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Antologia Pessoal

 

O poeta e ensaísta Antonio Carlos Secchin, membro da Academia Brasileira de Letras, é professor da UFRJ. Organizou, em 2001, a poesia completa de Cecília Meirelles. É autor, entre outros, de Todos os Ventos e Romantismo, além de organizador de volumes de poesias e contos de João Cabral de Melo Neto, Edla Van Steen e Fagundes Varella.

Dê exemplo de um livro bom injustiçado, pelo público ou pela crítica.

As obras poéticas de Alberto da Costa e Silva e de Ivan Junqueira ainda não atingiram a ressonância que merecem. Alberto une, como poucos, inteligência, cultura e sensibilidade. Ivan é das nossas maiores vozes meditativas e elegíacas.

Cite um livro que frustrou as suas melhores expectativas.

Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade. Há alguns anos, estava muito interessado pela prosa das vanguardas, me encantara com as Memórias Sentimentais de João Miramar, do mesmo Oswald. Serafim é exemplo do que considero a histeria do significante, o formalismo modernista em involuntário pastiche de si mesmo.

A boa literatura está cheia de cenas marcantes. Cite algumas de sua antologia pessoal.

A fala final de Morte e Vida Severina, de João Cabral, quando o Mestre Carpina aponta a “explosão da vida” como antídoto à renúncia de Severino. O epílogo de A Intrusa, de Jorge Luis Borges. A cena do Quincas Borba em que Rubião sob apupos, desfila, na cidade natal,como insano imperador de coisa alguma.

Que personagens são tão marcantes que ganharam vida própria na sua imaginação de leitor?

Há nomes que são referências obrigatórias no Olimpo dos personagens: Quixote, Hamlet, Emma Bovary... No panteão brasileiro, são quase cativas as presenças de Iracema, de Capitu, de Macunaíma, de Riobaldo. Mas por que não evocar inesquecíveis personagens de poemas? O velho tupi, em Y-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias. A Teresa, de Castro Alves. A Ismália, de Alphonsus de Guimaraens. A Irene, de Bandeira.

Que livro bom lhe fez mal, de tão perturbador?

A grande arte sempre nos faz muito bem, ainda quando nos derruba. Muitas vezes, inclusive, costuma fazer bem exatamente porque faz mal.

De qual autor você leu tudo, ou quase tudo? Qual o motivo do interesse que ele desperta em você?

João Cabral. Queria conhecer em detalhes a mais prodigiosa e organizada máquina poética de nossas letras, inclusive para averiguar até onde ela não chegava. O risco, para um grande autor, é que os epígonos, indo apenas até onde ele foi, duplicando-lhe o caminho, acabem reproduzindo-o no que ele tem de mais facilmente imitável, em seus meneios estilísticos. Tal prática acarreta o enfraquecimento da voz original, que passa a sofrer os efeitos de uma leitura retroativa contaminada pela diluição de seus próprios imitadores.

Existe algum autor como o qual você jamais perderia seu tempo?

Sim, com todos aqueles que pretendem ensinar as melhores e mais vantajosas maneiras de jamais perder tempo.

Os livros de autoajuda são mesmo todos ruins, ou isso é puro preconceito da crítica e de intelectuais?

O livro sempre encontra o leitor que merece. O problema da autoajuda é sua inarredável propensão ao bom conselho, às fórmulas apaziguadoras e aos clichês edificantes. Literatura não tem nada com isso: não é edificante, é desmoronante.

Cite um livro que você acha que deve ser muito bom mas jamais leu.

A íntegra de As Mil e Uma Noites. Mas não vou passar as noites contando quantas me faltam.

E um livro que começa muito bem e se perde no caminho.

Tenho tendência a perder-me de um livro desses antes que ele se perca de todo. Assim, mantenho a ilusão de que, sem mim, ele acabará se reencontrando em algum lugar, ou em algum leitor.

Que livros ficariam melhores se um pedaço fosse suprimido?

Inúmeros. Alguns, inclusive, ficariam melhores se suprimidos na íntegra.

De que livro você mudaria o final? Por quê?

Mudaria o final de várias fábulas, para que a alegria, o prazer, o corpo e a canção pudessem, de vez em quando, ser vitoriosos.

Cite exemplos de livros assassinados pela tradução e exemplos de boas traduções.

Quando percebo que a tradução é assassina, largo o livro, para não me tornar cúmplice do crime. O que jamais ocorre nas traduções de poesia realizadas por Ivo Barroso, Leonardo Froes e Paulo Henriques Britto.

A literatura contemporânea é muito criticada. Que livro publicado nos últimos dez anos mereceria, para você, a honraria de clássico?

Ao contrário, acho que a literatura contemporânea é excessivamente louvada, sobretudo por seus próprios autores, e muitas vezes, à falta de outros atributos, exatamente por ser “contemporânea”. Para saber, porém, o que disso se tornará clássico, é necessário um pouco menos de presunção: quando a literatura de hoje envelhecer, o leitor de amanhã há de descobrir aquilo que nela permaneceu para além de sua mera adesão a um presente já pretérito. O clássico é um “só-depois”: trata-se de obra que, tendo sido inevitavelmente contemporânea, consegue dialogar com um leitor ainda invisível, mas potencialmente contido nas camadas do texto, numa paciente espera do futuro.

Que obras (brasileiras ou estrangeiras) ausentes nos cânones mereceriam seu voto?

Para ficarmos com os brasileiros: valorizo o ritmo e a ironia às vezes cortante das narrativas de Edla van Steen. Os contos e o memorialismo de Graciliano Ramos, minimizados frente à sua produção romanesca. As magistrais crônicas de Rubem Braga, ignoradas, com raras exceções, pelo meio universitário.

De que livro demolido por críticos você gostou?

Não que ele tenha sido demolido exatamente, mas subavaliado: Pilatos, de Carlos Heitor Cony, é um romance notável, pela irreverência, pelo humor e pela iconoclastia, sob o influxo de uma imaginação, digamos, despirocada.

Quais bons autores você só descobriu alertado pela crítica?

Edgard Telles Ribeiro. Apesar de que, atualmente, acho que cabe mais a mim pedir à crítica que redescubra esse autor que ela mesma me fez descobrir.

Cite um vício literário que você considera abominável.

Na poesia, o maneirismo do minimalismo: a arrogância de supor que qualquer recorte arbitrário do verso chancela a “modernidade” e a qualidade de um texto; a volúpia com que as tribos de poetas entredevoram-se, como se isso tivesse qualquer interesse ou ressonância para além de seus estritos e restritos mundos. A utilização descalibrada da metalinguagem e da intertextualidade, erigidas não em processo, mas em finalidade suprema da obra. Textos sobre textos que remetem a textos, que... Tudo no mundo existe para acabar num livro, sentenciou Mallarmé. Sim, mas sob a condição de sairmos dele - transformados e transtornados.

E que virtude mais preza na boa literatura?

Um preceito, atribuído a Fernando Pessoa, que li há muitos anos: “ser clara e rara”.

O Estado de S. Paulo (SP) 04/01/2009

04/01/2009 - Atualizada em 04/01/2009