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Uma efeméride a contragosto

 

Ao completar 50 anos de carreira, o escritor reclama da obsessão por datas redondas

Juliana Krapp

Diante do Goya que ilustra a parede de seu gabinete, Carlos Heitor Cony explica que é Saturno devorando seu filho, uma referência ao passar do tempo. "O Cony escritor é como o Goya, atormentado. O sonho da razão produz monstros", diz, parafraseando o pintor.

Ao lado, também emoldurada, uma redação de colégio que escreveu aos 8 anos. O apartamento de Cony, na Lagoa, é repleto de relíquias pessoais. Quadros pintados pelo próprio escritor. Uma imagem de Santo Antônio, um terço, fotos de sua cachorra Mila, já morta. E a máquina portátil Remington com a qual escreveu seu livro de estréia, O Ventre – que completa meio século. Mas, apesar de ser ele mesmo uma delas, Cony anda chateado com tantas efemérides. Acha que a polêmica em torno de Capitu empobrece Dom Casmurro, e que a bossa nova não foi lá essa coca-cola toda. Como boas lembranças de 58, guarda mesmo são os passes dissimulados de Didi, o jogador que "era como a Capitu do futebol".

O que o senhor tem lido?

- Estou relendo as obras completas do Lima Barreto. Hoje, aliás, gosto mais do Lima que do Machado de Assis. Acho que os dois grandes livros do primeiro, O triste fim de Policarpo Quaresma e Recordações do escrivão Isaías Caminha, são superiores aos do segundo. O Machado é, claro, o maior escritor da língua portuguesa. Mas o melhor romancista é o Lima.

O senhor escreveu outro dia que está cansado de tantas efemérides, e mesmo da onipresença de Capitu.

– Sim, há uma poluição muito grande. Talvez o problema seja a falta de assunto da mídia. Não agüento mais, por exemplo, esse dilema da Capitu. O que menos importa em Dom Casmurro é se Capitu pecou ou não. Acabam reduzindo um livro tão importante a uma novela, uma fofoca.

O senhor também já disse que, na literatura brasileira, Machado veio para atrapalhar.

– É que ele saiu do esquadro. Não apenas pelas suas origens, modestíssimas. Enquanto toda a literatura brasileira estava voltada para a França, ele voltou-se para a Inglaterra. Criou um caso de penetração psicológica, de ironia. Abriu um ramal inédito na literatura brasileira.

Numa crônica, o senhor diz que tanto Machado quanto o Padre António Vieira eram "coronéis, com a peculiaridade de serem majores".

– Eu me referia ao tipo de ironia de ambos. No fundo, Vieira era um grande gozador. E Machado também. Não o lado meio moralista do Vieira, que, como dizia o Fernando Pessoa, era o imperador da nossa língua. É que, além disso, ele tinha humor, gozação, um jogo de palavras que Machado herdou. O lado pomposo do Vieira pertence ao Rui Barbosa. Mas a ironia, a finura, a penetração psicológica ficou para Machado. Acredito que o autor brasileiro que lesse Machado e Vieira não precisaria ler mais nada.

Voltando às efemérides: e a bossa nova?

– É outra coisa que anda cercada de exageros. Eu me criei ouvindo a chamada era de ouro da música popular: Ary Barroso, Dorival Caymmi, Braguinha, Noel Rosa. Quando surgiu a bossa nova, eu já era adulto. Mas a atual geração que está à frente da mídia foi formada no tempo da bossa nova, então faz dela uma espécie de Xangri-lá. Mas, na verdade, ela tem muito de chata. Tem um lado de beijinhos e peixinhos que acho horrível. Teve também grandes momentos, sobretudo na obra de Tom Jobim. Mas a gente não pode esquecer artistas que, não sendo arrolados pela bossa nova, foram também muito importantes: Chico Buarque, Caetano Veloso, Benjor, que é um injustiçado. A bossa nova teve penetração no mundo todo por ser uma música standard, que agrada ao gosto médio internacional. Mas não é uma coisa tipicamente brasileira, como o são Benjor e Ary Barroso. Ela pode ser tida como uma expressão musical do mundo todo. Aliás, o Henri Salvador, que era francês, chegou a dizer que foi ele quem a inventou.

O senhor também representa uma efeméride, com o aniversário de O ventre.

– Quando fiz 80 anos, disse: não acredito que uma pessoa fazer 80 anos mereça comemorações. É um fato biológico. Mas os 50 anos de um livro é diferente. Minha editora (Alfaguara) e a ABL acharam que transcendia à minha pessoa: é uma obra. Um livro que foi feito há 50 anos e que permanece em catálogo, teve várias edições, enfrentou diferentes gerações. Isso é importante, revela que o livro permanece vivo. Pode até morrer. Mas ainda não morreu.

Quais memórias o senhor guarda de 1958, afinal?

– O ano de 58 foi importante para mim devido à publicação de O ventre. De 56 para 58, não me havia acontecido nada. Eu era desconhecido no mundo literário, sem chão. Um sem-chão publicar um livro foi um feito e tanto. Teve ainda a bossa nova, mas não dei bola. E a Copa do Mundo foi importante também, mas não deu para apagar a decepção de 1950.

Ouvi dizer que o senhor é fã do Didi, o jogador de futebol.

– Eu o considero o melhor jogador que já vi. Quando ele foi do Fluminense para o Botafogo, comecei a perder o interesse pelo futebol. Vi Pelé, Garrincha, Zico, vários jogadores bons. Mas igual ao Didi não houve. Não com aquela imponência, elegância. O Armando Nogueira dizia que os passes de Didi eram oblíquos e dissimulados, como os olhos de Capitu. E Didi era mesmo uma Capitu do futebol.

Como é olhar para O ventre, 50 anos depois?

– Não dá alegria, não, dá um certo temor. Eu hoje não teria coragem de fazer esse livro. Quando o escrevi, com 28 para 29 anos, não tinha nenhum compromisso, tampouco conhecimento na área literária. Eu vivia numa lancha, de chapéu de marinheiro, jogando futebol de praia, desvinculado do mundo intelectual. Fiz o livro dentro desse clima de total liberdade. Ou melhor: de irresponsabilidade. Hoje, 50 anos depois, vivo com uma porção de latas amarradas atrás de mim, como um carro de recém-casados. Quando eu me jogo, levo as latas todas. A vida na imprensa, na literatura, na ABL são minhas latas. Não posso mais cortá-las. Onde vou, arrasto esse ruído, que só me prejudica. Nos meus primeiros livros havia pureza. Hoje eu não teria condições psicológicas e existenciais de escrever O ventre.

Seu livro de estréia é cheio de amargura e desencanto. De onde vinham?

– Quando eu o escrevei, acreditava que minha principal influência era o existencialismo francês. E eu realmente estava lendo muito Sartre. Mas, hoje, a crítica acadêmica já descobriu que, além disso, houve a influência aberta, total, quase um plágio, de Machado de Assis. Porém isso eu não percebi na hora.

Mas o senhor concorda?

– Concordo, diante das evidências. Há situações idênticas. Excetuando-se a coisa da dúvida, do adultério, com o qual nunca trabalhei, O ventre tem muitos pontos em comum com Dom Casmurro.

Além das situações, o que há em comum?

– O sentimento áspero. Uma certa rabugice. Mas é uma rabugice gozadora. Que, a pretexto de gozar a si mesma, goza os outros.

Há novo livro à vista?

– A Alfaguara me cobrava um livro de memórias, e vou resolver isso ainda este ano. Mas não vou escrever memórias. Com 17 livros e 62 anos na imprensa, já contei tudo o que tinha para contar sobre mim. Vou, então, selecionar crônicas de cunho mais pessoal, algo como Eu, Cony, em pedaços. Não tenho saco para fazer uma biografia. E nem acho necessário.

O que lhe dá mais prazer de escrever hoje?

– Hoje não tenho prazer em escrever. Tenho mais prazer em ler. Escrever é o meu ofício, apenas.

O senhor é melancólico?

– Sim. Mas não nostálgico. A nostalgia é um saudosismo, a saudade daquilo que a gente já teve. Já a melancolia é a saudade daquilo que não tivemos. E a minha literatura, como a de Machado, é muito melancólica. Machado sempre fala daquilo que ele não teve, do passado que no fundo é o dele: o de menino pobre do morro, gago, epilético. A frase definitiva de Machado, para mim, é: "No meu tempo já existiam velhos, mas eram poucos".

Jornal do Brasil (RJ) 19/7/2008

21/07/2008 - Atualizada em 20/07/2008