por essas ilhas
(na enchente da maré
elas navegam como ilhas);
casas de lama negra
daquela cidade anfíbia
que existe por debaixo
do Recife contado em Guias.
Nela deságua a gente
(como no mar deságuam rios)
que de longe desceu
em minha companhia;
nela deságua a gente
de existência imprecisa,
no seu chão de lama
entre água e terra indecisa.

A partir de Paisagens com figuras, escrito entre 1954 e 1955, instaura-se, em definitivo, o esquema rímico, métrico e estrófico que irá prevalecer em segmentos consideráveis da futura obra poética do autor, muito embora não se possa ainda aplicar aos poemas desse volume aquela espécie de poetic principle que eles antecipam, mas que só será enunciado por João Cabral vinte anos depois, em Museu de tudo:

Dar ao número ímpar
o acabamento do par
então, ao número par
o assentamento do quatro.

É a essa divisa numérico-matemática que obedecem os poemas  incluídos em Quaderna, Dois parlamentos e, sobretudo, Serial. Mas, a propósito de Paisagens com figuras, título que em tudo corrobora a obsessão plástico-visual do autor, vamos aqui abrir um parêntese para que melhor se entenda essa nova etapa da poética cabralina. Refiro-me, nesse passo, à influência que a literatura e a arte espanholas exerceram sobre o estilo de João Cabral quando este, como diplomata, serviu em Barcelona, Madri e Sevilha. O próprio poeta, em entrevista ao Diário de Lisboa, disse: "Foi só na Espanha que tive o primeiro contato com os clássicos. Desde o Poema do Cid a Gonzalo de Berceo e ao Século de Ouro, tudo me impressionou fortemente, e de certo modo me influenciou." Em outra entrevista, mais de vinte anos depois, voltará ele a insistir:

"E quando cheguei à Espanha, eu comecei a estudar sistematicamente a literatura espanhola. Foi uma coisa que me libertou dessa influência francesa que eu tinha através do Willy Lewin e ao mesmo tempo abriu horizontes para mim enormes. Porque o espanhol [... ] tem a literatura mais realista do mundo. Isso foi outra coisa da maior importância para mim, para eu me reforçar no meu antiidealismo, no meu antiespiritualismo, no meu materialismo."

E não há dúvida de que o realismo e a fanopéia da poesia espanhola, bem como o ritmo do flamenco ou a maneira de ser andaluza, muitíssimo contribuíram para que se acentuassem o antilirismo e a plasticidade visual da poesia cabralina, que se beneficiou ainda do distanciamento que a vida diplomática proporcionou ao autor no que toca à sua visão do Nordeste brasileiro. João Cabral chegou mesmo a dizer que foi a Espanha que lhe deu "um afastamento suficiente, não excessivo, para poder escrever sobre o Nordeste”.

Tais influências são visíveis já em Paisagens com figuras, mas há que ressaltar, neste caso, uma circunstância por assim dizer seminal: é que, ao recebê-las, João Cabral, então com 35 anos, já amadurecera como poeta e, maduro, delas tira um notável proveito, tornando ainda mais seu o que já era seu, sobretudo a sintaxe e a dicção, que adquirem uma dureza de diamante. Paisagens com figuras introduz ainda o tema crucial e recorrente dos "cemitérios pernambucanos" – crucial, acima de tudo, porque lida com a "morte severina" dos retirantes e, a rigor, com a obsediante preocupação da morte do próprio poeta, como ele descobriu em Madri, quando o psicanalista espanhol López Ibor lhe disse durante uma consulta: "O senhor pensa que está falando na morte dos outros, mas o senhor está falando é na sua morte." João Cabral tentou defender-se argumentando que, em Morte e vida severina, não fala da morte individual, rilkiana, e sim da morte social. Mas López Ibor atalhou: "Aí é que o senhor está enganado. Isso é uma maneira pela qual o senhor está falando na sua morte sem falar, como Rilke, na primeira pessoa. De forma que sua obsessão pela morte é tão grande que o senhor é interessado pela miséria." E essa morte cemiterial ajusta-se como luva às preocupações plástico-visuais do poeta, capaz de ver que:

Nenhum dos mortos daqui
vem vestido de caixão.
Portanto eles não se enterram,
são derramados no chão.

Vêm em redes de varandas
abertas ao sol e à chuva.
Trazem suas próprias moscas.
O chão lhes vai como luva.

Mortos ao ar livre, que eram,
hoje à terra-livre estão.
São tão da terra que a terra
nem sente sua intrusão.

A propósito dessa trágica e funérea plasticidade, lembre-se o que observa Antônio Houaiss em Seis poetas e um problema:

"[...] a identidade da vida com a morte, da matéria física com a espiritual, da matéria física e espiritual dos corpos humanos com a terra, não é asseverada, afirmada, exposta conclusivamente, mas é - o termo é este mesmo - constatada como fato, como fato visível, descritível, por conseguinte plástico".

Recorde-se também que, em Paisagens com figuras, João Cabral, sempre que pretendeu obter efeitos rímicos mais definidos, não hesitou em retomar aos metros tradicionais da redondilha e do romance, mas, como ainda uma vez salienta Antônio Houaiss, "a sua repulsa aos apoios fonéticos não necessários à sua visão poética é tal, que raríssimos são os casos de rima, salvo as toantes, e estas são freqüentes sobretudo como molde ou 'fôrma' para a obtenção de uma certa fixidez poemática". E recorde-se, enfim e afinal, um outro princípio operacional cabralino, este mais genérico e de um didatismo tal que constitui, para cada um de nós, poetas, um como que mandamento bíblico, pois nos remete àquela exigência de austeridade e de assepsia expressivas sem o concurso das quais nenhum poeta será capaz de escrever um único verso digno desse nome. João Cabral o proclama nos últimos versos do poema "Alguns toureiros", que aqui transcrevo como bom discípulo que sou:

Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,

o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra,
o de figura de lenha,
lenha seca de caatinga,

o que melhor calculava
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,

o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria,
decimais à emoção,
e ao susto, peso e medida,

sim, eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.

O que vale dizer: como escrevê-Io para além de toda a "literatura".  E essa é a grande herança que nos deixa João Cabral: sua linguagem e  seu ideal de poesia fluem a contrapelo de toda uma tradição de transbordamento verbal a que sucumbiram não poucos grandes poetas brasileiros desde o Romantismo até agora.

É a morte dos outros (e a dele, João Cabral) que preside o auto de Natal pernambucano Morte e vida severina, escrito também entre 1954  e 1955. Trata-se de um poema dramático em "voz alta" no qual é visível  a tradição pastoril, o que leva o autor a optar por uma linha discursiva próxima à de O rio e que se apóia, predominantemente, no metro da redondilha maior. O poema releva pelo plano da construção dramática, pela emoção concentrada e a densa carga afetiva, pela riqueza  imagística e os efeitos plásticos do tipo judicante. Adaptado para o teatro e a televisão, com a venturosa e adequadíssima música de Chico Buarque de Holanda, o poema consagrou o autor em plano nacional e internacional. Trata-se de uma obra-prima que o poeta, curiosamente, jamais reconheceu como tal, tendo chegado mesmo a dizer: "Uma das coisas que me irritam no auto, em Morte e vida severina, que acho a coisa mais fraca que já fiz, é o aspecto formal." Tal juízo só tem uma explicação: habituado a toda sorte de dificuldade composicional, João Cabral, porque estava escrevendo para o povo, impôs-se a exigência de ser claro, recorrendo amiúde ao ritmo cantábile das redondilhas, conquanto outros metros sejam aqui utilizados. E o povo agradeceu, enchendo os teatros das capitais.  Mas João Cabral tem razão quando lamenta que “a gente para quem eu escrevi nunca tomou conhecimento do auto". E nem o poderia, pois até hoje não tem sequer o que comer. Ainda assim, disse o poeta que foi "a coisa mais relaxada que escrevi", tanto que "devo ter reescrito apenas umas seis vezes...".

Morte e vida severina é, acima de tudo, uma obra em que, apesar de seu visceral pessimismo, se celebra a solidariedade humana, sentimento que acompanha o poeta desde O cão sem plumas. João Cabral sabe que "viver da morte" é a única escolha que resta aos sobreviventes da região, tanto assim que, pela boca da rezadeira, nos diz:

- Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte oficio ou bazar.

E adiante:

Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar.

E quando alguém ali morre, nem mesmo os amigos que o levaram ao cemitério são capazes de comiseração, mas antes de uma ironia que beira o sarcasmo, esse sarcasmo dos que sabem que toda luta será vã:

- Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida.

- É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.

- Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.

Todavia, diante do que restou do corpo devastado desse mísero trabalhador de eito, a cova que lhe coube, exígua, acabará por tornar-se irrestrita:

- É uma cova grande
para teu pouco defunto
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.

- É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.

- É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.

O texto de Morte e vida severina assombra os leitores desde o início, pois, já na auto-apresentação da personagem, quando esta explica à platéia "quem é e a que vai", surge em cena um Severino que, como adverte Antonio Carlos Secchin, "quanto mais se define, menos se individualiza, pois seus traços biográficos são sempre partilhados por outros homens", ou seja, outros Severinos "iguais em tudo" na vida e na sina. Vale a pela recordar aqui o princípio e o fim da fala desse áspero e esquálido Severino "que em vossa presença emigra" e que, quanto mais busca distinguir-se, mais e mais se dissolve no anonimato coletivo:

- O meu nome é Severino
não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
Ora a Vossas Senhorias?
[...]
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.

Ser destituído de tudo, sem identidade pessoal e sem ontologia, e por  cujo nome atende não um indivíduo, mas uma legião de desvalidos, este mesmo Severino, ao findar-se o auto, nos pergunta:

- Seu José, mestre carpina,
que diferença faria
se em vez de continuar
tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida?

As três obras que se seguem na bibliografia de João Cabral de MeIo Neto - Uma faca só lâmina, de 1955, Quaderna, de 1959, e Dois parlamentos, de 1960 - aprofundam e desenvolvem aquele princípio numérico-matemático de estrofação isomórfica. Mas cada uma delas acrescenta, de per si, um novo elemento à poesia do autor. Assim, Uma faca só lâmina constitui o vértice de algumas das obsessões que vinham lastreando a poética de João Cabral, daí o subtítulo (Serventia das idéias fixas). Em seus dez segmentos, suas 88 estrofes de quatro versos, seus 352 hexassílabos, Uma faca só lâmina, cujo título nos sugere de imediato uma clara noção de carência, é, no entender de Antonio Carlos Secchin, "o último poema em que João Cabral focalizou as condições do 'fazer' (sem que, insistamos, tal 'fazer' seja unicamente 'poético', e sem que a preocupação com o 'comunicar' não lhe seja correlata)". E acrescenta:

"Se a metalinguagem, explícita ou não, continuará sendo um dos eixos propulsores de seu percurso poético, é Uma faca só lâmina o texto mais sistematizado, a matriz de que muitos poemas posteriores se valerão para retomar, numa espécie de diálogo crítico, as idéias propostas neste texto-base."

E daí sua importância para a compreensão da medula estrutural de tudo o que o autor viria ainda a escrever. Em entrevista ao próprio Secchin, diz João Cabral: "Como estrutura de livro, A educação pela pedra é minha obra mais tensa. Como verso, Uma faca só lâmina." E a Arnaldo Jabor faz esta surpreendente confissão:

"Uma faca só lâmina é um poema sobre a obsessão. Mas não é a obsessão metafísica sobre a condição 'vazia' do homem. [... ] Você se lembra da última estrofe, quando eu digo: ‘por fim à realidade, / prima, e tão violenta / que ao tentar apreendê-la / toda imagem rebenta.’ Se lembra? Pois saiba que fiz este poema para minha prima mesmo, uma moça linda que não quis dar para mim. Ela é a razão do poema. É um poema de amor."

Vá lá entender-se o que leva a crítica a especular sobre a "razão do poema"...

Em Quaderna, publicado quatro anos depois em Portugal, João Cabral retoma um espectro temático que já utilizara em Paisagens com figuras: o Nordeste, a Espanha e o diálogo entre ambos. Esse livro traz também uma novidade: pela primeira vez na obra do autor avulta a presença da mulher como referência direta do poema. Oito dos vinte textos do volume exploram o tema do feminino, mas, como alerta Antonio Carlos Secchin, "o único aspecto verdadeiramente unificador da abordagem do feminino é o padrão formal dos poemas a que ele, feminino, comparece". Assim, o espaço que cabe à mulher inclui poemas que têm oito ou doze estrofes com versos sempre heptassilábicos apoiados numa única rima toante. Indagado por Secchin sobre essa inclusão tardia da temática feminina em seu percurso, João Cabral respondeu: "Na minha poesia a mulher é um tema a mais, como qualquer outro. Não o utilizo para confessar frustrações amorosas. Descrevo uma mulher sem biografia; o que ela representou na minha vida não vem ao caso." Mas é tamanha a pulsação lírica que os anima que pelo menos dois desses poemas parecem desmentir o que afirma o poeta. São eles "Estudos para uma bailadora andaluza", que abre a  coletânea, e "Paisagem pelo telefone". Do primeiro leio aqui estas três estrofes:

Porém a imagem do fogo
é num ponto desmentida:
que o fogo não é capaz
como ela é, nas seguiriyas,

de arrancar-se de si mesmo
numa primeira faísca,
nessa que, quando ela quer,
vem e acende-a fibra a fibra,

que somente ela é capaz
de acender-se estando fria,
de incendiar-se com nada,
de incendiar-se sozinha.

E de "Paisagem pelo telefone", as cinco estrofes finais:

Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,

fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,

e que, por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria

que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,

sim, como o sol sobre a cal,
seis estrofes mais acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.

Há ainda em Quaderna dois poemas que se poderiam qualificar de metalingüísticos e que nos dizem muito sobre a incessante evolução da poesia cabralina. O primeiro deles é "A palo seco", rujas imagens nos remetem àquele "repertório de ascese" que o autor esgrima desde a "Fábula de Anfion", mas sem que haja, aqui, nenhum fascínio pelo silêncio, como ocorria no poema anterior. Em "A palo seco", o poeta não só define o cante e as relações deste com o silêncio, mas também o redefine à luz da possibilidade da voz, dando ainda a ver situações e objetos a palo seco. Veja-se como, logo no início do poema, João Cabral define o cante por meio de discurso conceitual, associando-o às noções de economia, solidão e claridade:

I.I Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem o cante;
o cante sem mais nada;

se diz a palo seco
a esse cante despido;
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino.

O outro texto a que me referi leva o título "Poema(s) da cabra", em que a secura reaparece como condição de vida e, metaforicamente, de exigência poética. O poema dá a ver ao leitor as paisagens ásperas e abruptas do Mediterrâneo e do Nordeste, estabelecendo uma oposição entre o "clássico" e o "sem estilo", ou seja, entre o Mediterrâneo e o Sertão, como se vê no último segmento do poema, no qual a cabra nada mais é que um símbolo das condições de vida nas quais, resignado à sua sina, agoniza o homem nordestino:

O Mediterrâneo é mar clássico
com águas de mármore azul.
Em nada me lembra as águas
sem marca do rio Pajeú.

As ondas do Mediterrâneo
estão no mármore traçadas.
Nos rios do Sertão, se existe,
a água corre despenteada.

As margens do Mediterrâneo
parecem deserto balcão.
Deserto, mas de terras nobres,
não da piçarra do Sertão.

Mas não minto o Mediterrâneo
nem sua atmosfera maior
descrevendo-lhe as cabras negras
em termos das de Moxotó.

Dois parlamentos, o livro seguinte de João Cabral, envolve a circunstância de ser a obra que assinala o epílogo da vertente iniciada  com O cão sem plumas, isto é, a do poema longo de temática social. Mas, ao contrário das imagens líquidas que embebem O rio e Morte e vida severina, a matriz metafórica de que se nutre Dois parlamentos é a terra, elemento já visível na primeira parte do livro, que leva o título "Congresso no Polígono das Secas". Vale a pena observar que, naquelas duas obras anteriores, o retirante cumpre uma travessia na qual tem como companheiros inseparáveis os rios do Sertão. Mas em "Congresso no Polígono das Secas" já não se pode falar em nenhuma travessia humana, mas antes em sua estação terminal, vale dizer: a morte. Assim é que o tema dos "cemitérios gerais" cruza a totalidade das 16 estâncias do poema. Poucas vezes, em toda a sua poesia, João Cabral foi tão menos e tão não quanto na urdidura desse poema, e esse não se dirige apenas à própria morte, que se mostra sob diversas máscaras, nas quais, é bem de ver, tudo é supérfluo diante do despojamento que priva o morto de qualquer ornato ou mesmo "etiqueta", como se pode ver nestes versos:

- Nestes cemitérios gerais
os mortos não têm o alinho
de vestir-se a rigor
ou mesmo de domingo.

- Os mortos daqui vão despidos
e não só da roupa correta
mas de todas as outras
mínimas etiquetas.

Outro aspecto que não pode ficar sem registro é o da estrutura do poema, que já antecipa o império do número quatro, como veremos,  logo depois, em Serial. Assim, toda esta primeira parte está baseada no número quatro, enquanto a segunda, que leva o título "Festa na casa-grande", se apóia no número cinco. A esse respeito, o próprio João Cabral disse, em entrevista a Antonio Carlos Secchin, que, em Dois parlamentos, desenvolveu, "além da preocupação com cada poema, princípios de estruturação da obra globalmente considerada, tanto no nível da estrofação quanto no da métrica", o que comprova que, para cada uma de suas obras, o poeta se impunha o desafio de uma macroestrutura adrede concebida, e partia sempre da idéia do livro como um todo, e não de poemas que se encontrassem dispersos e que fossem depois coligidos em coletâneas.

E assim chegamos a Serial, publicado em 1961 e que constitui a suprema instância da obsessão de João Cabral pelo número quatro. Senão, vejamos: o livro está dividido em quatro partes, sob qualquer ângulo que se lhe veja, constando de 16 poemas que se distribuem sempre em quatro partes. Quatro desses poemas têm seis sílabas, quatro têm quatro, quatro têm oito e quatro têm seis ou oito. Quatro poemas estão constituídos de duas quadras cada parte, quatro de seis e quatro de oito. Quatro poemas são unidades objetivas, quatro são fragmentados em quatro partes, quatro são maneiras distintas de ver a mesma coisa, quatro são assonantes. E assim até o fim, somente escapando dessa tirania o poema isolado "Graciliano Ramos", que homenageia um escritor nordestino acima de tudo realista e antilírico. Esse jugo do número quatro, que, claro está, obedece a um esquema prévio, poderia induzir à suspeita de algo artificioso e passível de perpetuação em termos de modelo. Mas não o é. Quem no-lo explica é Antonio Carlos Secchin, quando sustenta que a atitude seminal do autor é combater a fôrma da forma, pois "essa laboriosa construção, uma vez concluído Serial, não mais será utilizada no livro-construção seguinte; desautoriza-se, assim, a perpetuação do modelo, e se parte em busca de novas formas de organização". E o remate exegético do mesmo Antonio Carlos Secchin é aqui lapidar: "A poesia cabralina abarca o projeto de um arquissistema, sempre em aberto, tecido a partir da elaboração (e da superação) de sistemas pontuais, identificados com a produção específica de cada livro. A obsessão do rigor ultrapassa qualquer forma que a queira expressar - por mais rigorosa que seja. Desse modo, o rigor vai perdurando para deixar atrás de si o rastro insatisfeito de sua própria trajetória."

Em entrevista que concedeu ao Diário de Lisboa em 1966, ano da publicação de A educação pela pedra, esclarece João Cabral o que pretendeu ao escrever esta obra: "Quis construir todo o livro num dualismo. Aliás, ele esteve por se chamar O duplo ou a metade. Assim, a obra compõe-se de 48 poemas: metade deles é sobre Pernambuco, a outra metade, não; metade dos poemas tem 24 versos, a outra metade,  16; metade dos poemas é simétrica, os outros são assimétricos; metade dos poemas associa-se, aglutina-se, outra metade repele-se; e por aí  afora...". E por aí também já se vê que o poeta permanece obcecado por suas idéias fixas. A educação pela pedra, cuja estrutura composicional só encontra paralelo no rigor com que foi urdido Serial, é, desse ponto de vista, o livro mais tenso de João Cabral. Quanto ao verso de que se vale aqui o poeta, há nele uma certa distensão métrica que não encontramos em suas outras obras, e uma das propostas formais que aí se fazem é a prática contumaz de um verso que se poderia dizer longo, não sistematicamente isossilábico, mas que se articula sempre nas imediações do endecassílabo, o que ilustra uma óbvia recusa do poeta à tradição melódica do decassílabo camoniano. Ainda uma vez, João Cabral contraria aqui a índole da língua portuguesa, buscando insistemente uma dureza de dicção que nada tem a ver com a vertente da melopéia, tão cara ao idioma que herdamos de Camões e de todos os grandes poetas que nele se expressaram. Mas é bom lembrar que essa característica cabralina tem sua origem na áspera e seca linguagem do sertanejo, que é, consabidamente, um homem de poucas e duras palavras. E aqui está a "educação pela pedra" que nos propõe esse mesmo sertanejo quando fala e que, toda vez que o faz, fá-lo pouco e de modo doloroso:

Daí por que o sertanejo fala pouco:
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso;
o natural desse idioma fala à força.
Daí também por que ele fala devagar:
tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-las na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho.

Tanto quanto qualquer outro de seus livros anteriores ou posteriores, A educação pela pedra privilegia, no nível da linguagem do poeta, sua busca incessante pelo que há de visual ou visualizável na realidade. Para que possamos compreender melhor esse procedimento, José Guilherme Merquior, em A astúcia da mímese, nos remete a uma figura da velha retórica preceptiva, ou seja, a hipotipose, que consiste em "tornar as coisas visíveis e concretas". Toda a arte estaria, assim, obrigada a revestir-se de concreção, mas a simples existência desse antigo tropo nos recorda quanto a literatura, cuja matéria-prima não é de natureza sensorial, mas de natureza antes simbólica, será capaz de alcançar essa concreção para além do efeito analogicamente "visual".  Ao contrário da poesia de Mallarmé, por exemplo, que instaura uma concreção muito diversa daquela que se deve às volutas sensuais do cultismo gongórico ou à meridianidade do desenho dantesco, toda a Commedia pode ser entendida como uma vasta hipotipose. O estilo de Dante chega ao símbolo graças à apresentação direta da fisionomia do mundo, seja este real ou fictício. Não é, portanto, um estilo alusivo, e sim presentativo. Merquior considera que o idioma poético de João Cabral pertence a essa família, acrescentando que ele "reconcilia o esforço da lírica pela abertura de uma nova perspectiva filosófica com o novo gosto pelo perfil saliente dos objetos, pela vividez da cena imediata da experiência". E é por meio dessa conversão da autonomia do significante numa "poética da visibilidade", sempre à margem de quaisquer pressupostos da visão metafísica, que a obra de João Cabral assegura à poesia brasileira um lugar de indiscutível destaque no concerto da tradição contemporânea.

7

Senhores Acadêmicos, eu poderia aqui - e bem o sabeis - alongar-me noite e madrugada adentro a discorrer sobre a poesia de João Cabral de MeIo Neto, que, depois de A educação pela pedra, nos legou ainda, entre 1980 e 1993, Museu de tudo, A escola das facas, Auto do frade, Crime na calle Relator, Sevilha andando e Andando Sevilha. Mas não o farei, pelo menos agora, por duas razões que considero razoáveis. Em primeiro lugar, porque o discurso já se faz longo demais e, conseqüentemente, tedioso. Em segundo lugar, porque atendo aqui a um pedido do próprio João Cabral. Ele o fez, sem reservas, numa entrevista que concedeu a Rubem Braga em 1976. Nela diz o poeta: "Considero minha obra acabada aos 45 anos. Não no sentido de que não escreverei mais, nem no de que não publicarei mais. Sim, no sentido de que não me sinto responsável pelo que escrevi e escreverei  (talvez) depois dos 45 anos (...). Mas o que escrevi e talvez escreverei depois de A educação pela pedra é coisa que escrevi sem a mesma consciência, ou lucidez, do que escrevi antes. Gostaria de ser julgado pelo que escrevi até os 45 anos. Gostaria de ser considerado um autor póstumo: procurarei ignorar o que dizem, o que acham do que ainda posso fazer (e do que fiz depois dos 45 anos, isto é, depois de A educação pela pedra)." É longa a resposta do poeta a Rubem Braga, mas creio que o essencial está aí. Ela é, como tudo sempre foi em João Cabral, uma lição de humildade, uma lição que só poderia ser dada por um homem e um poeta da sua estatura.

Em toda a minha vida, estive pessoalmente com João Cabral  apenas duas vezes: em 1993, quando o entrevistei para a já extinta revista Piracema, criada por Ferreira Gullar na Funarte e da qual fui editor; e em 1999, quando o vi brevemente durante uma visita protocolar de campanha acadêmica. O poeta pareceu-me, então, desolado com a perda definitiva da visão, o que, para ele, artista essencialmente visual, era como um golpe insuportável. Mas em nenhum momento deu-me a impressão de que morreria em tão curto lapso de tempo. Lembro-me de que o visitei no fim de junho, e o poeta viria a falecer em outubro, cerca de quatro meses depois. E em momento algum, também, passou-me pelo espírito a possibilidade de vir a sucedê-lo nesta Cadeira. Em virtude desse escasso relacionamento pessoal é que não me dispus a falar do homem João Cabral, e sim da poesia - esta, sim, imortal - que nos legou. Claro está que tudo o que foi dito neste discurso é apenas uma gota d’água no oceano de coisas que ficaram por ser ditas e que outros, bem melhor do que eu, talvez já tenham dito. Escuso-me, portanto, de tudo aquilo que aqui não pude dizer e que talvez devesse ter dito. Faltaram-me arte e engenho para tanto.

Senhores Acadêmicos, gostaria de vos agradecer a enfática e  generosa acolhida que recebi nesta Casa. Não é todo dia que se consegue alcançar essa surpreendente soma de 32 votos, o que, se muitíssimo me desvaneceu, trouxe-me também imensas responsabilidades. Por muitas razões, penso que não merecia tamanha votação, mas a culpa, neste caso, é toda e apenas vossa. E não há como vos arrependerdes. Ou, se há, não vos cabe mais nenhum recurso. Para qualquer homem de letras - e sou apenas isto -, ingressar na Casa de Machado de Assis é a honra e o reconhecimento supremos. Devo-os a vós, e a mais ninguém. E aqui estou para iniciar esse convívio até que a morte nos separe. Há nesta cerimônia de posse algo de sacramental e quase litúrgico, algo de que não poderemos jamais nos esquecer, algo que se confunde com a sagração dinástica e que nos torna maiores do que somos, e somos apenas, como disse Camões, "esse bicho da terra tão pequeno". Tenho ainda a honra de ser aqui recebido não só por um dos maiores ensaístas e homens públicos deste País, mas também por um amigo, por alguém que, quando ainda era ralo e fugaz nosso relacionamento pessoal, me deu a mão num dos momentos mais difíceis de minha vida. E não é de meu feitio esquecer a solidariedade de quem quer que seja. Refiro-me aqui a Eduardo Portella, cujas "dimensões" dispensam quaisquer comentários. Senhores Acadêmicos, gostaria de encerrar o meu discurso de posse  com o mesmo ânimo que me levou a candidatar-me a uma vaga nesta Academia, esse ânimo que se nutre daquela antiga crença cristã que, melhor do que eu, expressou T.S. Eliot nestes dois versos de "East Coker", o segundo de seus Quatro quartetos:

A única sabedoria a que podemos aspirar
É a sabedoria da humildade: a humildade é infinita.