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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Araripe Júnior

RESPOSTA DO SR. ARARIPE JÚNIOR

SENHOR:

Na vida dos artistas há situações que sublevam quanto existe de original e profundo nas origens do seu pensamento e desdobram ao desenvolvimento de sua obra horizontes novos, novas sensações.

Fostes um místico por emulação. O simbolismo da escola a que vos filiastes nos primeiros anos de vossa carreira literária vos envolvia num nevoeiro estético, do qual começastes apenas a libertar-vos depois que a ciência, e especialmente os estudos de psiquiatria, empolgando o escritor, mostraram-lhe as causas mórbidas das manifestações caóticas e indecisas dos novos daquele tempo.

Os livros de ciência encarregaram-se de corrigir as hesitações do homem de letras, que não tardou em abandonar o sonho deliqüescente dos simbolistas palavrosos, para exercer a imaginação criadora no campo da realidade onde atua a vida e se exagera a energia do pensamento.

Num momento de ilusão pensei estar em Alexandria ou Heluan; e via-vos, à margem do Nilo, escrevendo os primeiros capítulos do vosso último livro. Com certeza, se se tratasse do poeta de outrora, encontrar-vos-ia impressionado diante das pirâmides pela religião subterrânea dos faraós e dos sacerdotes do Egito em busca, na lição do Livro dos Mortos e nas aparições monstruosas de Ftá, de Ísis e Osíris, de novas sutilezas para exprimir as incoerências do sonho estético. Quero crer que, longe disto, o Egito que se vos revelou foi o dos Ptolomeus. Descobristes a Esfinge semi-sepultada nos areais do Nilo; mas o vosso pensamento não se remontou ao mistério da eternidade, nem se precipitou nas trevas da morte que envolviam as populações petrificadas pela preocupação dos seus enigmas infernais.
Destes porventura outra significação ao símbolo egípcio e o transformastes no problema psicológico dos tempos modernos. Aos olhos de vossa imaginação teria ressurgido essa adorável Cleópatra que Shakespeare adivinhou.

Domitius Aenobarbus repetiria a frase cruel que desvenda a astúcia da maravilhosa egípcia dominadora do coração do guerreiro Antônio. Vistes, então, a deusa descendo o Cydnus para enfeitiçar o César. Ísis e Osíris, fulgurantes da civilização grega dos Lágidas, marchavam um para o outro, esboçando nos confins do Mediterrâneo o projeto sensual do império que pelas armas e pelo amor abalaria Roma.
Cleópatra ter-vos-ia, assim, aparecido envolvida no prestígio da mais bela e misteriosa criação da natureza. Esfinge viva, cujos olhos se moviam perversamente, cujos lábios destilavam filtros terríveis, cuja voz se perdia na ameaça enigmática: – decifra-me ou te devoro.

Tranqüila navegava a sua galera de popa de ouro. As velas de púrpura, enfunadas, davam à embarcação o aspecto de um cisne estranho na cor e na formosura. Os remos de prata obedeciam à cadência musical das flautas. E o marulho da vaga mal se deixava perceber, abafado pelo canto das sereias, pelo som das liras e das lânguidas charamelas. A deusa, cujo semblante irradiava a fascinação da beleza, recostada sob um toldo bordado a ouro, sorria para os amores travestis, que lhe afagavam os cabelos. As donzelas que a cercavam, em figura de ninfas e nereidas, companheiras de outra¬ Calipso, embalsamavam o ambiente dos mais finos e esquisitos perfumes. Regia a marcha do navio leme fundido de metais preciosos por divino artista; e uma sereia fazia a rota consultando es mais recônditos desejos da rainha do Nilo.

O sortilégio dominava subitamente a alma de Marco Antônio, como dominou a vossa, surgindo das páginas da História. E essa mulher, viúva de dois maridos da raça dos Ptolomeus, aliás na florescência da mocidade, ainda quente dos braços de Júlio César, que lograra escapar aos seus encantos e enredos políticos, possuía o segredo de suplantar a energia dos homens e tato para encobrir a ambição e a cólera com as lágrimas das vítimas do amor. Entre a astúcia e os instintos do sexo flutuava a sensibilidade que demolia o valor masculino de generais invencíveis nos campos de batalha.
Tivestes a revelação dessa psicologia complicada durante as vossas meditações em Heluan, reconstituindo a alma da mulher mais enigmática de quantas falam os arquivos da vida humana.
O vosso caminho estava traçado na literatura. O arrasamento da esfinge viva.

Podíeis, não o nego, ter ficado no idealismo puro de Ruskin, quando afirma que “toda arte verdadeira é adoração”. Renunciastes em tempo o incenso e a mirra; trocastes o paraíso de Beatriz pelo inferno de Francesca de Rimini. A psicologia do gênio, o mistério dos caracteres, a tortuosidade da índole da mulher, era o campo que mais conviria ao vosso talento de observador e de clínico da alma humana.
“As paixões, cujo fim é a continuação da espécie, diz aquele mesmo mestre, a indignação que se arma contra a injustiça ou que lhe dá força para resistir à injúria gratuita e o temor que é o fundamento da prudência, do respeito e do horror sagrado, são coisas dignas de louvor e belas, tanto que se considera o homem em suas relações com o mundo existente; o naturalista capaz de simpatizar com todas as paixões e formar com elas uma majestosa harmonia, representa arrojadamente o homem em todos os seus atos e pensamentos, no arrebatamento, na cólera, na sensualidade e no orgulho; nada lhe repugna confessar do ser humano vencido ou triunfante, ao contrário do que pratica o místico, o religioso puritano que o descreve desligado das relações terrestres, sem fisionomia ou vestígios de qualquer paixão transitória como abstrações iluminadas pelo clarão vago de uma serenidade não menos indecifrável que a paz celestial.”

Ninguém mais apto para tratar do autor d’Os Sertões, que foi um acaso excepcional e curioso de psicologia, do que o homem de ciência e de letras que sois.
Euclides da Cunha era um artista torturado pela ansiedade científica e pelas fulgurações das idéias que ele procurava trans¬formar em imagens. Conceber as coisas com vigor e desentranhar da língua os elementos necessários para a expressão do que lhe penetrava na alma, era o seu suplício. Mais arrebatamento do que perfeição. E foi seguramente o superaquecimento ultra vires das suas faculdades, a causa principal da catástrofe que o subverteu. Espírito trágico, ele não podia desaparecer senão na voragem esquiliana. O cérebro não descansava. Trabalhava incessantemente sob alta pressão e ao impulso de máquinas formidáveis. Calcinou-se fundindo nas fornalhas do talento os materiais incendiados que se transformaram nesse drama tenebroso de tendências dantescas, que se denomina Os Sertões.

Não carecíeis, pois, da ênfase da vossa puerícia literária para analisar as “pompas esplendorosas” – a frase é vossa – de um estilo sem par na literatura nacional. Não houve, assim, “malícia”, como pretendestes, da parte da Academia, dando-vos a cadeira de Euclides da Cunha. Apesar do contraste existente entre os dois temperamentos, – entre o de um bárbaro genial, que se exprimia e descrevia, por meio de relâmpagos coetâneos da formação da terra, as sublevações, a ferocidade da sociedade bravia e inconsciente do sertão, e do ateniense tranqüilo, ditirâmbico e ao mesmo tempo satírico, embalado no colo de Helena, a bela alma da Hélade, cuja missão tem sido modular a vida planetária: é preciso convir que nenhuma sucessão seria mais propícia do que esta, – a do espírito dionisíaco pelo apolíneo. As fulgurações do estilo alcantilado deviam abrir espaço às doçuras de linguagem mais serena.

Seja eu neste instante o enfático. Nenhum talento mais próprio para admirar a tortura selvagem de Laocoonte do que o artista que voltou de sua visita aos mármores de Atenas com o espírito cheio de serenidade, todavia mais apurado relativamente a qualidades que já possuía. Refiro-me às malignidades aristofanescas.

Literato e sociólogo, pudestes sentir tudo quanto há de extraordinário n’Os Sertões. Nas páginas do livro sentistes palpitar a alma inculta e sangrenta do interior do Brasil. Através da frase se vos desvendou o caráter do artista; a sua filosofia transpareceu no relato do historiador.

Em Canudos existiam negros, mulatos, índios, cabras, curibocas, também brancos, dessa raça de homens fortes quase loiros cujos resíduos mal se dissimulam nos nossos centros. Examinando o resultado de tão antagônicos elementos nos sertões desamparados de cultura, Euclides da Cunha inflamou-se na visão daquele abismo de selvageria. Da sua pena saiu, então, a pintura do estado social, onde se produziu a tragédia de que se constituiu herói o energúmeno Antônio Conselheiro.
No livro não se cuida tanto de raças, como do encontro de duas massas de homens cuja contigüidade provoca movimentos hostis. São etapas inimigas na vida coletiva do mundo, profunda¬mente separadas pela mútua incompreensão. E quando lemos essas páginas experimentamos uma grande tristeza persuadidos de que a humanidade ainda está muito longe de ver excluído de seu seio o Homo homini lupus.

O crítico e psicólogo na sua apreciação não deixou passar esta circunstância. Era fenômeno digno da maior atenção o dos trezentos anos de atraso daquelas populações perdidas ainda no fetichismo. Fizestes o terrível diagnóstico. Não desconhecendo a comoção de Euclides da Cunha diante da carnificina de Canudos, a exaltastes. “Depoimento, – anda há pouco, o dissestes, – libelo, sentença, que punirá, no dia em que tivermos consciência, a crueldade dos mandatários e a inépcia dos mandantes” desse crime coletivo.

Tal agudeza de vistas só por si dar-vos-ia direito à cadeira que vos destinaram nesta corporação, se em favor dessa candidatura não militassem outros títulos.
Esse vosso feitio é recente. Afirmei-o em princípio: o prosador de hoje começou usando de estilo abstruso. Coube-me, entretanto, quando se publicou a Rosa Mística, tecer aplausos ao talento poético que ruflava as asas da poesia num livro vazio de amor, porque litúrgico.

Eu via apenas o trovador impenitente da Rosa Mística e o devoto incondicional da mulher intangível, sem sangue, incolor, – abstrata, somente perceptível pelo ascetismo louco dos claustros. Como Augusto Comte, entendia o poeta que na companheira do homem residia o dogma da redenção da humanidade. Até aí nada de censurável. No poema, contudo, havia o estilo da escola, em letras que recordavam a uncial colorida dos missais e livros sagrados, a obscuridade, a extravagância de ritos obsoletos. Nesse poema de feminismo místico o escritor pregava a glorificação do sexo frágil, remodelando o homem pela submissão das energias da vontade e da inteligência ao puro sentimento da castidade, da ternura, da angelitude feminil.

Celebrando Atma, que é a heroína do livro, a expressão literária assume as formas da vertigem religiosa.
“Teu corpo tem a santidade dos sacrários, diz o poeta, é um templo de suntuosidade magnífica e divina que só a contrição da prece não poderá ofender, tu’Alma, jardim secreto, horto concluso, cheio de sombra e mistério, onde florescem os junquilhos e as rosas, os mirtos e os rainúnculos, as anêmonas e as hortênsias, onde salmodiam fontes de águas vivas, ritmos de uma eussonância perfeita, onde voam nas auras amigas todos os perfumes esquisitos das flores dispersas, símbolos de pensamentos variados, perfeitos, harmônicos, odorantes.”

Reproduzindo esse trecho de poesia cheia de incenso, sutil e vaporosa, cinzelada de acordo com o cânon dos mestres, René Ghil, Verlaine, Rimbaud e Eugênio de Castro, pretendo apenas mostrarem como um prosador de alma peregrina podia ficar errante na Galáxia tornando para sempre o seu verbo ininteligível e incapaz de exprimir os aspectos da vida terrestre; porque na retórica dos mais autorizados decadentes, por semelhante modo de apostrofar a natureza, o pensamento e a reflexão, sob o regime da idéia articulada, constituiria a maior das degradações para o poeta, cujo destino é sentir e reduzir a simples gestos os movimentos da alma, vaticinando a vida celestial.

Ora, não nascestes para perpetrar vaticínios sobre a vida incriada, nem muito menos para empreender navegações através do azul. A Rosa Mística foi uma diversão de criança no período de vossa carreira literária. O temperamento do autor da Esfinge era incompatível com a estética decadente. Alegre, expansivo, dotado de um fundo de humorismo mais que suficiente para colo¬rir-lhe o estilo e a crítica social dos ressaibos de ironia moderna, descestes, das regiões sidéreas onde os corações não palpitam, nem os sentidos têm a percepção real das coisas, e vos deixastes cair na terra, em pleno século XX, quando a atividade pela vida intensa converteu o mundo no laboratório dos grandes inventos e também das paixões violentas.

Em um dos vossos escritos científicos encontro curiosa observação sobre a hiperideação maníaca. Explicando aquilo que ordinariamente nas descritivas clínicas se designa por fuga de idéias, ensinais que a expressão não compreende verdadeiras idéias mas apenas “imagens verbais que se sucedem, ininterrupta e irregularmente, ao sabor de associações mal feitas, quando não seja em casos de meras assonâncias”. O cientista varreu assim todas as pretensões da retórica dos decadistas. Idéias mal coordenadas, imagens verbais, simples assonâncias...

A curiosidade do beletrista não devia estar satisfeita nesse mundo doentio. O progresso das descobertas científicas, a observação da alma da mulher, com todas as incoerências do amor, o estudo dos nervos do artista supliciado pelo ideal, ofereciam outros encantos e mais sólido terreno à vossa atividade. Ao vôo indeciso para regiões ignotas preferistes o exercício da imaginação sobre a realidade.
Não há como elogiar a ironia e a malignidade sorridente quando descrevestes o meio social em que vivemos. O escalpelo nas mãos desse operador delicado retalha as carnes sem dor. O caso da Esfinge aguça as qualidades do observador. Trata-se aí do conflito entre o temperamento flutuante de uma mulher hipócrita, sensual e ávida, e a ingenuidade de um artista de caráter fraco, não menos sensual, mas perturbado pelo culto da beleza plástica.

O romance roda sobre o texto que precede o primeiro capítulo da obra: “Na estrada de Tebas Édipo encontrou a Esfinge, que lhe propôs um enigma tremendo. – Se o não decifrasse fora devorado, como os outros; decifrou-o, e foi o mais desgraçado dos homens.”
Eis o problema da felicidade. A vida transcorre angustiada por duas pavorosas negações. Enquanto desejamos, a cobiça nos excrucia; vem a posse, após grandes batalhas, e, enfastiados, nos amortalhamos na vitória.

Paulo, que na Esfinge representa o eterno aspirante da posse da beleza, realizada no bronze e igualmente vivida na carne da mulher formosa que o apaixona, funde o seu ideal artístico; mas o desventurado, por fim, profanado o trabalho do coração do poeta, amesquinha-se no pecado da sensualidade, conspurcando o modelo da estátua esculpida com tanto amor. Não pode haver maior degradação. E aí têm riais um infeliz. A sensualidade da carne acaba matando o entusiasmo da inspiração. Deste modo verifica se ainda uma vez o que existe de terrivelmente irônico no mito do caminho de Tebas. Eis toda a filosofia do novo romance. Resta a encarnação dos tipos que nele vivem e denunciam a perspicácia de quem os copiou do natural.

Quem é essa mulher orgulhosa que atravessa os salões vazando tamanho sofrimento na alma do escultor que adora? Di-lo-ei. Lúcia não passa de uma dissimulada. Envolvem-na falsas aparências de dignidade; astuta, espreita ocasião para surpreender, por meio de seus encantos, de sua compostura, da soberania de seu porte, posição e cenário, a fim de saciar desejos talvez inconfessáveis.
As damas em geral, nas sociedades latinas, entregam-se ao flirt por leviandade. Lúcia o praticava como ciência; ela utilizava-se do flirt à maneira de uma arma necessária à defesa de sua dissimulação, se não de sua hipocrisia. É assim que a encontramos animando este, cavando a ruína daquele outro, entregando-se, afinal, pelo casamento ao mais grosseiro dos cavalheiros que a reqüestam, por ser ou lhe parecer o homem forte da situação, – o prestígio político nos salões, a ostentação, a perspectiva do luxo, do gozo, da ambição.

Por que casou Lúcia com o Dr. Vicente Câmara? Com certeza ela não o teria feito senão por uma depravação do sentimento. O candidato a ministro de Estado, solicitando-a, dissera-lhe que, como grande político que era, necessitava de uma mulher que constituísse o ornamento de sua existência, e ao mesmo tempo o assistisse, colaborando inteligentemente nos seus planos de conquista e dominação, – uma mulher que o agradasse física e espiritualmente, e soubesse ser a um tempo “a sedução, o encanto, a graça, o conselho, a providência, o auxilio, a associada”.

Não lhe escaparia o estúpido ridículo dessa proposta. Inteligente e sagaz, Lúcia compreendia bem a natureza do homem que se propunha desposá-la. Um charlatão político, metido a estadista, mas muito próprio para fazer-se gente em uma sociedade de rastaqüeras, igual à de Petrópolis. O Dr. Câmara, porém, servia-lhe. Capitulou, pois, convencida de que esse político, destituído de tato para mulheres, dar-lhe-ia toda a liberdade de que ela carecia para ser feliz a seu modo.

Lúcia não esquecia as expressões triunfais do futuro ministro. “É mulher como todas as outras, tem romantismos e fantasias piegas de todas.” A estas palavras imprudentes o que poderia ela ter respondido, com o espírito de que era dotada, senão que reputava tudo quanto o pretendente lhe propunha muito louvável, se bem que não fosse correto dizer o candidato à posse de uma mulher coisas daquelas! “A posse de uma mulher não era na vida um remate de programa, mas um programa.”
E todavia se matrimoniaram. O Dr. Vicente Câmara orgulhava-se – o conceito é dela – de levar para casa uma mulher que não faria “má figura entre os seus móveis, os seus quadros, as suas orquídeas”.
Lúcia intrometeu-se, assim, no lar preparado por tal marido, incubando dois pensamentos, que a vossa delicada psicologia faz transparecer no livro com uma leveza de traços a esfuminho. Esses dois pensamentos são: a exploração das pompas da vida política do esposo e a liberdade de agir segundo o temperamento que lhe era a própria existência.

Paulo, entretanto, justamente quando o amor perverso de Lúcia lhe dourava os horizontes da vida, desprezado, transpunha o calvário da mais profunda decepção e, vagabundo do ideal, corria ao suicídio. Não o pôde realizar.

“Deuses! homens! eu vi, eu vejo Helena!”. E foi, assim, pelo verso de um poeta amado, que Paulo rezara a sua primeira oração de amor. Pusestes estas palavras na boca do escultor, quando este, ao lado de Lúcia, contemplava da estrada do Pireu a Acrópole de Atenas.
Quanto não lhe foi depois fatal essa reminiscência de Helena transfigurada ali na mulher que o encantava? Antes não a visse no meio dos mármores da Grécia e ficasse no seu isolamento de artista entre as estátuas e os monumentos de Fídias, mergulhado nas recordações históricas da época incomparável de Péricles. E regressaria, então, à sua pátria dominado apenas pela paixão da arte pura, isento da colaboração carnal desse amor nefasto que devia pôr termo à sua carreira.

Estava, porém, escrito que a Esfinge, o monstro, lhe atalharia o caminho da felicidade.
Quando, de novo, Paulo viu Lúcia em Petrópolis, não escapou a esse pressentimento. – “Há maldade inocente e deliciosa, dizia ele, em todas as coisas belas. Uma flor, uma ave, uma mulher, não nos podem ser indiferentes, quando são bonitas. Há desejo de perfume, de vôo, de proximidade que nos perturba e às vezes faz sofrer.”

Efetivamente a perversidade de Lúcia, ao sentir a fraqueza desse coração de artista, não só o magoou, mas também o encheu de irritação, quando ela lhe permitiu substituir a frase por esta outra – “uma ligeira faceirice... sempre amável”.

O coquetismo da moça, todavia, o inquietava, e, desde que o experimentou, a alma do artista perdeu a tranqüilidade. Percebia o mísero que fora colhido nas malhas cruéis da incerteza do amor, o amor a priori não correspondido. O enigma do caminho de Tebas o assediava.
Não há amante delicado que não atravesse a sua crise hamlética. O amor e a arte serão o princípio da morte ou o ingresso na região do sonho? O pesadelo... quem sabe?
Paulo vivera demais no mundo das ilusões. Sonhara um Prometeu sem os atributos divinos de origem, mas já com a fraqueza da contingência humana.

“Era um homem, ser de compleição robusta, mas harmoniosa, em atitude enérgica e decidida. Duas asas possantes ensaiariam voar, explicadas, como vencendo o ar imóvel. Os olhos fitariam de frente e fixamente, para longe, como se quisessem aproximar o horizonte. Na fronte desdobrava-se a aspiração insubmissa de conquista. Na cabeleira revolta assanhavam-se ímpetos de vontade dominadora. Quem o contemplasse assim, não duvidaria um instante que ele poderia altear para o sonho, em vôo ousado e irreprimível, atingindo o destino. Mas, ah! ironia vingadora da necessidade! o corpo descia duro, pesado bárbaro, afundando-se pelos pés calosos e grosseiros na gleba originária, aglutinada e coesa, como grilhão que o prendesse indissoluvelmente à contingência terrena... pisando o lodo abjeto, chumbado a irremovível miséria... Essa antinomia divina e monstruosa, pobre Prometeu que deseja voar e é condenado a arrastar os pés na lama, seria a imagem de nossa vida, arroubada em visões e desprendimentos, mas conduzida em cada momento à mesquinha, original e eterna necessidade... Se possuímos asas da imaginação e do desejo para voar e nos desprendemos na dedicação e no altruísmo, ainda e sempre teremos resíduo feroz de animalidade que faz a nossa vergonha no interesse e às vezes na maldade.”

Assim falava Paulo, encerrado no sonambulismo louco de artista.
Não chegou a realizar, como queria, esse Prometeu, saiu-lhe uma obra falha; mas esculpiu com intensidade e valentia a estátua da Paixão. Lúcia fora a causa de se lhe enterrarem os pés no todo. Tentando remir esse pecado, constituía a estátua o nexo entre a pureza de suas intenções exteriorizadas no mármore e a miséria carnal em que por último vieram a rebolcar-se como dois brutos.
A Paixão, em suma, era a mesma Lúcia; e ela se reconheceu no mármore. Todo o trabalho executado na obra sublime fora argamassado e plasmado pelo escultor sob o domínio da carne cobiçada. E a lubricidade triunfou.

Em breve essa mulher desafiava-o em plena orgia de formo¬sura, oferecendo-se, ávida, ao primeiro cretino elegante que a na¬morou. Foi, entretanto, a derradeira provocação atirada a Paulo; e este sentiu bem pronunciado o horror físico dessa abjeção que o brutalizava no feitio do sátiro bêbado de luxúria. E marchou para a ignomínia sem o menor escrúpulo. Lúcia, que até aquele instante fora pura aspiração, agora não passava de desejo lúbrico, anseio desesperado. Qual não foi a sua surpresa ao ver a ingênua coquette de outros tempos, solicitando-o depois de um baile à porta de sua garçonnière, no estilo das hetairas profissionais do Rio de Janeiro?!

Desabava o mundo. O escultor-poeta ensandecia.
Não me propus aqui fazer a critica da Esfinge, o que seria descabido. Traduzo-a a meu modo, isto é, na conformidade das sugestões que recebi do livro.
Em toda a obra de arte há duas faces: uma, visível para todos, preparada pelo esplendor das cenas escritas com maior ou menor naturalidade; outra, subordinada à reflexão e à inteligência dos intuitos do autor.

Lendo o vosso livro procurei a lógica dos caracteres lançados no conflito do drama; e foi a impressão do que propriamente se não vê, mas se deduz da natureza dos tipos o que me preocupou e busquei interpretar. Eu vi Lúcia; afirmo que a vi e tão exatamente como a pessoa conhecida, que sem embargo tenta esconder a sua índole e os seus maus pensamentos. E a mim pouco importa que empregásseis todos os vossos artifícios e carinhos de estilista para dourar a sua maldade. As últimas páginas do romance mostram de modo irrefragável a depravação sensual dessa mulher. Não me cabia, pois, o encargo de atenuar a hediondez desse caráter.

Não terminarei esse discurso sem dizer o que me ocorre relativamente ao pessimismo, que forma a atmosfera do livro, e ao estilo de quem soube tão vivamente dar corpo e colorido à sociedade de Petrópolis.

Discrimino três espécies de pessimismo: o pessimismo filosófico, que arrebatando ao homem as próprias causas de viver, suprime a vida como único meio de eliminar a faculdade de sofrer; o pessimismo criado pelas ansiedades da vontade e que devastam a alma ávida de futuras coisas belas que custam a chegar; finalmente, o pessimismo de espíritos independentes e finos, que, desdenhando um pouco a dor alheia, consolados com a sua superioridade, menoscabam a tolice humana e divertem-se na contemplação das infantilidades e grosserias do maior número, causticando com ironia, às vezes impiedosa, o egoísmo inconsciente daqueles que se julgam no direito de conduzir os destinos da sociedade.

Tenho receio de ofender-vos classificando-vos entre os últimos. Seria, contudo, injusto se não o fizesse, porque, apesar de serdes dotado de uma natureza alegre e aberta a todas as generosidades e de uma imaginação desanuviada dos pavores da morte, incapaz de denegrir a vida, fostes cruel com a sociedade petropolitana, sociedade de rastaqüeras, onde nem ao menos se encontra originalidade no vício, corrompida por emulações de aldeia e depravada por costumes de importação.
O vosso estilo não tem escarpas; é fluido, correntio e cantante. Seria inútil procurar nas páginas da Esfinge as notas graves da tragédia. O registro da frase é o médio, o mais próprio para as pinturas da vida mundana e porventura o mais consentâneo com a análise psicológica dos caracteres e especialmente do coração retorcido da mulher.

Nas descrições da vida de salão, nos diálogos, sentem-se as peregrinas qualidades do causeur, que todo o Rio de Janeiro conhece. Isento de arrebatamentos e vibrações, sem a persuasão dos escritores russos e escandinavos, o vosso estilo é, no entanto, sedutor pela limpidez e pelo aticismo. Sabeis dizer as coisas mais escabrosas com clareza e propriedade, fugindo sempre com delicadeza ao equívoco indecente e á frase indecorosa. Dir-se-ia que sobre a face polida e digna da frase, como nas águas tranqüilas de um lago iluminado, os pecados que descreveis refletem-se atenuados pela sombra colorida da paisagem circunjacente.

Para dar a minha impressão exata quanto ao estilo, máxime na Esfinge, não farei melhor do que escolher e transcrever.

“A noite ia longe. O silêncio era mais denso; muitas vozes se calaram, adormecendo. Apenas, distinto, ouvia-se, de quando em quando, o cincerro de um cavalo insone, tosando no pasto a relva úmida. E intercadente, em um ritmo melancólico, um pássaro da mata mandava à noite clara sua canção dolente, queixume íntimo que ouvira traduzido diferentemente, mas cuja significação agora atinara.
– Peito ferido!... Peito ferido!...

Quem sabe se aquela ave solitária não era como ele um desgraçado a que uma queixa de amor roubara o sono e se comunicava com a natureza confidente pelo seu canto triste?
E as mãos completaram o pensamento, apenas formulado, tomando o amado violão ao peito, afagando as cordas tensas e cravelhas firmes, e preludiando um canto que lhe exprimisse a tristeza, com a sinceridade dolorida do pássaro da mata que chorava o peito magoado. Insensivelmente, como se o coração cheio se lhe vazasse, uma plangente serenata, meio-tom, depois a gama inteira, correu em frêmitos de dor pelo pinho soluçante... Parecia que a música chorava miúda como uma prece medrosa e depois se alteava num canto largo e expansivo como reprimida confidência de amor, até recair na mesma dolorida lástima arrastada e infindável. E assim, aos azares tumultuários, ora de queixa, ora de exprobração, aqui de desespero, além de confiança, o violão cantava toda a poesia intensa da paixão rústica.

De repente uma janela estalou no oitão e pela banda aberta uma cabeça de mulher espiou para fora. Depois, confiante, surgiu no retângulo escuro que o luar emoldurava. O rosto apoiava-se no umbral e permaneceu imóvel longo tempo. O violão continuou sua oração sem palavras, cada vez mais triste e mais desesperado. Depois, morrendo em um desenlace final, extenso e lânguido, emudeceu de todo...”

Essa toada, dolorosa e meiga, tem encantos indizíveis para as mulheres, a quem de preferência vos dirigis. Para a Academia, que vos acolhe com a alegria dos que rejuvenescem ao contacto do espírito novo e da malignidade juvenil e despreocupada, fica a fraseologia do sociologista, cujos conceitos constituem, talvez, a parte mais apreciável da vossa obra.