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Discurso de posse

Ao longo do tempo, tentei escrever sobre várias coisas para começar esse meu discurso de posse. Mas, ocupando a gloriosa cadeira número 7 da egrégia Academia Brasileira de Letras, não consigo iniciá-lo sem lembrar o lugar comum da citação mais conhecida de nosso fundador, o grande Machado de Assis: “essa é a glória que fica, eleva, honra e consola”.

Confesso que meu desejo seria o de, depois da citação, me quedar chorando alto de felicidade, e assim encerrar a cerimônia. Mas não se preocupem, não tenho o direito de fazer isso, não vou estragar a festa. Devo, ao contrário, permanecer firme e tentar explicar, às senhoras e aos senhores, o que representa para mim chegar até aqui.

A cadeira 7, como qualquer outra da Academia, não é propriedade de nenhuma atividade. Não é porque foi ocupada por um dos maiores cineastas de nossa história, que ela passa a ser um privilégio do cinema brasileiro. Na Academia, com toda justiça e bom senso, poeta não precisa ser sucedido por poeta, romancista por romancista, nem cineasta por cineasta. As virtudes de uma candidatura devem ser outras, o que aliás reforça meu orgulho por estar aqui.

Desde meus primeiros curtas-metragens amadores, todo jornalista que se aproximava de mim fazia sempre uma primeira e pouco original pergunta: “quando e por que você se interessou por cinema?”. Nas primeiras entrevistas, me sentia desconfiado de que talvez não tivesse mesmo cara de cineasta. Uma atividade que eu não devia ter o direito de exercer, por falta de confiança da parte de quem provavelmente entendia do assunto - os jornalistas especializados.

Até que descobri que a pergunta era feita a todos aqueles que, como eu, haviam se encantado com o cinema. Ou já o praticavam há algum tempo, mesmo que pouco. Aquela pergunta, compreendi logo, estava sempre grávida de uma observação que, talvez por gentileza, não aparecia com clareza nas entrevistas: querer fazer cinema no Brasil era uma doidice que nunca poderia dar certo. Como aliás minha mãe também achava.

A pergunta dos jornalistas me obrigou a procurar, no fundo de minha memória, as experiências mais antigas que teriam feito nascer, em mim, esse amor pelo cinema. Um amor que, como todo amor, talvez fosse mesmo inexplicável. Vou repetir aqui o que de mais paleolítico me ocorreu. E que já contei, com mais detalhes, em um de meus livros.

Eu devia ter uns cinco anos de idade, quando fui pela primeira vez ao cinema, em Maceió, terra natal de minha família, tanto materna quanto paterna. Quem me levou foi uma tia, prima de meu pai que, sozinha no mundo, morava conosco.

O acesso à sala de exibição do cinema, na rua do Comércio, se dava por uma porta lateral, bem próxima à tela. De modo que, ao entrar, logo perdi o ar, fiquei sufocado diante da luminosidade intensa daquelas gigantescas imagens prateadas, fora de proporção em relação ao mundo real à minha volta.

No quadrilátero brilhante e sem cor, as pessoas se vestiam como no passado e praticavam lentos gestos elegantes, como se fosse uma coreografia anti-carnavalesca. Um pouco como em “Ivan o Terrível”, a obra prima de Sergei Eisenstein, que só vi muito tempo depois. Mas, por anacronismo, é impossível que se tratasse desse filme.

O fato é que, naquele dia, me dei conta de que o mundo antigamente deve ter sido preto e branco; e que se falava uma outra língua que não era a minha.

Diante daquela luz toda, devo ter ficado imóvel por um tempo excessivo. Porque minha tia me puxou com força pelo braço, na direção das poltronas, temendo que escapasse a seus cuidados. Para evitar qualquer travessura do sobrinho, ela apontou para a parede iluminada e me ameaçou: “Não bote a mão na tela, menino, que sua mão fica lá, presa pelo resto da vida”.

Como os repórteres ficavam em silêncio, depois de me ouvir contar essa história, eu tinha vergonha de destrinchá-la. Vergonha de usar o óbvio e paupérrimo lirismo de que minha mão havia, de fato, ficado presa na tela. Para sempre.

Bem mais tarde, acabei encontrando, num texto de Gilles Deleuze sobre Marcel Proust, escrito em 1964, o que eu pensava e queria dizer sobre aquele dia. A propósito de “Em busca do tempo perdido”, Deleuze afirmava que “o essencial não é lembrar-se, mas aprender”.

Aprendi tanto naquela primeira sessão alagoana de cinema, como voltei a aprender muito mais, uns dez anos depois, por volta dos quinze de idade. Foi quando me inscrevi na UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundários), para participar da campanha da entidade pela liberação de um filme nacional interditado pelo Chefe de Polícia da então capital do país, para onde minha família havia se mudado.

Entre outros delitos, a autoridade policial acusava o filme proibido de mentir, para prejudicar o prestígio turístico da cidade. Pois o calor, no Rio de Janeiro, nunca havia chegado a 40 graus, como dizia seu título. O filme se chamava justamente “Rio, 40 graus”. E seu diretor era Nelson Pereira dos Santos, jovem cineasta que se tornava um mito para todos nós, gente libertária e progressista de toda espécie.

Cerca de um ano depois, vi pela primeira vez “Rio, 40 graus”, na semana de seu lançamento para o público. O Chefe de Polícia o havia liberado com uma interdição até 18 anos, ninguém sabia dizer porque. Acho que nem ele. Tive portanto que praticar uma ilegalidade para ver o filme que ajudara a liberar e tornar visível. Comprei a boa-vontade de um bilheteiro boa praça, que já conhecia de outras operações, quando ia ver, no mesmo cinema, comédias italianas de belas estrelas e pouco pudor.

Toda boa arte fala sempre do estado do mundo, através de uma dramaturgia conveniente a seu tempo e lugar. Essa é a base fundadora de toda criação humana, desde que o homem inventou a civilização, enterrando seus mortos, orando a seus deuses, fabricando sua comida, bolando seu modo de amar.

Desde a infância do ser humano no planeta, a dramaturgia existe para atender à nossa necessidade de contar histórias e as ir aperfeiçoando. Existe para dizermos, uns aos outros, como vemos o que está diante de nós. E mesmo o que não está diante de nós, sendo o visível apenas a parte mais simples e provavelmente a menos interessante do real.

Os gregos foram os primeiros a dar um formato à dramaturgia que, ao longo da história, foi sendo adaptada às novas realidades, sofrendo mudanças radicais, das arenas de Atenas às carroças da Commedia dell’Arte, do palco italiano à tela de cinema, da televisão à internet.

“Rio, 40 graus” foi o nosso primeiro passo nessa direção, a revelação de tudo o que o cinema brasileiro podia ser e ainda não era. A emoção com que o vimos não se resumia a sentimentos nobres diante de histórias humanamente comoventes e socialmente revoltantes, entre personagens que conhecíamos bem e com os quais podíamos cruzar na rua, assim que saíssemos do cinema.

Aquela era a emoção de ver nascer uma arte revolucionária com a qual sonhávamos tanto, sem saber como seria. Não era mais suficiente amar o cinema. A partir de agora, tínhamos o dever de praticá-lo em busca da mesma energia, do mesmo humanismo, do mesmo original esplendor de “Rio, 40 graus”.

Não preciso explicar portanto o que significa, para mim, ocupar a cadeira que foi de Nelson Pereira dos Santos, nessa Academia. Às vezes, penso até que pode ter sido uma ousadia desavergonhada de minha parte, ter-me candidatado a ela. E peço licença para acrescentar que, mexe também com meu coração e minha excitação, pensar que era esse mesmo número 7 o que víamos às costas de um dos maiores gênios barrocos de nossa história, o incomensurável Garrincha.

A relevância da cadeira número 7 começa com seu patrono, o poeta Castro Alves, escolhido pelo seu fundador, o jornalista abolicionista e republicano Antonio Valentim da Costa Magalhães, autor do romance “Flor de Sangue”, destaque do romantismo nacional publicado em 1897, o ano de fundação da Academia. Segundo Euclides da Cunha, que o sucedeu, o polêmico, corajoso e perseguido Valentim Magalhães “foi a figura mais representativa de sua fecunda geração”.

De acordo com mestre Afrânio Peixoto, outro eminente ocupante da mesma cadeira, nosso patrono Antonio Frederico de Castro Alves foi “o maior poeta brasileiro de todos os gêneros”. Assim como Goffredo da Silva Telles Junior, professor na USP, ainda ia mais longe, em enquete de 2007, considerando Castro Alves “o maior brasileiro de todos os tempos”.

 

De toda maneira, de meninos na escola a adultos em batalhas públicas pela liberdade, nos habituamos à poesia exaltante do poeta baiano, recitando trechos de “O Navio Negreiro”, como os inesquecíveis versos que repito aqui.

 

Auriverde pendão de minha terra,

Que a brisa do Brasil beija e balança,

Estandarte que a luz do sol encerra,

E as promessas divinas da esperança...”

E, mais à frente, na mesma estrofe:

Antes te houvessem rôto na batalha,

Que servires a um povo de mortalha!”.

Castro Alves era também o poeta do amor, dos enamorados eufóricos e dos solitários abandonados. Ouçam esses versos do poema “Mocidade e Morte”, cuja epígrafe tomara de Dante Alighieri, um dos momentos mais pessimistas da poesia ocidental: “Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate”. Ou, em tradução livre: “Esquecei toda esperança, vós que entrais”.

Oh! Eu quero viver, beber perfumes

Na flor silvestre que embalsama os ares;

Ver minh’alma adejar pelo infinito,

Qual branca vela n’amplidão dos mares”.

Uma poesia em que a música das palavras de cada decassílabo é tão essencial, quanto o que cada verso quer nos dizer. Como em muito da moderna poesia imagética recente.

 

Em 1907, em conferência na Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco, Euclides da Cunha diria que foi Castro Alves quem nos ensinou a metáfora, o estiramento das hipérboles, o vulcanismo da imagem e todos os exageros da palavra a espelharem impulsividade e desencadeamento de paixões que são essencialmente nativos. Somos uma raça em ser, estamos ainda na instabilidade característica das combinações incompletas”. E mais adiante, na mesma conferência: “Penso que seremos em breve uma componente nova entre as forças cansadas da humanidade”.

A praça, a praça é do povo como o céu é do condor

Assim decretara, como sabe de cor todo brasileiro que se preza, o poeta dos escravos, o intelectual romântico que militava a favor dos necessitados e dos desprotegidos. Castro Alves era “o modelo a ser seguido”, como haveria de declarar Nelson Pereira dos Santos, explicando sua geração engajada.

Glauber Rocha, outro que nos faz tanta falta, realizador de “Deus e o diabo na terra do sol” e “Terra em transe”, costumava se identificar com Castro Alves, pelo rumo de sua vida, em consonância com sua obra. Igualmente nascido num dia 14 de março, na mesma Bahia do poeta, Glauber nos anunciava desde cedo que, como ele, morreria aos 24 anos de idade.

No meio do fuzuê de um Festival de Cannes, o primeiro de que ambos participávamos, lembrei-lhe de brincadeira que ele já havia feito 24 anos e seguia saudável, firme e forte, tornando-se até, com toda justiça, um dos mais cultuados jovens cineastas de todo o mundo.

Glauber me pareceu que já tinha se dado conta disso e respondeu sereno que havia se equivocado em seus cálculos. Ele agora garantia que, de fato, iria morrer aos 42 anos, os dígitos invertidos da idade com que Castro Alves havia morrido. Vítima de uma septicemia oportunista, o cineasta viria a falecer em agosto de 1981, apenas um mês depois da celebração dos 110 anos da morte do poeta. Glauber tinha 42 anos de idade.

Titulares da cadeira 7 foram também dois formidáveis juristas. Em “Memórias do Cárcere”, como lembrou Nelson que havia adaptado aquele livro para o cinema, Graciliano Ramos se refere a um deles, Hermes Lima, como “a pessoa mais civilizada que já havia conhecido”. E do outro, Pontes de Miranda, alagoano como eu, Dinah Silveira de Queiróz descreve uma biblioteca pessoal de 70 mil volumes, que iam do direito em todo o mundo às ciências mais variadas.

Ocuparam-na ainda o ensaísta e político mineiro Afonso Pena Júnior e a citada romancista Dinah Silveira de Queiróz, autora de “Floradas na Serra”, romance de 1939, tornado filme em 1954, sob a direção do italiano Luciano Salce, única aparição no cinema de nossa mitológica atriz Cacilda Becker.

Em 2006, Nelson Pereira dos Santos sucederia a Sergio Correa da Costa, diplomata e historiador, falecido no ano anterior. Nelson nos citava sempre um pensamento virtuoso do embaixador: “Não se pode brincar com a democracia, nela se encontra a vocação legítima do Brasil”

A democracia, com a qual não se podia brincar, era e é aquela em que temos todos as mesmas oportunidades, para que os mais aptos mereçam seus justos sucessos, sem que os outros sofram de fome, frio ou solidão, pois devem ser atendidos no que lhes for indispensável. A democracia em que a maioria governa e as minorias, sem precisar mudar de ideia, reconhecem o direito de quem foi eleito com correção. A democracia em que só se discrimina aquilo que faz mal ao outro.

Entre os ocupantes da cadeira 7, é impossível não destacar Euclides da Cunha, o autor de “Os sertões”, relato da campanha militar contra Antonio Conselheiro e seus seguidores, em Canudos, no sertão da Bahia.

“Os sertões” inaugurou uma narrativa nova sobre o povo brasileiro, seus costumes, virtudes, fraquezas, vitórias e fracassos, além de particular humanidade, numa premonição, em 1902, do que seria o nosso futuro modernismo. Era a fundação de uma certa antropologia em progresso que repercutiria, mais tarde, em obras de Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Hollanda, Paulo Prado, Darcy Ribeiro e outros mestres do que somos.

Das abandonadas ou destruídas moradias dos sertanejos em guerra, Euclides recolhia pedaços de poemas populares anônimos; assim como reproduzia versos escritos a carvão num muro branco, que, segundo Cássio Schubsky, eram verdadeiros “haikais cheios de dor e sofrimento”. Vestígios vigorosos de uma cultura que se sabia sem alternativa.

“Os sertões” obrigava o leitor a olhar o Brasil de um modo menos submisso aos consagrados critérios europeus de observação da realidade, influenciando nossa maneira de fazer ficção literária e mesmo, mais tarde, de fazer cinema.

Gilberto Freyre afirmava, sobre a prosa de Euclides da Cunha, que o escritor era um “poeta dramático, às vezes trágico, raramente lírico”. E, em carta a seu amigo argentino Mariano de Védia, o próprio Euclides confirmava essa observação, chamando seu livro de “monstruoso poema de brutalidade e de força”.

Glauber Rocha, mais uma vez, foi certamente o nosso cineasta mais tocado pela influência de “Os sertões”. Não só pela clássica visão da força do sertanejo, em contraposição aos “mestiços neurastênicos do litoral”, mas sobretudo pelo messianismo romântico do autor.

Quem melhor escreveu sobre isso foi a pesquisadora Ivana Bentes, professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Ela diz que “Glauber parte de todo o imaginário euclidiano de ‘Os sertões’, no qual a violência, a ferocidade, a fome e a revolta são atributos ou condições do homem e da Terra, mas vai às últimas consequências e faz da violência uma política e uma estética”.

Embora “Rio, 40 graus”, de 1955, e “Rio, Zona Norte”, de 1957, seus filmes inaugurais, tão cariocas, não sejam tributários da epicidade sertaneja, Nelson Pereira dos Santos se aproxima de Euclides como referência indispensável para pensar, entender e registrar o Brasil. Ainda que “Mandacaru Vermelho”, de 1961, e “Vidas Secas”, de 1963, os primeiros filmes nordestinos de Nelson, não sofram influência estrutural do escritor, Euclides da Cunha paira sobre a construção dos personagens e seus confrontos com a vida no sertão, na seca e na desigualdade.

O certo é que, parodiando diálogo a propósito do cineasta Roberto Rossellini, num filme de Bernardo Bertolucci, “não se pode viver sem Euclides da Cunha”.

Os filmes de Nelson, em geral baseados em histórias e roteiros escritos por ele mesmo, falam sempre de um homem brasileiro especial. No desenho desse protagonista, estão presentes escritores modernos, como Jorge Amado, Graciliano Ramos ou Guimarães Rosa; mas é impossível não pensar também em Euclides da Cunha. Mesmo que numa comédia errática, como “Fome de Amor”, de 1968, ou numa surpreendente fantasia futurista, como “Quem é Beta?”, de 1972.

A cada obra sua, Nelson revisita uma ideia obsessiva que pode ser ilustrada pela abertura do livro “Retrato do Brasil”, de Paulo Prado. Ali, onde o autor diz, na primeira oração do primeiro capítulo, que “numa terra radiosa vive um povo triste”. Essa era também uma ideia matriz do movimento modernista, que mudou nosso modo de pensar sobre nós mesmos.

Hoje, estou convencido de que o Cinema Novo brasileiro, o movimento que Nelson ajudou a criar e liderou durante toda a sua formação, não foi senão a chegada tardia do modernismo ao nosso cinema. Não se tratava mais de procurar, entre nós, as melhores pistas de valores consagrados “lá fora”. Mas de criar nossos próprios valores, necessariamente distintos daqueles.

O próprio Nelson confessa a origem literária de sua estreia cinematográfica. Diz ele: "’Rio, 40 graus’" é um caso de adaptação de obra literária não declarada”. Todo o texto do filme é de integral autoria do diretor; mas é transparente a influência de Jorge Amado nos principais personagens, os meninos que conduzem as tramas do roteiro. Bem como em seu olhar sobre a cidade dividida entre ricos cínicos e pobres honestos, “sobre a qual paira a nuvem vermelha da Revolução”.

No Brasil, essa interação entre literatura e cinema só nasceu depois do modernismo, graças à atração que as ideias desse movimento provocaram nos cineastas.

Era preciso produzir um cinema para a nação, mas também inventar uma nação no cinema. Uma nação cujos costumes originais, revelados em linguagens inéditas, nem sempre percebíamos existir; uma nação de paisagens das quais mal nos orgulhávamos e muito menos nos víamos ali projetados; uma nação de personagens e situações dos quais, embora mal os compreendêssemos, éramos os únicos a tomar conhecimento. Ainda não sabíamos que só nós podíamos tornar tudo isso uma narrativa cinematográfica.

Nossas melhores cabeças do século XX, como Nelson, sonharam com esse projeto de Brasil. Um projeto que está no mito de nossa formação racial, a única indígena-luso-africana em todo o planeta. No mito do país imenso e dos milagres históricos que o fizeram ser um só, desse tamanhão todo, com uma só língua e costumes semelhantes. No da cordialidade, que cultivamos com certo cinismo, e com o qual acostumamos nossa vaidade. Sobretudo um projeto que está no mito do humanismo popular de nossa melhor produção cultural, que alimentou em nós a permanente esperança de sermos o futuro.

O que me remete ao alegre trovador catalão que ouvi um dia, em Barcelona, a cantar que “o puro não tem futuro”.

Apesar da importância de seus filmes anteriores, “Vidas Secas”, de 1963, inspirado na obra prima de Graciliano Ramos, com inédita luz sertanejo-expressionista de Luis Carlos Barreto, seria o apogeu de tudo aquilo que Nelson nos havia ensinado.

A consagração do filme, no mundo inteiro, pode ser medida pelo texto de François Truffaut, ainda crítico e já realizador. Depois de vê-lo no Festival de Cannes de 1964, Truffaut escreveria que “Vidas Secas” “é um filme que justifica a existência do cinema”.

É tão profunda a importância fundadora de Nelson, que mesmo o jovem cineasta brasileiro que nunca tenha visto um filme seu, é necessariamente tributário do que ele fez e criou. Em cada fotograma de cada filme realizado por brasileiros de qualquer idade, estará sempre a herança de Nelson Pereira dos Santos, um marco eterno no cinema e na cultura do Brasil. Uma luz que não se apaga.

O cinema brasileiro de minha geração sempre andou de mãos dadas com a literatura. Eu mesmo, antes do cinema se instalar como ofício em minha vida, escrevia poemas sob a batuta de Mário Faustino, poeta, crítico e ensaísta único, que mantinha, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB), uma página de poesia. Eu era dez anos mais moço e alguns séculos mais ignorante do que ele, extraordinário artista e pensador. A “glória” me chegaria aos 18 anos quando, em julho de 1958, Mário publicava, em sua página, doze de meus poemas, introduzidos por uma pequena crítica consagradora.

O poema Onze, o que eu mais curtia, começava com o verso: “Na viagem ao sol o mar foi tarde”. Um decassílabo imperfeito que devo à leitura obcecada de Jorge de Lima, meu poeta preferido, desde sempre, em todas as linguas. Meus amigos mais próximos, por amor ou gozação, passaram a me tratar pelo apelido de “o-mar-foi-tarde”. Sobretudo quando íamos à praia no fim de semana.

Participando do movimento universitário, acabei me tornando, simultaneamente ao cultivo da poesia, redator-chefe e depois diretor de O Metropolitano, órgão oficial da União Metropolitana dos Estudantes (UME), que circulava aos domingos, encartado no jornal Diário de Notícias.

Fui levado ao Metropolitano por um ídolo de minha juventude, Paulo Alberto Monteiro de Barros, com quem aprendi, desde o papel ético do jornalismo, até o que podíamos fazer para mudar o mundo. Foi com ele que aprendi também a como me comportar com personalidade, diante de homens poderosos e míticos que entrevistávamos, como Oswaldo Aranha, Carlos Lacerda, Fidel Castro e outros do mesmo nível.

Uns anos depois, voltando do exílio no Chile, Paulo Alberto se tornaria um cronista popular, em grandes jornais do Rio e de São Paulo. Além de um líder político de sucesso na redemocratização, sob o pseudônimo de Arthur da Távola.

No Metropolitano, além da indispensável agitação estudantil, cobríamos artistas e movimentos culturais que surgiam, naquele tempo animado de sonhos e utopias. Inauguramos, inclusive, regular debate, quase semanal, sobre o Cinema Novo, que já vivia de auto-referência, teorias e manifestos, anos antes de os filmes serem feitos.

Meus “dotes literários”, eu já os havia estreado há mais de três anos. Nas vésperas do Natal de 1955, o Jornal de Alagoas publicava um conto meu, “O moleque Joaquim”, ficção de protesto social, inspirada nos meninos da favela Dona Marta, comunidade instalada numa ponta da rua da Matriz, em Botafogo, onde então morávamos. A mesma Dona Marta onde hoje se trocam tiros o dia inteiro.

Só com a febril atividade cineclubista, no finalzinho dos anos 1950, encontrei gente da minha idade que tinha, a propósito de cinema, o mesmo sonho que eu. E o encontro com gente que sonha com o que sonhamos, sempre nos fortalece. Foi dessa descoberta, somada à de “Rio, 40 graus”, que nasceu em mim a esperança de um dia ser um cineasta brasileiro. Essa foi, para nós todos, a lenha que alimentou o fogo do surgimento do Cinema Novo.

Além de buscar o sucesso do que eventualmente produz, todo artista deseja realizar o conjunto completo da obra com que sonhou. No cinema brasileiro, a melhor resposta a essa angústia nos foi dada, com simplicidade e sabedoria, pelo principal produtor de Nelson Pereira dos Santos.

Também mentor do Cinema Novo, na prática da produção, Luis Carlos Barreto começou na atividade como roteirista e depois fotógrafo, trabalhando com grandes cineastas como Roberto Farias e o próprio Nelson. Logo se tornou nosso mais importante produtor, ao lado de sua esposa e parceira, Lucy Barreto. Foi dele que, há muitos anos, ouvi a frase seminal: “O bom filme é aquele possível de ser feito”. Sem Barreto, o cinema brasileiro estaria certamente menos vivo.

Agora os tempos são outros. Temos sofrido um vendaval de paixões polarizadas e histéricas. Há um desejo latente, já adotado por parte da população, de valorizar a vulgaridade e o homem dito “normal”, aquele que só reproduz os piores valores de nossa ignorância, sem sonhos nem fantasias, num horizonte sombrio e sem surpresas. Em nosso país, a criação hoje corre o risco de se tornar prisioneira dessa consagração da platitude, onde o único valor reconhecido e respeitado é o da morte elevada a uma desimportância consagradora. Nem o puro, nem o impuro, têm futuro. Porque não há futuro.

Só estaremos à altura de nossa missão artística e intelectual, de nosso papel na dinâmica entre pensamento e realidade, se entendermos o que dizia dom Miguel de Unamuno, o mestre de Salamanca: “Somos mais pais de nosso futuro, do que filhos de nosso passado”. Falo de um futuro sem queixas que nos imobilizem e com projetos pelos quais lutar, construindo o país e a cultura que ele merece.

Vejo, nesta sala, alguns amigos queridos, além das companheiras e dos companheiros da Academia.

Vejo Maria Geyer, afetuosa amiga minha e de minha mulher, que me ofereceu o fardão que uso hoje, me poupando da visita a ministros, governadores e políticos em geral, corruptos ou não, aos quais costumamos recorrer afim de nos vestirmos para essa cerimônia. Muito obrigado, Maria, de todo coração. E com todo o meu alívio também.

Fui criado por uma mãe ingênua e rigorosa, que sabia muito bem onde estava o que era justo, mesmo que não tenha sido mais do que uma dona de casa. E um pai que cultivava o conhecimento, me incentivando a fazer o mesmo, sem muitas imposições. Eu sei pouco. Mas cada vez que penso no pouco que sei, não posso deixar de agradecer ao doutor Manoel Diégues Júnior e a seu jeito habilidoso de me fazer aprender.

Devo muito do que sou ao exemplo de meus irmãos Madalena e Claudio. Como devo tanto e tenho muitas saudades de Fernando, o irmão mais velho que já não está entre nós, mas que nos deixou Edy, uma outra irmã.

Devo igualmente a meus quatro filhos, mesmo que eles não desconfiem disso. Três são moças lindas e sábias. Isabel, a mais velha, inteligente e culta, original editora de livros originais, exemplo de dedicação, conhecimento, instinto, seriedade e solidariedade, além de muito trabalho. Julia, executiva competente e advogada de caráter, comprometida com a verdade e a ética no nosso mundo, sempre em defesa do que julga justo. E Flora, a caçula talentosa que escolheu a atividade audiovisual, realizadora de imaginação, roteirista de ótimas ideias e uma excelente atriz, das melhores de sua geração, na televisão e no cinema. O quarto rebento, Francisco, o único homem, não quis saber de nada disso e nos deixou para ser mais feliz longe do Brasil, com sua mulher e seus filhos.

E devo ainda aos netos que meus filhos me deram, os hoje adolescentes José Pedro, que pode acabar se tornando cineasta, Monah e Mateo, alegrias de minha existência. E o mais recente, Raphael que, com dois meses de vida, já está aqui, nesta sala, para me encher de orgulho e vaidade.

Disputo o tempo de meus netos com as redes sociais, os games, as séries e os mais fascinantes e imaginosos youtubers. E tenho que reconhecer que, muitas vezes, eles têm razão em preferi-los. Esses novos ídolos, que nem sempre compreendo, são de uma fascinante habilidade em conquistá-los. A internet e o mundo digital estão construindo uma cultura emergente, com a qual precisamos aprender a viver e estabelecer uma nova ética, baseada no respeito e no afeto pelo outro.

Acima de tudo, agradeço esse dia tão feliz à Academia Brasileira de Letras e a seus ilustres membros que, sem exceção, admiro e respeito tanto. Farei o que puder para estar à altura da escolha que as senhoras e os senhores fizeram, ao me conceder essa muito subida honra. A Academia é, e precisa ser cada vez mais, não só a guardiã da memória mais completa da cultura desse país, como também um instrumento de sua criação e divulgação. É daqui que devemos lutar pelo progresso de uma sugestão brasileira de civilização. É a isso que pretendo me dedicar, com a energia e a fúria de um guerreiro.

No início dos anos 1970, auto-exilado por motivos políticos e de segurança, vi, num cineminha de Paris, o filme “Make a way for tomorrow” que, no Brasil, lançado em 1937 sem muita repercussão, chamava-se “A cruz dos anos”. Como escreveu o crítico Roger Ebert, um filme que, muito injustamente, está quase caindo no esquecimento. Seu diretor, Leo McCarey, baseara esse melodrama familiar num romance sobre os anos difíceis, posteriores a 1929, nos Estados Unidos.

 

No filme, um casal de idosos, Mrs. e Mr. Cooper, casados há 50 anos, perde a casa onde morava para o banco ao qual devia, como resultado da crise recessiva no país. Eles são então obrigados a se separar, em busca da proteção que lhes foi negada pelos quatro filhos. E têm agora que partir, cada um para um asilo diferente, situados em cidades distantes uma da outra.

 

Depois de uma noite comovente de adeuses, o casal chega à estação de trens, a reclamar um do outro de tudo o que lhes acontecera, desde que haviam ficado sem emprego e sem recursos. Cada um deve tomar seu trem; e a mulher sobe ao seu, o primeiro a partir.

 

Subitamente, o marido se lembra de alguma coisa e corre a chamá-la. Com o trem em movimento ainda lento, ela se põe à janela da cabine para ouvi-lo. A correr na plataforma da estação, paralelo ao trem que parte, já quase sem ar, ele grita para a mulher: “Eu queria lhe dizer, Mrs. Cooper, que os últimos 50 anos foram os mais felizes de minha vida!”

 

Depois de 38 anos juntos, só penso em dizer a mesma coisa a Renata, em nossos recomeços cotidianos. Desde agosto de 1981, quando nos conhecemos e nos casamos, minha vida se tornou mais completa e mais valiosa, mesmo quando a realidade concreta batia à nossa porta com más notícias. O que, na vida de um cineasta brasileiro, sabemos que não é nada raro. Ela sempre esteve presente em tudo que fiz, em cada filme, cada texto, cada ideia que me tenha ocorrido, em todos os gestos e atos de criação.

De tal modo que não posso deixar de aproveitar a oportunidade para, hoje, dizer a Renata, como aquele senhor do filme na plataforma do trem, que esses foram os 38 anos mais felizes de minha vida.

Nosso inigualável e eterno Machado de Assis que me perdoe, mas essa é também uma “glória que fica, eleva, honra e consola”.

 

Muito obrigado às senhoras e aos senhores.