Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Austregésilo de Athayde > Austregésilo de Athayde

Discurso de posse

Veio-me à idéia, ao começar a escrever este discurso, que nesta noite não estivéssemos aqui somente os vivos, os membros desta Academia, os representantes dos poderes do Estado, os diplomatas, as personalidades das Ciências, das Artes, da Literatura, do Jornalismo, as formosas senhoras que dão beleza e graça a este quadro inesquecível. Pensei que o panorama de tantas presenças tangíveis poderia ampliar-se no conspecto ideal do corpo triunfante daqueles que verdadeiramente chegaram Ad Immortalitatem e são hoje objeto do vosso culto, honra da nossa existência, guarda e proteção dos vossos ideais.

Imaginei que viessem aqui todos, nesta solene ocasião, para testemunhar, na continuidade vitoriosa, o esplendor da sua obra. Primeiro, aquele sob cuja invocação esta Casa se consagra à estima da posteridade. O seu espírito não nos abandonou nunca, nem esta Academia cessou jamais de viver sob o seu augusto patrocínio.

O “mestre e companheiro” do famoso discurso fúnebre será sempre a pedra na qual assenta este edifício de cultura e à maneira que a nossa Pátria cresça e se imponha, dentro dela sereis maiores e mais vos imporeis, na justa medida em que souberdes manter fidelidade à sua palavra genuinamente inspiradora.

Em tudo serve como padrão inexcedível: nas virtudes do escritor, no devotamento ao chamado da Arte, na dedicação ao trabalho literário, no amor à terra e ao povo, que o temperamento discreto tanto procurava disfarçar, e na crença no futuro de que esta Academia é a prova transcendente. Aqui estais, segundo o seu mandamento, para “conservar, no meio da federação política, a unidade literária”.

Vindos do sistema monárquico centralizado, tão próximos ainda dele, os fundadores temiam a dispersão da forma federal de governo, elegendo entre os objetivos do Sodalício, como primeiro de todos, sustentar a unidade do Espírito, sem a qual as demais periclitam e tendem necessariamente a desaparecer. Deveria constar do ritual da investidura acadêmica, à moda de promessa de bem servir, a afirmação de aceitar e transmitir “o pensamento e a vontade iniciais” de que deflui a vossa vida orgânica. Pensamento e vontade ligados à perpétua união do território e do povo e de que sois fiadores, na indissolúvel comunidade das aspirações artísticas no culto da língua, na estimação dos valores que caracterizam e engrandecem a alma das nações.

Ao lado do herói máximo, sopesando os alicerces desta Academia, estão dois outros da sua estirpe, da mesma imponência e de igual altura. Nabuco e Rui formam na linha hierárquica de Machado de Assis. Os três vêm à frente no desfile das unidades desta casa. Não porque outros o desmereçam e sim por serem maiores as suas responsabilidades. O primeiro nas letras de ficção e dois na vida política, no jornalismo e na oratória, consagraram-se no primado indisputável como soberanos da inteligência e oráculos do nosso destino.

Não é, porém, em desfile que os vejo aqui e sim assentados na aula magna, cada qual ocupando o posto conquistado no trabalho e cooperando com igual esforço para a grandeza da Academia.

Em Nabuco e Rui sobressai, no entanto, o terem sido artífices na formação liberal de que me orgulho; o haverem ensinado que nenhum bem supera a liberdade, nenhum sentimento é mais nobre que a Justiça, nenhuma aspiração mais digna do que servir à Pátria, dilatando os seus horizontes espirituais.

Nabuco salientava na sessão inaugural da Academia que, entre os primeiros quarenta, figuravam moços e velhos, para significar que o crivo da escolha não obedecera a razões discriminatórias contra escolas, tendências ou gêneros e fora o mais amplo no sentido de abrigar uma representação consciente e vária da cultura do País. Havia entre eles republicanos e monarquistas, católicos, agnósticos e ateus, não devendo prevalecer, contra o ingresso entre os eleitos desta imortalidade simbólica, crenças e convicções de natureza política, religiosa ou filosófica, ou quaisquer outros preconceitos que aqui nunca se cultivaram e não podem medrar, pois seriam sempre contra a índole liberal da Institiuição.

Nabuco proclamou que a fundação desta Academia há mais de meio século era um milagre e, ao dizê-lo, pensava sem dúvida na falta de espírito associativo dos homens, na indiferença da maioria, na pouca esperança de que a iniciativa durasse e, até, no receio de que os tomassem por presunçosos e ridículos, ao se outorgarem o título de imortais e adotarem o dourado fardão que é, tão-somente, o paramento de cerimônia nas solenes celebrações do culto externo.

Creio também que houve milagre, mas de outra espécie: o daquela geração do último decênio do século, tão rica em valores espirituais, da qual puderam sair quarenta homens insignes nas Letras e cujos nomes a posteridade venera pelo que exprimiram no Jornalismo, no Romance, na Poesia, na crítica, na oratória, nas Ciências jurídicas, no amor desinteressado da beleza, e que foram a base da construção que hoje se levanta tão sólida sob o nosso olhar vigilante.

Certo publicista americano explicou o portento da Contituição de Filadélfia, dizendo que o assombroso não fora aparecer a obra e sim que pudessem se ter reunido para realizá-la tantos homens de gênio, inspirados no mesmo ideal.

A maravilha fora que Washington, Franklin, Madison, Alexander Hamilton, Jefferson, os Adams e tantos outros de nível semelhante, tivessem existido na mesma época e juntos colaborassem para a organização política do seu País.

Ao encerrar-se o ciclo histórico do Império, a cultura que se desenvolvera nos sessenta anos de paz que nos proporcionara, apurada nos grandes centros de estudo do Recife e de São Paulo, cultura que nos vinha do latim e do português dos padres-mestres e da severidade dos grandes educadores leigos da classe de Macaúbas, profundos no saber e rijos de têmpera, produzira um esplêndido escol.

No fim do regime monárquico, a que devemos tantas diversidades felizes no tecido pan-americano, sazonavam os frutos dessa cultura, cujos melhores exemplares luziam então, ainda na pujança da mocidade criadora. Ao ver tal coincidência, como a que reuniu no ocaso da República Romana os homens que consagraram nas Letras a era de Augusto, ou a da extraordinária sementeira de filósofos do século XIII ou, mais tarde, fez aparecerem em Florença os gênios do Renascimento e, nas últimas décadas do século XVIII, os filósofos e os heróis da Enciclopédia e da Revolução, é-se tentado a acreditar nos bons fundamentos da teoria de Spengler e Frobennius de que a História é uma entidade independente, que se completa por força de um dinamismo interior e sob rígidas leis, alheia à influência da vontade humana.

A verdade é que se surpreende, aqui e ali, no espaço e no tempo, admirável conjunção de valores a somar os seus esforços para o conseguimento de determinados fins, numa cooperação espontânea, fora dos cálculos e propósitos dos seus melhores obreiros.

Veja-se, por exemplo, o que sucedeu em Vila-Rica, tão remota dos centros em que se operava a transferência dos tempos, porém no mesmo ano em que se desencadeou a tormenta renovadora dos ideais políticos do mundo.

A Arcádia Mineira reunia alguns poetas, homens de gosto, voltados para as preocupações do espírito, que praticavam as Artes sob a invocação dos deuses mitológicos, com a nostalgia das branduras do clima mediterrâneo entre as montanhas de Minas. Sonhavam.

Vistos hoje, ao sabor da Poesia das novas escolas oitocentistas e do Modernismo, parecem falsos e pesados, pois tudo contemplavam fora das cores naturais e com o mínimo possível de inspiração local. Cláudio Manuel da Costa, o patrono desta Cadeira, a que me dirigiu a vossa complacência e pelo que tantas graças vos dou, senhores acadêmicos, era o primeiro dos árcades, com maior prestígio no Cenáculo e nele os demais confiavam como orientador literário e, posteriormente, apóstolo da Revolução emancipadora.

Ele e Tomás Antônio Gonzaga eram, ao mesmo tempo, homens de lei e poetas, juntavam o conhecimento e prática do Direito ao convívio das musas. Um como advogado e o outro juiz estavam em contato com as necessidades diárias, os sofrimentos e os anseios do povo. Lidavam por ofício com os problemas da justiça, consideravam a opressão econômica da comunidade e, findo o labor quotidiano, voavam a outras paragens, mergulhavam na leitura dos clássicos gregos e latinos, embebiam-se nos cânticos de Dante, Metastásio e Petrarca e, mais perigosamente freqüentavam os Enciclopedistas, Voltaire e Rousseau sobretudo, nos quais hauriam as justificações filosóficas da Revolta.

As inocentes paisagens bucólicas em que pastores imaginários vestidos de pele tangiam rebanhos ao som da rude frauta, as florestas povoadas de semideuses homéricos, as sutis aparições dos habitantes das árvores, dos ares e das águas, todo o mundo que sucumbira com a morte do Grande Pan revivia nas montanhas mineiras. Vinham de tão longe, do fundo dos milênios, no ritmo dos alexandrinos de Glauceste Satúrnio e do amorável Dirceu.

Cláudio era um artista. Não apenas pelo conhecimento que possuía das regras da Arte poética, como também porque tornava sensível aos outros o seu lirismo cheio de ternuras e desencantos. Chamaram-lhe “um descendente de Ronsard que leu Boileau e Voltaire”. Leu principalmente os mestres italianos. Sabia sobretudo o seu Camões, os sonetos de amor, aprendidos nas tertúlias de Coimbra, quando ali estudava cânones.

Alguns compôs também de igual pureza e alta harmonia de pensamento e forma, ainda hoje dignos de leitura e capazes de comover.

No solar de Vila-Rica reuniam-se os letrados da comarca para ouvir Cláudio e Gonzaga falarem dos autores italianos, dos mestres florentinos, contando-lhes episódios de A Divina Comédia, mormente aquele inesquecível de Francesca da Rimini. Depois vinham os trágicos franceses e os filósofos semeadores da idéia nova.

Cláudio acompanhara a revolução americana, sabia que ao norte do continente um grande povo proclamara a independência, libertando-se da opressão da corte européia. Washington era citado como um semideus. Perpassava, nessas conversas, a princípio, a tímida aragem da doutrina em forma de longínqua esperança. Pelo dia, o advogado e o juiz, cumprindo os deveres dos seus encargos, ponderavam o sofrimento do povo, as enormidades do fisco, o abandono e pobreza em que vivia, as ameaças da derrama anunciada, enquanto partiam as tropas copiosas, conduzindo para o litoral, na lombada dos burros, o ouro roubado à terra. E tinham que pleitear a causa dos humildes e julgá-la segundo os rigores das ordenações, no serviço leal de Sua majestade.

E os casos e abusos praticados pelos exatores eram repetidos à tardinha, quando o assunto mudava da poesia para a contemplação desalentadora das condições da Colônia, pois era a mesma coisa em toda a parte, segundo notícias do Norte, de São Paulo e dos lugares mais remotos, na região de Cuiabá.

Insuflava-se por vezes o coração dos poetas, entre os quais o Coronel Inácio de Alvarenga Peixoto, que se repartia entre as musas e as armas, no comando de um regimento. E seu colega Francisco de Paula Freire de Andrade e Domingos de Abreu Vieira, destemidos soldados, em cuja espada repousavam as expectativas da revolução. E os padres Carlos de Toledo e Oliveira Rolim, como o Dr. João Álvares Maciel e o Alferes da Mílícia paga Joaquim José da Silva Xavier, alcunhado o Tiradentes, todos assíduos e sôfregos na arquitetação dos planos da guerra.

Tiradentes ouvira a notícia alvoroçadora de que o estudante brasileiro José Joaquim da Maia conversara em Paris com Thomas Jefferson, então embaixador da América na corte de Luís XVI e dele soubera que os Estados Unidos poderiam ajudar o Brasil, caso houvesse uma revolução da independência. Advogados, juízes, padres e soldados foram aos poucos deslizando dos meros entretendimentos literários para a conspiração inflamada. Uns traçavam as linhas da estrutura política da nova República, os outros arrolavam os meios materiais de que dispunham para realizar um levante geral contra a Metrópole. Cláudio, o cantor de Vila-Rica, era a grande palavra incentivadora.

As reuniões iam-se tornando mais freqüentes; a audácia crescia. Estabeleceu-se entre todos a confiança que deveria perdê-los. Já se escolhera o pavilhão com o seu dístico virgiliano: Libertas quae sera tamen. Não, a liberdade não chega nunca tarde demais. Chega sempre com a força de renovação da aurora.

Alastra-se a conjura pelas montanhas de Minas e o triunfo parecia à vista e fácil. Até que a traição, inspirada na cobiça, esmaga o sonho com a triste realidade do degredo e do patíbulo.

Tiradentes ascende no Largo da Lampadosa como um símbolo imorredouro. Os demais, postos a ferro, são mandados para a África e ali acabam. Cláudio foi o primeiro a morrer. Talvez tenha querido libertar-se pelas próprias mãos, tirando ao carrasco de Sua Majestade a ocasião da vingança.

Talvez o tenham matado no cárcere para que não dissesse no processo tudo quanto sabia.

Foi, pelos grandes títulos da sua cultura, o prócer magno da Independência. Ao ser escolhido orago da Cadeira 8 desta Academia, tiveram em mente os fundadores não apenas consagrar o poeta, o jurista, o homem culto, primeiro do seu tempo nas terras de Minas, mas também o patriota, o mártir do ideal da Independência e da República, aquele que, tendo sido o primeiro a morrer, também o primeiro a alcançar a imortalidade.

Os seus sonetos camonianos, embora algumas vezes lembrem demasiado o molde, possuem sobriedade e elegância, repassam-se no desencantado ceticismo dos mestres de Assis e de Florença. O poema “Vila-Rica” lê-se ainda com agrado. É um tributo à terra mineira, no qual o poeta abandona os temas melancólicos dos sonetos, as suas desditas amorosas, para celebrar a conquista bandeirante. Sílvio Romero fulminou-o, ao jeito peremptório e áspero usual na sua crítica, dizendo: “O seu poema épico é chato, duro e inútil.” Juízo excessivo, pois se faltam a “Vila-Rica” as qualidades do lirismo de Glauceste, não deixa de ser um testemunho do nacionalismo nascente da Colônia, prova de que o poeta procurara desfazer-se das influências estrangeiras, pelo menos no assunto, e abrir os olhos para as arrancadas heróicas dos paulistas de que descendia, reservando aos conquistadores da terra, no seu estro, um lugar de honra e glória. O seu patrocínio dá a esta Poltrona dobrado sentido na Poesia e no civismo. Nela assentou-se como fundador Alberto de Oliveira, herdeiro de Bilac no principado da Poesia, e depois o sociólogo Francisco José de Oliveira Viana, em cuja obra monumental a Cívitas foi a preocupação exclusiva.

Ambos são filhos da terra fluminense, essa cujos títulos e méritos se resumem quando lhe chamamos a “velha província”, abençoada como a Virgínia na fertilidade de estadistas e alfobre das grandezas que fazem o lustre da vida brasileira e o orgulho da sua história imperial. Os dois nasceram no encantado município de Saquarema, em casas solarengas, o primeiro ainda no esplendor das riquezas do café, quando o verde e o vermelho das suas folhas e frutos davam a sombra e o colorido do vale do Paraíba.

O segundo já na decadência da economia fluminense, pouco antes da revolução abolicionista e do fim do Império. Ouviu na meninice as queixas dos tempos, a lamentação dos inconformados, quando o silêncio ia caindo sobre as fazendas e os grandes títulos nobiliárquicos perdiam a sonoridade e o brilho, entrando lentamnente na melancolia e no olvido do nivelamento republicano.

Saquarema é um recanto de paisagem suntuosa e pode ressair pela singularidade dos contrastes, mesmo nesse luxo de incomparáveis cenários que é a costa fluminente, com as montanhas tombando a pique sobre o mar, baías, angras e lagunas rendilhando o litoral, a espelhar o céu em suas águas dormentes. De um lado o oceano corre ao assalto constante dos pedrouços enormes, e na distância, pela manhã, a bruma encurta o horizonte que se alarga na claridade meridiana até a vista perder-se. Do outro, as lagoas descansam e ainda quando o vento sopra as vagas infatigáveis, mal se percebe o debrum da superfície e, entre o mar turbulento e a lagoa pacífica, estende-se a moderação da restinga que detém as cóleras de um e da outra resguarda a tranqüilidade silenciosa.

Para dentro das terras alteiam-se as montanhas e é raro que se avancem muito no céu. Entre elas desdobram-se savanas e vales molhados pelas águas dos riachões e as fazendas de café e cana-de-açúcar com as suas casas imponentes, e aqui e ali, numa ponta de pasto, o gando ameno.

Aos olhos do poeta e do sociólogo, na idade em que os sentidos carreiam e fixam dentro da alma as sensações que nunca mais dela se apartam e são o paradigma da beleza de tudo quanto mais tarde os impressiona, desfilavam aquelas paisagens que no Palmital e no Rio Seco se completavam com o mundo dos pássaros, das borboletas e dos mil seres que povoam as florestas da serrania e a alfombra das várzeas.

Alberto saiu da terra do berço aos doze anos e disse-me que jamais ali retornou, nem para curiosidade de rápida visita. Parece que não queria que as lembranças da meninice se perturbassem com a visão de outras realidades e os quadros daqueles tempos insontes fossem substituídos nos recônditos da memória.

Saquarema porém vive em sua obra poética; é a origem daquele panteísmo que o coloca como o primeiro entre os cantores da natureza e faz que os campos, os rios, os mares, as árvores, os pássaros e as minúsculas criaturas da mata sejam o tema de preferência dos seus versos.

O espírito de Alberto de Oliveira, que habitou quase toda a longa vida nesta grande cidade, muito raramente perdeu-se no fogo das paixões estioladoras. Não se torturava. Era parnasiano pelos primores da perfeição na forma. Não tinha, porém, a frieza, tantas vezes contrafeita, da Escola. A poesia não lhe vingava nas raízes da alma, não era de introspecção, mas dos sentidos. Palheta e tinta, a musicabilidade das vozes canoras, o rumor das águas e do vento, o trom das tempestades, o surdo trovão das vagas rebentando na distância, que enchera de pavores as noites da sua casa no Palmital, as auroras e os crepúsculos, o suave aroma que se desprende das pétalas e das folhas ao amanhecer. Esse perfume que é “o espírito das flores que invisível ascende e vai falar ao sol”.

Certa vez, num daqueles saraus literários tão freqüentes quando aqui cheguei menino, pediram-me que recitasse. A sala estava cheia e, com uma ousadia que ainda hoje me espanta, disse “Aspiração”. Aprendera-a de cor e costumava repeti-la quando seminarista voltava às férias e fazia a cavalo demorada viagem pelos caminhos de areia solta, entre pomares silvestres e, de súbito, no tabuleiro, via erguer-se, flabelando, a carnaúba donairosa.

Clamava então com espanto do arreeiro que ia comigo:

Ser palmeira! Existir num píncaro azulado
Vendo as nuvens mais perto e as estrelas em bando;
Dar ao sopro do mar o seio perfumado
Ora os leques abrindo, ora os leques fechando.

E desfiava o hino pagão até confessar:

E isto que aqui não digo então dizer:

Que te amo, mãe natureza!

E a súplica panteísta, que não ficava bem na piedade de um candidato
ao sacerdócio:

E pedir que ou no sol a cuja luz referves
Ou no verme de chão ou na flor que sorri
Mais tarde, em qualquer tempo, a minha alma conserves
Para que eternamente eu me lembre de ti!

E sucedeu que Alberto de Oliveira estava na sala e, findo o ato, veio ver-me e, com a sua voz sonora, a pesada mão sobre meu ombro, disse:

“Gostei. Gostei muito.” E tive com isso certo orgulho.

Mais tarde o poeta dispensou-me carinhosa estima, acompanhando sempre com palavras de incentivo e aprovação a minha desmerecida carreira de escritor público.

Possuo entre os livros, como precioso bem, o Ramo de Árvore, com uma dedicatória em que não fala de admiração e sim de afeto. E esse afeto perdurou, sendo uma das honras da minha vida, pois também sei o que vale a amizade de um grande homem.

Certo analista da obra de Alberto, seu contemporâneo, estranhava que não tivesse podido destruir a lenda de impassibilidade e frieza que lhe granjearam os sonetos “cheios de lavor e algum tanto inexpressivos da sua primitiva maneira de versejar”. Eis que não concordo, pois nem mesmo nesses sonetos, nos quais é mais viva a influência da escoloa poética dominante na juventude de Alberto, encontro a frialdade de que o acusam. O que nele se vê é o temperamento retraído, a discreta maneira de exteriorizar o sentimento, o pudor da intimidade que tinha em comum com o seu conterrâneo que se assentou nesta Cadeira e me parece um dos traços da psicologia do homo saquaremensis e vem do hábito da contemplação que as belezas naturais criam e ainda da tradição do convívio familiar no recesso da casa, pois Alberto e Oliveira Viana eram homens eminentemente larários, para empregar uma expressão muito encontradiça no obra do sociólogo. Nunca se separaram dos seus e até a morte mantiveram a comunhão com eles, sob o mesmo teto, cultivando o puro amor fraterno, como o melhor sentimento que possa animar o coração humano. Alberto teve dezessete irmãos, dos quais dez homens e todos poetas menores, unidos à volta daquele que houvera mais tarde de recolher o principado da poesia brasileira. Além do amor, prendia-os a admiração, o prazer das boas letras, o devotamento à Arte. Esses laços não se desfizeram jamais. Era uma “tribo patriarcal”, como lhe chamou Oliveira Viana, no discurso em que celebrou o poeta ao ser recebido nesta Academia.

No retrato que fez de Alberto há muita semelhança com o próprio autor. Semelhança que é a marca do ambiente em que ambos nasceram e onde passaram os dias impressionáveis da infância.

Saquarema está presente no panteísmo de Alberto como nas concepções sociais e políticas de Oliveira Viana. Os dois eram homens “de pequena roda e sociabilidade reduzida”, desamavam as manifestações multitudinárias, o alarido das praças públicas, a dispersão dos grupos numerosos e desafins. Gostavam da quietação, da pausa alentadora, do estar só Da Vinciano, ou do ficar entre amigos de confiança, conversando a meia voz. Nessas conversas que se entrecortam de silêncios sem vexames e o interlocutor não é obrigado a dizer alguma coisa descabida ou sem importância, tão-somente para que o entretenimento não esmoreça. Eram conversadores do estilo de Addison, como refere Macaulay, no conhecido estudo, que considerava que o verdadeiro causeur é o que sustenta longamente uma conversa a dois.

Tive ocasião de ouvi-los e guardo bem o jeito do trato gentil, a tolerância que tinham com as idéias dos mais moços, o apreço que sabiam dar aos principiantes, a bonomia da acolhida, no que revelavam os hábitos da vida rústica, tão profunda e indelevelmente insertos na alma de ambos.

Lembro-me do acanhamento quase infantil de Alberto quando se falava do seu busto, ao lado de uma pequena palmeira; a homenagem parecia-lhe excessiva, desconforme com os seus merecimentos e muito além do que pudesse aspirar um poeta, só preocupado com a beleza e a sinceridade dos seus cânticos. Os olhos já nevoados não se fixavam em ninguém e mal agradecia com palavras tímidas o entusiasmo dos admiradores e amigos que acorreram para tributar-lhe no bronze a glorificação perene.

Os meus contatos com Oliveira Viana foram mais raros e creio que as entranhadas e irredutíveis convicções liberais, a diversa maneira de encararmos a organização da polis, nos colocaram por vezes em posição antagônica, embora confluindo as nossas aspirações para o mesmo objetivo, o engrandecimento da pátria comum.

Traduzindo em termos do Segundo Império, direi que Oliveira Viana foi, em toda a sua vida, um “Saquarema”, conservador do tipo die-hard duo (sic) cerne de Tory, filho de fazendeiro da escola de Itaboraí, identificado até a medula com o esplendor imperial dos trinta anos que se seguiram à Maioridade. Enquanto eu sou um “Luzia”, ligado pelo sangue Feitosa à Revolução Praieira, signatário do Manifesto de 1870, abolicionista sem dúvida, membro de clube republicano e por instinto inimigo do trono e dos incomportáveis privilégios da realeza.

Tudo isso éramos nestas plenitudes ideológicas do século XX, que têm as suas raízes no passado, única realidade intransformável, cujos influxos sujeitam e dirigem o misterioso destino das nações. Com toda a certeza, Oliveira Viana não teria figurado comigo na conspiração de Brutus, nem nos Idos de Março o encontraria embuçado entre os senadores que vingaram a República junto à estátua de Pompeu.

A Província Fluminense, entre todas, notabilizou-se pelo espírito de ordem que lhe vinha de dois fatores primordiais: a organização da economia cafeeira e a proximidade da Corte, com o poder de vigilância do Estado. A aristocracia rural fluminense formava-se nas melhores escolas da metrópole do Império e freqüentava Paris, assimilando nas fazendas, nos requintes da casa-grande, os luxos do Velho Mundo.

Os solares esplêndidos que se espalham no território da velha província, ainda hoje testemunham, em sua decadência, o fausto daquela prosperidade, o bom gosto, o senso de disciplina e de equilíbrio, a moderação dos hábitos do escol e do povo, tão evidentes aos olhos do pesquisador da sua História.

Noutras províncias não faltaram casas-grandes, como na da Bahia, na de Pernambuco, na de São Paulo. Não faltaram também dignitários da Corte, estadistas de renome. Mas foi na terra fluminense que o fenômeno de integração do povo nos costumes polidos das classes elevadas se produziu mais depressa, criando-se o ambiente de paz interna, trabalho orgânico e submissão política que explica o conservantismo típico, a ausência de movimentos reivindicatórios, a solidariedade com as instituições imperiais e até a relutância à Abolição, pela maneira radical e prestes que se verificou a 13 de Maio.

Uruguai e Itaboraí são filhos legítimos da velha província, como esse formidável Andrade Figueira, “penhascal de fragas alpestres, angulado de arestas, apontado de espigões, semeado de cardos, de onde desce contínuo o sopro de uma crítica implacável, fria como o gume do aço, ou o corte do vento de inverno”, como o retratou Rui de imperecível maneira. Pelo seu governo passaram as mais ilustres figuras do Império, inclusive o primeiro Rio Branco. E dela saíram também os numes do Exército e da Marinha, com Lima e Silva e Saldanha da Gama. Possuía uma consciência comunitária mais explícita e real do que as outras províncias, espalhada na formação de valores humanos, definida em características sociais, em morigeração, austeridade e senso individual da dignidade coletiva.

Quando Oliveira Viana nasceu, na Fazenda do Rio Seco, no ano de 1883, a Província decaía. O café prosseguira a marcha inexorável para o sul, empós as terras roxas de São Paulo.

Vacilava o Império nas questões militares e religiosas que acabaram determinando a sua queda. A escravatura não demoraria a findar. Aproximavam-se as coisas novas, que nenhuma força detém e invariavelmente são recebidas com apreensão de desencanto pelos que temem os reflexos da reforma sobre a sua posição social, a economia estável, o sistema de vida e as idéias cristalizadas.

A gente de Oliveira Viana vivia na fazenda do distrito de Bacaxá, perto da cidade de Saquarema, cultivando uns restos de café, no fabrico da farinha de mandioca e moendo um eito de cana-de-açúcar. Visitei aqueles lugares onde nada mudou, desde os dias da infância do sociólogo e que até a morte lhe pertenceram e aonde ia para os descansos da sua trabalhosa atividade a fim de conviver com os colonos e retomar forças no contato do chão nativo.

Foram seus pais educados na severidade antiga, representativos da família rural, cujos estilos passaram de moda e cada vez mais raramente se encontram, graças à frenética mutação dos costumes, que a fácil comunicabilidade do século impõe e tem-se afirmado como um fenômeno universal. A autoridade dos pais, do marido, do irmão mais velho, consagrada num sistema de usos e contenções constrangedores da expansão da personalidade humana, refletia o patriarcalismo da organização social em formas mais externas do que substancialmente verazes, consistindo mais no culto da presença dos mais velhos, nos preconceitos das relações entre pais e filhos que tiravam aos recíprocos sentimentos a espontaneidade e a confiança, o sentido de que pais e irmãos devem ser os primeiros amigos, os melhores confidentes, guias esclarecidos entre os caminhos do mundo, de quem esperamos antes de mais nada compreensão, consolo e ajuda. Gente conservadora, comedida e austera, para quem o Abolicionismo e a República representariam o fim do mundo, e as idéias liberais, nas aspirações igualitárias e niveladoras, com a destruição do trono e dos títulos de nobreza, a descentralização e a autonomia, o casamento civil, os cemitérios secularizados, a Igreja separada do Estado, seriam inovações arrasadoras, tristes sinais de que o povo estava sendo desamparadamente arrastado para o abismo.

Foi D. Balbina quem lhe ensinou as primeiras letras, como ainda hoje acontece em escala maior, pois não há mãe que não acompanhe os estudos dos filhos e que não empregue uma parte das manhãs em auxiliá-los nos deveres da escola e no esforço de preparar as lições.

Em homenagem a essa contribuição, Oliveira Viana mandou construir com o nome de D. Balbina uma escola que as crianças de Bacaxá freqüentam, em testemunho do amor do filho e da gratidão do discípulo.

Mais tarde passou às aulas do Professor Joaquim Antônio de Souza, na Escola do Rio da Areia, um casarão onde estive, na encosta de uma colina, dominando grotões e brejos, aonde chegava a cavalo, arredio dos camaradas, cioso da sua intimidade, incisivo e certo nas sabatinas, por tal forma acima dos demais que esses, tomados de despeito e inveja, uma vez o atacaram e apenas um correu em sua defesa, envergonhado da disparidade das forças e dos móveis subalternos da agressão.

Recolhi de um condiscípulo de Oliveira Viana, o próprio filho do Professor Souza, de nome Antônio Augusto e por apelido Taninho, depoimentos sobre o gênio solitário Dr. Chico, que assim lhe chamavam os antigos colegas conhecidos da região depois da sua formatura em 1906.

O sociólogo conservou sempre a amizade daquele povo e nas suas visitas ao Rio Seco, gostava de conversar com Taninho, na mesma casa da velha escola, onde o filho do professor vive há setenta anos e constituiu uma família de vinte filhos.

Transferiu-se, posteriormente, Oliveira Viana para uma aula de Saquarema e o curso secundário estudou-o no Colégio Carlos Alberto, de Niterói. Era sua intenção matricular-se na Escola Politécnica, levado pelos pendores para as matemáticas. Circunstância fortuita da perda do prazo para a matrícula ou o receio das agruras do trote, como asseguram os que conheciam o seu gênio tímido, o certo é que acabou seguindo a carreira do Direito. As Ciências sociais e jurídicas haveriam de encaminhá-lo melhor à Sociologia e à História Política, de que detém o primado na Literatura do Brasil.

Com o anel de grau, colheu-o a perplexidade que assalta os jovens a quem repugna a competição no Foro e carecem de jeito para os trabalhos da advocacia. Desde a Escola de Direito, e mesmo antes, Oliveira Viana escrevia em jornais e revistas. Os artigos no Diário Fluminense e em O País indicaram os rumos do seu espírito para os assuntos graves da interpretação do povo e da história. Desde os primeiros ensaios revela a seriedade das preocupações e o talento do escritor, na ordenação e clareza do raciocínio e sobriedade do estilo, no método expositivo das questões, no sentido pedagógico que tem a sua obra inteira, na lealdade e destemor do pensamento. Pois aquele homem que nunca falava alto e nunca obtemperava com vivacidade ao interlocutor, imutável na mansuetude, emitia por escrito, com toda a força da argumentação e veemência de palavras, as boas razões das suas teses, fossem as menos simpáticas ou conformes com a convicção geral.

Para ganhar a vida ensinou História no Colégio Abílio, de Niterói, e manteve um pequeno curso de alunos particulares de Matemática. Seguia assim a rotina dos estudantes sem mesada que trabalham não apenas para o sustento como ainda e principalmente pela disciplina do esforço intelectual, tão necessário na juventude.

Nomeado professor de Direito Judiciário Penal na Escola do Rio de Janeiro e depois de Direito Industrial, em ambas as cátedras, embora lhe faltassem os dotes de facilidade na expressão verbal, fez círculos dedicados de alunos, pela correção, assiduidade e devotamento com que se desempenhava no magistério e pelas preleções com que, fora da matéria lida, costumava prender a atenção dos rapazes, dissertando sobre os problemas da organização política e social do Brasil.

Nesse tempo, a obra de Alberto Torres parecia-lhe oferecer, sob muitos aspectos, as diretrizes nacionalistas que nos convinham, no sentido de revogar as infuências exógenas e de conteúdo puramente utópico para uma maior compreensão das realidades nacionais, apuradas na observação do seu desenvolvimento histórico.

O convívio pessoal com Torres, em cujo escritório de advogado tentou ensaiar-se sem êxito nos meandros da profissão, impregnou-o vivamente, menos das concepções do mestre do que do sentido e do gosto das pesquisas sociológicas, desse amor pelo exame direto, cauteloso e desapaixonado do fato, dessa objetividade fundamental que se tornou nele uma obsessão de “pensar em concreto”; tantas vezes anunciada como o próprio fulcro do monumento que ergueu, como observador, intérprete e profeta da vida nacional.

As horas sem clientela, passava-as na leitura, continuada em casa, nos demorados serões, na clausura voluntária desse asceta do estudo, que consumiu a mocidade dobrado sobre os livros, na ânsia de descobrir neles os impérvios roteiros do nosso destino.

Dos vinte aos 35 anos, quando terminou As Populações Meridionais do Brasil, Oliveira Viana teve sob os olhos tudo quanto se escreveu sobre este País, desde a informação do cronista das caravelas de Cabral, até os depoimentos dos viajantes ingleses, franceses, alemães e americanos, cientistas e aventureiros que se embrenharam pelo território a dentro, das ribas litorâneas aos contrafortes dos Andes. A imensa elaboração de As Populações Meridionais repousa em matéria escrita, rigorosamente meditada, didaticamente coordenada, meticulosamente escolhida, através dos quatro séculos de documentos de toda ordem que se acumulam nas bibliotecas e arquivos, em testemunho da conquista, povoamento, organização rural e econômica, praxes, leis, instituições políticas, miscigenação e aculturação, os fenômenos que constituem a marcha transformadora das vastas e perdidas terras americanas, mal habitadas de indígenas, na grande Pátria de que somos filhos envaidecidos e leais servidores.

É a obra mestra de que as demais se nutrem, desentranham e irradiam nas duas direções dos problemas da raça e da interpretação política de que precipuamente se ocupam. Trabalho da madureza viril, em que transborda o vigor do espírito, amparado no entusiasmo do sábio, que se compraz no descortino de novos caminhos, para o conhecimento das origens da formação, do diagrama de crescimento e da exegese psicológica do seu povo.

Ali escorrem, palpitando, os quatro séculos brasileiros, desde que chegaram os homens das feitorias, conduzidos por tantos impulsos diversos, que iam da cobiça do lucro ao nobre afã de propagar entre os selvagens o reino da fé.

A apuração abundante e minuciosa do processo evolutivo da sociedade colonial, das causas e móveis na dispersão dos habitantes pela rosa-dos-ventos, da paulatina conquista do plus ultra, até o assentamento das lindes definitivas do sul, no centro e no norte, por força de magnetismos que variam muito, mas não é difícil retraçar neles a sacra fames a que o mundo deve tantas das suas mais poderosas construções.

Impressiona nas Populações, como nos livros seguintes do mestre fluminense, o método invariavelmente didático, que logo se manifesta na própria estruturação dos capítulos, nas divisões e subdivisões da matéria estudada, nas múltiplas epígrafes definidoras dos temas, na distribuição hierárquica dos assuntos, e até no hábito de acentuar em grifos, para forçar a atenção do leitor, as partes essenciais do discurso. A forma expositiva, tão apropriada ao gênero da pesquisa científica dos fatos sociais, completa-se no estilo fácil e escorreito, no rigoroso vernáculo no uso dos vocábulos consubstanciais à idade e ao objeto, exaltando-se em tudo a figura do grande escritor, de estilo altaneiro e polido, que ficará em nossas Letras entre os que mais souberam enaltecer os seus merecimentos.

História, organização, psicologia das populações meridionais, sejam os paulistas, os fluminenses e os mineiros, eis o propósito do grande livro, primeira e mais ampla sistematização, à luz dos métodos sociológicos, da imensa epopéia que foi a dominação do trópico americano pelo homem branco e a sua descendência mestiça.

A novidade da obra não está epecificamente na cronologia, na extensão e natureza dos fatos narrados. Não é a história da colonização que lhe assegura perpétuo lugar na categoria do melhor que já se escreveu sobre o Brasil, pois até por critério arbitrário e sem plausível explicação, o autor elide o que a todos os olhos parece inseparável da formação brasileira, ou seja, a profunda e duradoura influência do Catolicismo através dos homens da roupeta, dos apóstolos fundadores dos primeiros colégios, que orientaram a política de defesa do índio e, nos rudimentos da organização educativa e eclesiástica, ofereceram as bases não só espirituais como administrativas da unidade nacional.

A ausência de Anchieta e Manuel da Nóbrega, os humildes jesuítas do primeiro século, das páginas de As Populações Meridionais surpreende o leitor, que não discerne por que espécie de inadvertência ou plano o mestre deixou no esquecimento as obras insignes de tantas vidas fiéis até o martírio à causa desta Pátria.

Em ensaio posterior, O Ocaso do Império, tão lúcido e completo no ponderamento dos fatores da ruptura do regime monárquico com o sentimento popular, reincide na omissão e não arrola o conflito religioso, assim como na obra arquitetônica levantada pelo seu gênio de sociólogo deixa em branco o papel da Igreja que a imparcialidade e o senso de justiça do cientista, seja qual for a sua posição filosófica diante das interrogações supremas, não podem obscurecer ao ponto dessa completa negação pelo silêncio.

A finalidade primaz, confessa, de As Populações Meridionais é interpretar a História, sob os critérios da antroposociologia e da Psicologia coletiva, ciências novas, incertas ainda nos seus passos, cujos luminares fizeram obra de pioneiros e eram a último palavra na primeira década do século, mas já foram sobrepujadas por estudos mais modernos, instruídos em métodos e recursos científicos que então faltavam. A América do Norte abriu largo estuário de contribuições originais a esses estudos. Alemães, franceses ingleses e italianos renovaram escolas, ampliaram investigações em campos mais dilatados, formularam hipóteses mais razoáveis e, em tal maneira rápida a ciência sociológica progrediu, subdividindo-se e tornando-se mais complexa, que os mestres de há trinta anos na verdade apenas completavam as praias de um mar insondável.

Não digo para diminuir-lhes o mérito e sim para ressaltar que Oliveira Viana não estacionou com elas e, enquanto teve forças, acompanhou as novas aquisições da Ciência, serviu-se delas na continuidade do trabalho, reviu conceitos e, como verdadeiro sábio, nunca se pejou do erro cometido de boa-fé nem o deixou passar sem corrigenda.

Do esforço fragmentário dos publicistas brasileiros do século XIX e do começo deste, que foram numerosos, compôs o mestre fluminense um panorama homogêneo, como se tivesse subido a um píncaro para mirar de mais alto a quanto pudesse abranger a vista, pampas, montanhas, platôs, caatingas e o vale homérico, desde que tocou o solo o português audacioso, e a sua progênie mesclada e aventurosa, pelas mil vicissitudes da desordem, da ganância e do crime, preando e matando, apoderou-se da terra, com a ponta de lança das bandeiras vicentinas, espraiadas em leque, sob os aguilhões mais diversos, porém construindo, inconscientemente quase sempre, a grandeza física e a unidade do Brasil.

A existência suntuária da nobreza colonial dos dois primeiros séculos, no norte, e no centro, o seu fluxo mais tarde para os engenhos e fazendas, já acossada pela decadência da economia, rapidamente consumida nos lazeres e despesas de gente abastada nas cidades, o latifúndio, o potentado, o clã, as turbulências dos senhores feudais, insubmissos à lei, a marca dos fundadores de currais e, após eles, no ciclo do ouro, o ímpeto dos que faiscavam e descobriam minas, os bandos predatórios, a capangagem desleal e insolente, recrutada entre os mestiços sem trabalho, a represão progressiva e cautelosa dos representantes do Rei, a luta entre as forças anárquicas e o poder metropolitano, afinal o sedentarismo da atividade agrária, a organização política em torno do prestígio da Coroa e, nessa congérie, como de dentro da nebulosa, formando-se lentamente a consciência da nacionalidade...

Eis a contextura do grande livro, transvazado numa força de estilo, num esto de afirmação, numa segurança de juízo que espanta, naquele homem recatado e taciturno, que amava os tons médios e, no trato pessoal, não deixava transparecer a incisiva agressividade do seu temperamento de escritor. Com minúcia e mestria, caracteriza os três tipos de brasileiros, o sertanejo da caatinga, o matuto do centro-sul e o gaúcho dos pampas. Frutos de três meios diversos e três histórias, que, embora confluindo no resultado da unidade política, acusam nitidamente a tríplice diferenciação da sua origem regional, das reações mesológicas que neles se operaram.

Não é um livro feito para lisonjear a sensibilidade patriótica do povo brasileiro, no qual o autor ocultasse certas duras realidades ou procurasse atenuá-las para não melindrar os mais suscetíveis. Oliveira Viana disse-o sem rebuços na expectativa dos desgostos que suscitaram:

Neste livro revelo falhas, acentuo defeitos, mostro linhas de inferioridade e desfaço, com certa franqueza, um sem-número de ilusões nossas a nosso respeito, a respeito da nossa capacidade como povo. Quis apenas ser exato, sincero, veraz. Toda a estranheza que possam causar alguns dos meus conceitos vem de que vivemos numa perfeita ilusão sobre nós mesmos.

E mais além confirma: “Há um século vivemos politicamente em pleno sonho.”

As populações rurais do centro-sul não tiveram analista mais minudente, pesquisador mais atento, mais claro intérprete. Não poderia repetir esse elogio às suas percepções peculiares sobre os povos nordestinos e gaúchos, cuja evolução histórica e papel correto no surto da nacionalidade não me parece que tenha apreendido, no seu elastério, alcance e magnificência. Espero a segunda parte deAs Populações já em via de imprimir-se, na qual prometeu estender-se, seguindo o mesmo método e em fase de maior amadurecimento, para ajuizar melhor da agudeza com que soube considerá-los no que representam como elemento de fixação das qualidades específicas do povo nacional, no que contribuíram nas lutas libertárias para o advento da Independência, o êxito do Abolicionismo e a instalação da República e mormente no nordeste, o grau de civilização e cultura a que devemos alguns dos protótipos da inteligência e do cavalheirismo de que tão justamente se envaidece a Nação.

Nos remates de As Populações Meridionais exulta com acerto nos tributos a esse povo centro-meridional a que dedicou especialmente o estudo. Reconhece-lhe providencial função no equilíbrio da vida brasileira, pelas suas virtudes pacíficas, instinto de brandura e moderação, horror da luta e do sangue.

Essas populações são a força ponderadora da nossa vida política; essas populações concorrem com a maior porção na fomação do escol dirigente; essas populações exercem uma ascendência imensa sobre os grupos regionais que lhes ficam ao Sul e ao Norte. No meio delas está a cabeça do poder, o centro do governo nacional, a sede da Realeza e do Parlamento. Nessa luta entre as aspirações liberais e o princípio da autoridade, tivessem o liberalismo a democracia, aqui, como tiveram no Norte e no extremo Sul, a lança do guerrilheiro ou cangaço do jagunço, e a grande obra da organização nacional estaria contraminada e destruída.

Será equânime por acaso esse julgamento que reduz a desnobres manifestações do cangaço e do jagunço os esplêndidos movimentos reivindicatórios dos ideais de 17, 24 e 48?

Como Euclides da Cunha, Oliveira Viana acreditou que nos sertões do Nordeste vivem os homens “mais bravos e inúteis da terra”, dos quais temia “os excessos do liberalismo republicano ou os delírios do teorismo democrático, ameaçando a nacionalidade com a anarquia, a desintegração e a morte”.

É o ponto de vista do “Saquarema”, de têmpera moderada e cauta, contemplando,nos sossegos da casa-grande, os negros na faina, os barões mandando,a ordem material assegurada pelas tropas de linha, os perigos daqueles distúrbios criadores, nos quais estuava a nacionalidade nos ímpetos do seugênio liberal.

Deslembrou-se o grande mestre de que a turba daqueles valentes descende dos soldados das guerras holandesas, os quais sozinhos, em demorada batalha de meio século, renitentes e imbatidos, salvaram a unidade política e espiritual do Brasil.

No livro seguinte, os Pequenos Estudos de Psicologia Social, Oliveira Viana repisa os motivos centrais da sua grande tese nacionalista, a de que nos perdemos em excessos de xenofilia no vezo de imitadores dos costumes e instituições de outros povos e pitorescamente nos compara à macacaria kiplingliana do país de Bandar-Log que desprezava o restante povo do Jungle porque vivia na floresta, enquanto ela se desmandava em travessuras nas ruínas da “Cidade Perdida”, coçando-se e catando as pulgas do pêlo, ocupados os bugios em guerrear uns contra os outros, aos gritos, no tumulto próprio da macacada. De repente “cessavam a algazarra e entravam a cabriolar do alto dos muros, sobre os terraços, nos jardins do Rei, cujas laranjeiras e roseiras sacudiram pelo simples prazer de ver caírem as flores e os frutos”.

O Conselheiro Lafayette, nos seus desgostos e decepções de monarquista, vendo a República nos primeiros espasmos da infância, costumava construir apólogos igualmente pitorescos para caracterizar os desazos do transplantio das instituições americanas e européias aos nossos climas tropicais e ao temperamento original do nosso povo.

Rui defendeu-se da increpação de plágio na obra constitucional brasileira, argumentando que não acontecera nesse terreno mais do que nos outros, pois “todas as reformas inestimáveis são cópias ou adaptações de experiências efetuadas noutros tempos, ou por outros povos”.

Enorme seria a controvérsia a instalar-se nesse campo, pois não poderíamos expungir a herança da civilização européia precisamente do sistema da organização política do Monarquismo no padrão britânico, como ao fazer a República parecia fatal que tivéssemos de buscar o modelo do Republicanismo contemporâneo no regime federal norte-americano.

Eram da Europa os costumes sociais, a religião, o gosto literário e artístico, os ensinamentos da ciência, o trajo, a cozinha, o estilo da casa, a moral da família, a disciplina da escola, as instituições jurídicas. Como poderíamos criar a originalidade de uma forma de governo, na qual entrassem apenas as condições peculiares do povo brasileiro?

Numa série de livros sobre os problemas da raça e da organização política, Oliveira Viana procura mostrar, na escolha de um método positivo e essencialmente científico, que a origem dos males nacionais é o caráter espúrio das instituições de Direito Público; é a democracia formal, desenvolvida em planos utópicos, sem levar em conta o que há de específico e próprio na evolução do povo brasileiro, afeiçoando-nos a um tipo de governo, bom para os ingleses no Império, certo para os americanos do norte na República, mas vão nos seus postulados e perigoso na sua prática, se arbitrariamente imposto a um país de circunstâncias mesológicas e raciais inteiramente diversas daqueles modelos, cuja história se processa pela ação de agentes e reflexos que neles nunca se verificaram. A falta de relacão lógica entre os regimes políticos e os instintos profundos do povo, as suas necessidades, psicologia e obscuros ideais, é na lição de Oliveira Viana a matriz das angústias brasileiras, dos desconcertos da nossa vida nacional, dessas pequenas convulsões que assustam, mas de fato não afetam a saúde orgânica nem sequer lhe retardam o desenvolvimento. Praticamos uma democracia de partidos, meros conglomerados ocasionais de interesses personalistas, que contendem e às vezes excluem os da coletividade, orientados em programas de conteúdo cívico extemporâneo, sob o comando, na órbita municipal, de coronéis semi-analfabetos e, na esfera dos Estados e da Federação, por oligarquias contumazes, que podem suceder-se nos indivíduos, mas são sempre idênticas nos propósitos.

Nada mais deprimente e desconsolador do que ver em O Idealismo Político no Império e na República, em O ldealismo na Constituição, em Problemas de Política ObjetivaO Ocaso do Impérioe, por último, nas Instituições Políticas Brasileiras, o retrato desses partidos, que Oliveira Viana malsinava, aproveitando-se em apoio da sua tese das amargas condenações de Joaquim Nabuco para quem os ministros do Império, fora do poder, caíam no vácuo e as agremiações políticas não passavam de ajuntamentos de aparência cívica, mas visando sempre, na verdade, a fins ilícitos nos arranjos dos bons empregos e na locupletação dos dinheiros públicos.

Não existindo no País opinião orgânica, inspirada na consciência de classe, com seus direitos e deveres, única possibilidade para o sistema do sufrágio universal e do poder representativo popular, o regime viveu sempre fora dos eixos, agitando-se como polia solta, insensível às considerações elementares do bem-estar da coletividade.

Convidado certa vez a apresentar as bases de uma nova Constituição e, posteriormente, a plataforma de um partido político, Oliveira Viana, iluminado em suas convicções, não se iludiu menos do que os teóricos da Democracia tradicional. O seu sistema de classes organizadas, de conselhos técnicos, de centralização rígida, do Estado como pirâmide, sob os olhos vigilantes e onipresentes da autoridade do chefe, tudo o que veio a ter fugaz expressão nas vicissitudes do nosso tempo e logo desmedrou, na inconsistência e vacuidade das suas fórmulas, era também matéria importada, experiência de outros climas, tentames de outras raças, que redundaram na opressão e encontraram o ocaso na catástrofe.

Não haverá no Brasil talvez opinião reflexiva ilustrada nos órgãos que a formam, na imprensa, na cátedra, no comício, nas associações de classe, no sindicato, nos sodalícios de Ciência, Arte e Literatura, mas existe, sim, opinião instintiva, que vem das razões profundas da vida, dos sentimentos coletivos transmitidos no sangue, nas reações que, de Norte a Sul, nunca faltaram da parte do povo brasileiro, para afirmar o sentido imutável do seu amor à liberdade.

A esse amor nunca fomos indiferentes e, onde quer que sofra dano ou restrição, as suas misteriosas forças relutam e a milagrosa unidade do povo retempera a sua liga de bronze para responder em reivindicações invencíveis aos agravos da tirania.

A visão política do grande mestre imergia no insondável. Aquele homem bom, cuja humildade e doçura filiavam o seu espírito às regras angélicas do monasticismo franciscano, assumia a atitude desafiadora dos profetas recriminatórios, com a pena acendrada em acentos carlylianos, quando defendia as suas teses contra os excessos do federalismo e apontava em palavras candentes de repulsa as tramas inferiores da politicagem democrática, com a mediocridade impando, os cargos distribuídos aos menos capazes, o ouro exercendo a sua atração magnética, a venalidade e a concussão estadeando aventuras impunes. Imaginava que toda essa paisagem, retrato do humano universo, poderia transmudar-se desde que relegássemos o teorismo político anglo-saxônio e voltássemos, assisadamente, as vistas para as realidades essenciais do patriarcalismo brasileiro, assente em valores orgânicos até agora esquecidos e que constituem, no entanto, os impulsos naturais e insubstituíveis da nossa vida nacional.

Uma coisa é a filosofia política, outra bem diversa a pragmática das instituições do Estado.

Deixar-se ir nas seduções estéticas da primeira é arriscar o destino como o astrólogo da fábula, os olhos postos no céu, marchando inconscientemente para o abismo.

Os problemas intrincados da raça, no segredo das misturas de sangue, a contribuição de cada uma delas na formação dos três tipos de brasileiros e no caldeamento que prosegue, os conceitos e preconceitos das longas controvérsias que suscitam, foram em Evolução do Povo Brasileiro e RaçaAssimilação versados com lealdade, sempre em sentido construtivo e se, alguma vez, a formulação de hipóteses menos simpáticas causou estranheza na quase universalidade da mestiçagem das melhores cepas brasileiras, é que o cientista não pode recuar diante do que se lhe afigura a verdade. Nunca, porém, chegou aos extremos de que injustamente o acusaram. Nesse campo, como nos demais, o pesquisador científico impunha as suas convicções e é uma das glórias do homem e escritor que em tudo primeiro pusesse a fidelidade devida ao seu próprio pensamento.

Procurou aplicar na definição dos tipos do povo brasileiro os conhecimentos e processos mais modernos, de uso na Europa e na América do Norte, entre os sábios de maior fama e segundo as doutrinas mais fidedignas. Nessa esfera de apreciações, os erros de interpretação tornam-se inevitáveis e indicam a própria instabilidade dos critérios e aquisições, eminentemente transitória, das Ciências que se vinculam à caracterização das raças humanas. Como consultor jurídico do Ministério do Trabalho, deu à sua atividade uma amplitude criadora de que resultou esse esplêndido livro que é Problemas de Direito Corporativo, no qual rebate os anacronismos da concepção individualista do Direito e reivindica a preeminência da nova doutrina “nascida da crescente socialização da vida juridica cujo centro de gravitação se vem deslocando sucessivamente do indivíduo para o grupo e do grupo para a Nação”.

Esse livro é um marco nas conquistas sociais do Brasil e abre perspectivas para um mundo em que se descortinam às gerações as suas melhores possibilidades no campo da Democracia social.

Das suas consonâncias teóricas com os interesses políticos vigentes e vitoriosos em recente fase contemporânea, não tirou Oliveira Viana proveitos censuráveis. Resistiu a todas as solicitações para o exercício de altos cargos administrativos e políticos, desdenhou honrarias, não foi caudatário de ninguém, nem ostensivamente filiado a grupos, arregimentações ou partidos. Todas as portas lhe estariam abertas se quisesse bater e entrar. A inteireza moral do homem era irreprochável, tanto quanto a integridade da sua inteligência, a largueza e profundidade da sua visão de sociólogo.

Como ministro do Tribunal de Contas, acumulando o esforço rotineiro de pareceres inconspícuos e votos irrelevantes com a elaboração de uma obra ainda inédita e que, em volumes, iguala à que veio a lume em trinta anos de incessante produção, Oliveira Viana foi exemplar na assiduidade, competência e exação do funcionário. Na sua residência da Alameda São Boaventura, 41, em Niterói, solar das suas bem-aventuranças, curtiu também as duras penas de enormes preocupações espirituais e viu o corpo sucumbir à fragilidade da condição humana, em prolongados sofrimentos, que nunca descoroçoaram o indefesso labor.

As aflições da moléstia jamais comprometeram o equilíbrio do seu espírito nem a inalterabilidade da alma constantemente bonançosa.

Foi, até o último dia, no lampejo supremo, fiel aos seus ideias, na paixão do estudo, na obstinada procura da verdade elementar, na ânsia das sínteses reveladoras do destino social e político do seu grande povo. A vida deulhe recompensa de um talento que lhe assegura a perenidade da obra e a gratidão da Pátria, com os mesmos títulos com que esta Academia, em movimento consagratório dos seus membros, o elevou à glória da sua imortalidade.

A existência das nações, como a dos indivíduos, é uma desesperada busca de realidades sempre fugidias. Nada se detém.

O problema fundamental do espírito, hoje como nas eras mais remotas, traduz-se nas mesmas angustiadas interrogações sobre a origem e o fim, na teimosa perseguição à causa primeira, aos mistérios de que dimanam as religiões e as filosofias, ao segredo último que se esconde no imo da matéria instável e em perpétua transformação.

Todo o extenso e penoso esforço da humanidade desde que no cérebro do primeiro homem as imagens começaram a se fixar em idéias e a coordenarse em raciocínios, e a animalidade ascendeu à categoria racional, orientou-se para as perguntas irrespondidas, que ainda agora nos perturbam e confundem. O caldeu que perscrutava o céu adivinhando a forma das constelações, experimentava em face das imensas incógnitas dos abismos sidéreos a mesma perturbação do astrônomo que esta noite se debruça sobre a grande luneta do Observatório do Monte Palomar. O espanto de Leverrier, ao descobrir nos seus cálculos a inesperada presença de Netuno, não foi inferior ao de Galileu, contemplando pela primeira vez, no rudimentar instrumento que inventara, os satélites de Júpiter.

Quando a Ciência saiu do campo meramente especulativo para o experimental, graças às intuições maravilhosas de Bacon, os seus fiéis creram que todas as realidades estariam abertas à frágil compreensão humana. Bastaria prosseguir sem desalento para atingir a derradeira decifração dos enigmas tenebrosos.

“Pensar em concreto” pode ser também uma fantasia do espírito, uma forma de delirante soberba, capaz de chamar os castigos da divindade. Imaginação, intuição e razão pertencem aos poderes do espírito, são formas potenciais da inteligência. Qualquer delas é instrumento hábil na desvendação dos arcanos da vida. As três conduzem igualmente ao conhecimento da verdade.

Oliveira Viana demonstrou, com palavras enérgicas e por vezes ríspidas, a cegueira dos dirigentes políticos do Brasil diante da realidade profunda do povo nacional. Doía-lhe o predomínio das ilusões e preconceitos intelectuais, a reiteração de aspirações transplantadas de outros climas, os ideais políticos sistematicamente colhidos em fonte estrangeira, alheios ao costume das massas, única realidade autêntica de onde deveriam promanar, como de fonte natural, as nossas instituições estatais.

No curso da cuidadosa leitura dos seus livros, no trato de alguns meses com o seu alto pensamento, foi crescendo dentro de mim a dúvida que aqui vos exprimo. Se uma ilusão pode durar mais de um século, se as advertências dos que sabem “pensar em concreto” não aluíram o seu império; se, expulsa essa ilusão, retornou mais poderosa em breve espaço; se, dentro desse engano político revel a todos os conselhos da experiência dos sábios, vem-se agigantando este País nas conquistas de um destino diante do qual nenhum ceticismo é justificável ou operante, vejo-me tentado a perguntar se tamanha ilusão não é a própria realidade.

Respondereis que os cálculos e verificações da Sociologia são exatos e imperativos os seus cânones, como os da Matemática, e direi também que a Filosofia é uma Ciência, a Teologia outra, a Física, a Química, a Biologia e as ramificações em que se repartem e estendem são ciências com os mesmos títulos de respeitabilidade e, no entanto, em quantas ilusões repousaram, e quantas novas realidades surgiram no incessante labor dos seus obreiros.

É o Jornalismo, por excelência, a profissão que ensina a apreender e manusear os fatos, para determinar-lhes a origem e o alcance na vida das coletividades. O jornalista deve possuir a intuição dos profetas. Cumpre-lhe subir a montanha, de quando em quando, a fim de escutar a palavra divina. É sua obrigação maior e a marca suprema do seu instinto profissional descobrir a realidade, para que não desencaminhe em devaneios o povo de que é juiz como os de Israel e o arraste nos seus erros à perdição.

Na culminância desta hora em que, fazendo o exame da minha consciência, proclamo que jamais fui infiel à ética da minha profissão de escritor da imprensa e analista isento da vida social e política do povo brasileiro, numa hora como esta, em que o homem se exalça sobre si mesmo e fala em testamento às gerações, confesso serenamente com humilde gratidão pelo que me foi dado ver no mundo, num século de transformações que dantes se operavam em milênios, confesso, como se a palavra que aqui pronuncio fosse o derradeiro sopro da minha alma, que estou convencido como num ato de fé que a ilusão não é somente a mais bela, como também a parte mais considerável e fecunda da Realidade.

14/11/1951