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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. EMÍLIO DE MENESES

Confrades e Mestres,

Fastidioso vai ser este quarto de hora em que sois forçados a ouvir-me.

Circunstâncias de ordem íntima e, por isso mesmo, imperiosas, vão levar-me a um discurso personalíssimo em que falarei mais de mim que do meu ilustre antecessor nesta cadeira. Tal procedimento traria a eiva de exibição ou vaidade, não fora o desejo ardente de um desabafo; não fora o aproveitamento da oportunidade única que se me apresenta para esclarecer pontos da minha pobre vida tão mal julgada, ponto que, aliás, não elucidaria, não se relacionassem eles com a nunca sonhada honra da minha eleição para membro desta Casa.

Faço do momento, que tão propício se me depara, um acantábulo para arrancar espinhos que de há muito me pungem. Dizer-vos que nunca desejei fazer parte da vossa nobre agremiação, seria mentir à minha própria consciência. Afirmar, entretanto, o emprego de esforços desairosos que se me atribuem para a conquista da insigne distinção de ser dos vossos, sobre ser um meio de escapulir aos limites da verdade, é transbordar dos da decência.

Fundada a Academia, se eu a não recebi com as irreverências e até torpezas, cuja paternidade me foi dada, não tive para com ela, é certo, grande e entusiásticos aplausos. Influências múltiplas da época fizeram tomar, à primeira vista, o novo instituto literário como um exército, uma cópia, uma espécie de naturalização de hábitos infensos às nossas tradições e usanças. Por essas influências não era eu o único dominado. Era uma corrente quase geral, como bem o podem atestar todos os membros sobreviventes à sua fundação. Essa atmosfera, senão de hostilidade, de suspeição, em que talvez houvesse despeito e inveja, envolveu por espaço, mais ou menos longo, a Academia. O tempo, a consideração que ela foi adquirindo, com presteza e segurança, o reconhecimento da sua ação profícua e, sobretudo, a elevação de espírito e caráter do principal fundador e dos seus companheiros, foram os fatores que mais concorreram para modificar as primeiras impressões suspeitosas com que a opinião dos “novos” (alguns dos quais bem velhos, por sinal) recebeu a venerável Companhia.

Eu, por meu lado, já tinha aqui, entre grandes e queridos amigos, os meus maiores e mais amados mestres: Alberto de Oliveira, Olavo Bilac, Luís Murat, Raimundo Correia, para citar somente os poetas. Via aqui, além desses, reunidas, mais que reunidas, unidas no mesmo esforço e no mesmo ideal, as individualidades genuinamente representativas da nossa inteligência e da nossa cultura. Culminando todas, eu divisava as figuras máximas: – o vulto indecifravelmente grande de Machado de Assis, até hoje inatingido por um juízo que o defina em toda a sua complexidade, apesar do monumental trabalho de Alfredo Pujol, do perspícuo e erudito estudo de Alcides Maya ou da carinhosa e enternecedora Memória de Mário de Alencar, e essa indizível projeção de luz que é o nome de Rui Barbosa. De Rui Barbosa, cuja obra faz reviver em mim um espetáculo da minha terra, desse paradisíaco pedaço da pátria brasileira, espetáculo que constitui uma das maiores maravilhas da Natureza. É o Salto das Sete Quedas.

O rio Paraná, oceanicamente largo, abrupto, se represa numa garganta angustiosa e a formidável massa d’água, assim represada, abruptamente, tomba em cachoeira, de tal altura e com tal violência, que de novo se levanta formando uma montanha líquida. Diariamente, às horas claras do sol, nessa montanha de cristal fluido, há a formação do espectro solar. É o arco-íris. É a mais bela manifestação da luz celeste a aureolar a maior das energias da terra pátria. Energia que, só por si, pode fornecer força e luz a toda a extensão territorial do Brasil. Não sei se com esta comparação consigo dizer da obra do Mestre. Ele que me perdoe se por mesquinha a tiver.

Bastavam esses elementos para que houvesse em mim a aspiração vaga, o desejo mal definido, de um dia poder sentar-me ao vosso lado. Essa aspiração e esse desejo nunca se corporificaram, porém, em vontade firme, por motivos diversos. Apesar da minha aparente sociabilidade alegre ou risonha, sou um retraído, não por orgulho, senão por timidez. Além disso, fui sempre, mais ou menos, avesso à influência das coletividades, nunca tendo pertencido a grêmios, associações ou grupos, sendo, em arte, um insulado. Esse meu natural retraimento se agravou por causas que estas palavras não comportam. Tive, é certo, um período, aliás, efêmero, de alto convívio social, voltando à primitiva modéstia, quando se me escoou das mãos inábeis e desinteressadas uma pequena fortuna, por mim adquirida.

Direis que longa e fatigante vai esta divagação e sou dos primeiros a acordar convosco. De muito menos talvez precisasse para dizer-vos das causas pelas quais nunca entrou nas minhas cogitações, nas minhas aspirações, claras e definidas, a possibilidade de um dia sentir-me orgulhoso de vossos sufrágios. Não teria coragem de solicitá-los por julgar empresa arriscada e inútil. Seria tentar uma escalada ao supremo inatingível. Em certo dia, entretanto, tive notícia de haver sido procurado por Sousa Bandeira, Raimundo Correia e Graça Aranha, os quais me deixaram hora para encontro. Não sei como dizer do meu pasmo e da minha emoção, ao ouvir dos meus três amigos o conselho e, após o conselho, a solicitação do meu nome como concorrente a uma cadeira na Academia. Mal lhes pude responder, tal embaraço e a perplexidade em que me encontrei nesse inesquecível instante. Graça Aranha vivo está. Não me sinto na obrigação de apelar para o seu testemunho, porque ridículo e imoral seria de minha parte, o abalançar-me a afirmações de possível desmentido. Morto Sousa Bandeira, que foi um dos meus melhores amigos e um dos amparadores do meu nome, resta sua digna família, conhecedora desse fato.

Nessa mesma tarde, ainda comovido, encontrei-me com Rodrigo Octavio, a quem comuniquei o que se passava. Maior ainda foi a minha emoção ao saber, dias depois, que Rio Branco era quem mais se interessava por mim e que Graça Aranha me procurara não só em seu próprio nome, como no emissário do Grande Brasileiro. Ainda assim, não tive coragem de apresentar-me e, sucessivamente, por três vezes, o receio me dominou até assumir o compromisso verbal com Rio Branco que, em certa manhã, me mandou chamar, por Ernesto Sena, à Galeria Cruzeiro, onde se achava acompanhado de dois funcionários, ainda vivos, do seu ministério e, após palavras não reproduzidas aqui por me serem demasiadamente envaidecedoras, obrigou-me a assumir esse compromisso. Já então eu me sentia amparado por manifestações comovedoramente carinhosas de amigos e companheiros, aos quais se vieram juntar, com surpresa e orgulho para mim, a grande e luminosa personalidade de Pedro Lessa, e a modéstia santa e sábia de Inglês de Sousa. De Rui Barbosa, cujo voto, mais que voto, me foi bênção, já havia recebido eu, por intermédio de um amigo, a notícia do seu carinhoso acolhimento.

Achareis provavelmente insólitas e inoportunas estas explicações. Vereis em breve que elas têm razão de ser. Depois do que acabais de ouvir e apesar disso, houve quem afirmasse ter eu usado até da ameaça de sátiras mordacíssimas contra os que em mim não votassem. Isto, se não perecesse pela própria torpeza, melindraria mais a Academia que a mim. Seria pensar que nesta Casa houvesse alguém capaz de se intimidar com semelhantes ameaças. Seria pensar, para só falar no maior dos maiores, que Rui Barbosa, cuja vida tem sido uma série ininterrupta de atos de coragem, combatendo e abatendo gigantes da pena e da palavra, descesse a dar atenção a tal indecência. Daí, talvez, o autor dessa indecência tenha razão, porque, infelizmente, entre nós, não há injúrias soezes com pretensão a humorismo, calúnias e pornografias desvernaculizadas, que me sejam atribuídas. Há mais. Há quem se aproprie por furto ou doação humilde e rastejantemente solicitada, do trabalho literário de outrem e, depois, pague o dano ou indenize o dono transferindo-lhe a propriedade de todo o lixo da sua Sapucaia moral e intelectual. Quando começou a haver uma quase certeza da minha eleição, os inimigos rancorosos, muitos dos quais só o são por coisas cuja paternidade me foi emprestada, redobraram de esforços demolidores.

Boêmio e desregrado...
Boêmio e desregrado porque, nos momentos decisivos, faz o que qualquer homem medianamente digno tem obrigação de fazer.
Boêmio e desregrado, que nunca foi visto em espeluncas.
Boêmio e desregrado que, com mais de trinta anos de residência no Rio, não sabe o que seja um desses celebrizados bailes carnavalescos onde o mulherio se excita de jogo e condimenta de álcool.
Boêmio e desregrado, por fazer sua hora à mesa de um café ou de uma confeitaria, trocando idéias, dizendo ou ouvindo versos e frases de espírito, como faziam e fazem ainda alguns dos que muito brilho emprestaram e emprestam às cadeiras que entre vós ocupam. Posso garantir-vos serem alegres confabulações literárias, apesar da dose de whisky ou da água de um coco ou de ambos juntos segundo a fórmula aceita e consagrada por eminente clínico baiano, muito mais inocentes, mais inofensivas, menos demolidoras que as reuniões de certas portas de livraria, onde uns gênios incipientes, à espera da primeira desova, enquanto não aparecem as obras nascituras, se vão contentando em demolir os que já se fizeram uma reputação. Aí os escritores de nome feito devem ir buscar os seus verdadeiros inimigos, que, além do mais, têm a cobardia de atirar para cima de outrem a responsabilidade do que fazem e dizem. Coitados! Querem, abrindo caminho na suntuosidade da floresta virgem, abater cedros e jacarandás com membros que foram feitos para o retouço nos revaldos.

A esses (a Academia me perdoará o emprego de um vocábulo que, além de mau inquilino da nossa língua, é de “gíria” e só agasalhado pelo noticiário policial), a esses “pivetes”, da literatura, junta-se infalível e diariamente, às mesmas longas horas e à mesma soleira, uma classe dez vezes mais venenosa, mil vezes mais perigosa. É a dos velhos inéditos à força de publicidade. É composta de uns venerandos senhores que já publicaram, por dezenas de anos, dezenas de livros, volumosos e ponderados, mas sem alguém que lhes repita o nome. Daí a intoxicação pelo ineditismo e o ódio à repercussão do nome alheio. Houve quem os comparasse a essas máquinas de costura, aperfeiçoadas, que cosem anos e anos consecutivos sem que se lhes ouça o ruído. A comparação seria melhor se mais completa o fosse, determinando a causa do silêncio.

O costureiro quase sempre é perito e a máquina perfeita. A culpa não é nem de um nem de outra. Não é da pena nem do cérebro. É da obra. Há obras, tanto em literatura como em costura, que são feitas para os recessos da intimidade. Compreende-se que um alfaiate granjeie fama pela correção e pelo gosto no acabamento de um par de calças. Por quê? Por ser coisa que aparece, é vista, foi feita para o trânsito das ruas e praças, para o passeio às praias e aos jardins, para o teatro e para os grandes bailes à ação da grande luz. O de todo impossível é adquirir renome fazendo trajes íntimos. Levam a vida esses senhores a perder saúde e alegria no trabalho árduo e obscuro de pespontar camisões para hospitais ou quartéis e depois se envenenam com a nomeada dos grandes alfaiates. Os “pivetes” urdidores do fio da intriga, unidos aos anciãos costureiros, fazem a greve (asilemos o termo) permanente contra o capital... depredando o nome. Sabem que este representa aquele. Os primeiros não me toleram como não toleram todos aqueles que já atingiram o cume da montanha, que tal é, para mim, o estar entre vós. Os segundos, os costureiros, me abominam por isso e mais talvez, pela injusta fama que adquiri de... cortador de casacas.

Cansei-vos, bem sei. Só me não cansei a mim, por já me ser impossível aumentar o cansaço que de longe trago.

* * *

Des que tão inconvenientemente vos falei de mim, vou dizer-vos quão difícil me é falar do meu antecessor, não por lhe não encontrar na vida e na obra assunto de monta e realce.
Antes da minha própria fraqueza que da sua força, me vem essa dificuldade. E tanto maior é a fraqueza quando se deriva de fontes fortes e diversas.

Em primeiro lugar já sentistes, pelo descosido do que acima disse, as incertezas e vacilações com que manejo a prosa, dela desabituado depois de deixar o jornalismo e mais assíduo me tornar no exercício do verso. A compreensão dessas incertezas e vacilações ter retardado a publicação de um ensaio de romance, já terminado, do qual busco expurgar, nas medidas do possível, as arestas ou impulsivas asperezas naturais, numa obra feita sob a influência de paixões que precisam ser abrandadas para não fugirem às raias da justeza e da verdade.

Em segundo lugar seria abalançar-me aos riscos de um estudo crítico para o que nunca tive a menor vocação, tendo menos, sobre esse gênero de literatura, uma opinião de certo modo desagradável aos que, exclusivamente, o cultivam. É, para mim, uma quase função da incompetência, pois denota, não raro, a incapacidade de produzir. É uma espécie de valesianismo mental, o contentar-se, na impossibilidade de fazer obra própria, em espinçar na alheia o fio precocemente encanecido, que porventura exista, na opulência de uma cabeleira negra ou loura.

Esses dois motivos se dilatam fundindo-se em que, encerrando-os, mais os avoluma, dando a cada um de per si proporções maiores e mais graves. E o ter de falar de uma personalidade com quem nunca mantive relações, apesar de amigo de Lúcio de Mendonça, e que, só me conhecendo através da opinião de mim formada por “pivetes” e costureiros, foi dos maiores repulsores do meu nome. Nessas condições, se por escassez da minha própria compreensão ou reparo e censura, seria forçado a calar, não só por motivos de pragmática, o que sempre repugnou ao meu temperamento, como para evitar a increpação de exercer vingança póstuma. Feliz seria ainda se os seus amigos, ao lado dos meus inimigos, me não atirassem a apóstrofe de Baudelaire a um critico testamenteiro literário de Edgar Poe, apóstrofe em que vai um grande espanto por não existir nos Estados Unidos uma lei proibindo a entrada dos cães no cemitério.

Não me deterei muito, por isso, ao atravessar a sua seara vasta e fecunda, é verdade, mas por muito plana pouco interessante. É uma dessas grandes planícies com os repetidos espetáculos diários de aurora e ocaso nos horizontes dilatados, mas sem os imprevistos nem as surpresas de perspectivas que são o melhor da arte. Em compensação, a sua vida política e jornalística, cheia de impetuosidades e desafogos, nem sempre adaptáveis ao justo e ao razoável, é cheia de acidentes verdadeiramente inesperáveis para quem, com minúcia, a investiga. Em muitos pontos as oscilações e esquivanças da sua orientação política se refletiram na vida diplomática, na qual muitas vezes, é certo, foi acusado injustamente, por força de despeitos, rivalidades e animosidades antigas. Nessas ocasiões o seu desforço era impetuosíssimo e poucas vezes se acomodava ao comedimento indispensável a um diplomata.

Há na vida de Salvador de Mendonça, de tão difícil apreensão, um traço de suave e melancólica poesia, que a perfuma e aformoseia toda.
É a revivescência do seu primeiro sonho de amor.

Velho, fez reflorir, na velhice, o melhor trecho da mocidade de um homem. Morreu entre as rosas que cultivava paternalmente. Dizia ele que a sua melhor página era o conto escrito no início da carreira literária, dedicado à mulher amada, à sua primeira noiva e intitulado “A tua roseira”. Filio a essa roseira todas as outras que ele, já velho, cultivou. Suave e melancólica poesia, disse eu. Quanta poesia e quanta melancolia! Cultivando as suas flores prediletas, por intermédio das filhas solícitas e santamente dedicadas, ele, cego, não lhes podia ver a forma e a cor. Era obrigado a senti-las tão-só pelo olfato e pelo tato e, desgraçadamente, nem todas as rosas têm perfume e quase todas têm espinhos. Como vos seria melhor se em vez de tanta palavra inútil e tanta coisa má, por comoção e orgulho de aqui estar, tivesse eu emudecido numa longa, numa interminável, numa dolorosa reticência...