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A alegria de ser a dama do sertão

 

Letícia Lins

O Globo (06/11/2003)

RECIFE. Nada deixava Rachel de Queiroz tão feliz quanto transformar-se na dama do sertão. Assim ela era considerada pelos caboclos sertanejos, ao lado dos quais gostava de se refugiar no meio da caatinga. Mais precisamente, na fazenda Não me Deixes, município de Quixadá, sertão do seu Ceará.

Costumava passar lá meses a fio, independentemente de ano seco ou de bom inverno, chuvoso. O sol inclemente apenas contribuía para que ela amasse mais ainda aquela terra vermelha e poeirenta, a vegetação cinza de tão estorricada, o açude seco, o gado recorrendo à palma espinhosa mas salvadora no curral. Rachel dizia que não tinha o sangue na terra, mas que a terra corria no seu sangue.

Era esse amor atávico à caatinga e aos cheiros das imburanas com seus troncos dourados e dos mandacarus em flor que a levava sempre a seu torrão, a 154 quilômetros de Fortaleza. Não era preciso ver chuva nem caatinga verde para a permanência lhe dar prazer. O que ela gostava mesmo era de sentir a poeira do sertão, ver pássaros, o dia amanhecendo muito cedo, o açude seco ou com água.

Era ali também que gostava de ficar com sua máquina de escrever, numa construção afastada, para criar seus romances e crônicas.

- Eu não posso viver sem o ar da terra ou sem sentir aquele cheiro da terra molhada quando chove. Uma vez eu estava doente em Itabuna, na Bahia, contemplando a janela. E começou a chover. Senti o cheiro da terra molhada, desabei em pranto, acho que nunca chorei tanto na minha vida. Eram a memória e a saudade de minha terra - contou ao GLOBO há alguns anos, em Quixadá.

Na fazenda, Rachel se proclamava "apenas uma velha senhora".

- Aqui sou uma vovozinha. Sou muito amiga dos meus caboclos todos, cujos antepassados trabalharam com minha avó. São gerações de trabalhadores muito ligados a nós. Vivem atrás de mim para resolver os problemas, as separações, as crises conjugais. Quando a moça aparece grávida, querem que eu faça o casamento à força.

Mas Rachel delegava a administração da fazenda à irmã mais nova, Maria Luiza, e a uma ajudante, Rosita Ferreira de Souza.

- Elas vão para Quixadá, resolvem tudo. Eu fico de vovozinha, na casa, andando pelo mato para ver as cabras no curral. Já não ando a cavalo, infelizmente.

Dizia que Maria Moura nada tinha de autobiográfico. Mas para quem chegava na fazenda Não me Deixes era praticamente impossível não perceber semelhanças, até porque a escritora também teve seu lado guerreiro na juventude. A casa grande da fazenda foi erguida bem ao estilo Maria Moura. Como sua heroína, foi a própria Rachel quem a projetou, desenhando pacientemente os cômodos, a cozinha, o alpendre. Objetos utilitários praticamente inexistentes no Rio de Janeiro - onde fixou residência - eram observados principalmente na cozinha: cantareiras com potes para dar o gosto bom do barro e conservar a água na temperatura certa. O fogão era de lenha, tal qual nos tempos de Maria Moura. Mobília artesanal, desenhada pela própria Rachel. Em um de seus últimos livros, "Tantos anos", escrito em parceria com Luiza, Rachel voltou a descrever os encantos da terra natal. O retorno à fazenda só serviu para mostrar à dama do sertão que o amor à caatinga era mais forte do que supunha:

- Lá realmente é o meu lugar. Cada volta é um regresso. Sinto que lá é o meu permanente. O Rio é provisório.

Experiências à esquerda e à direita

Comunismo, trotskismo, direita e afinal, como ela própria se dizia, uma doce anarquista. Rachel teve uma polêmica vida política e aos 22 anos já era fichada em Pernambuco, no prontuário 883 da Delegacia de Ordem Política e Social (Dops), como “agitadora comunista”. Ainda assim, seu talento não foi ignorado:

“Comunista militante, brilhante escritora cearense” - é o que consta nas fichas do Dops, assim como descrições de passagens por Recife e de cartas apreendidas em batidas na casa em que morava, no Ceará.

Mas a ligação de Rachel com o partidão não durou muito, pois o amor à literatura falou mais alto. A direção do partido quis impor sua verdade no livro “João Miguel”, que ela acabara de escrever em 1932.

- Eles pediram o livro e eu entreguei os originais. No dia seguinte me disseram que eu tinha de inverter o livro. Não aceitaram que uma proletária se prostituísse e que a burguesa fosse boazinha. Pedi os originais, coloquei-os debaixo do braço e saí correndo - lembrou em 1998.

Desde então rompeu com o PC. Rachel ainda descobriria o trotskismo em 1933. Em 1937, com o Estado Novo, seus livros foram queimados em praça pública junto com os de outros escritores, na Bahia. No fim, dizia detestar “toda ordem organizada, todo estado organizado”.

- Sou uma doce anarquista - definia-se.

Por conta de sua amizade com Castelo Branco - eles se diziam primos, pelo parentesco distante com o escritor José de Alencar - ela não escondia que conspirou pelo golpe de 1964, mas só apoiou o regime no início.

- Não me aliei propriamente aos militares. Conspirei contra Jânio, assim como contra Getúlio.

 

06/06/2006 - Atualizada em 05/06/2006