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Vida na morte

 

Nosso filho, Marcantonio, está fazendo o de que mais gosta. Visita as galerias do céu. É lá que está a beleza. A beleza que é a verdade.


Viveu como desejou. Intensamente. Produtivamente. Nada aceitava sem reflexão. Não buscou glórias disponíveis. Ao contrário, desafiou comodismos.


Viajou muito, mas recebeu de Deus o que mais desejava: terminar em Pernambuco. E assim foi. Na casa dos pais, sem que percebêssemos que se despedia.


Tinha horror a ser incômodo. Também não o foi naquela hora. Temos muito orgulho dele, prudente no compromisso e determinado no idealismo. A sua vida está representada por uma ação que repercute em áreas culturais de vários países do mundo e que teve como base as suas raízes pernambucanas.


Como é possível deixar de ter orgulho de sua vida? Como é possível?


O orgulho pela memória de Marcantonio é dos pais, da família e repartimo-lo com os muitos amigos, que dele foram tão bons.


Não há caminhos. Há que caminhar. Seus pais estão procedendo assim, ainda que seja esta a dor mais alta e mais longa. Estão caminhando.


E é este o pedido que temos feito aos amigos: somente nos é permitido escutá-los se for com os ouvidos do coração, pois é com o coração que todos nos falam dele.


Tom Jobim nos disse que ''a tristeza tem sempre a esperança de não ser tristeza''. Por isso nós temos que ver nele o diácono do futuro e ''o profeta das cores''.


Juntos, recordamos a sua ironia juvenil, a impaciência com o irrelevante e a ojeriza à infidelidade.


Trabalhou com o ânimo de ser solidário. Recusava ser um solitário quando expunha nas mãos os calos da vitória. Belo exemplo, o deste filho que se foi quando, ainda dispunha do divino calibre da mocidade. Seu horizonte não terminou, pois ficou em toda parte e em muitos museus do mundo.


Ficou em seus pais a imagem de o desencontrarmos justamente quando o dia estava sob a luz melancólica do crepúsculo. O mar, em frente, prosseguia no vaivém e o vento soprava com o vigor do ano-novo.


Agora sabemos, segundo Fernando Pessoa, que o mar salgado para além de Portugal é feito de mais lágrimas.


Marcantonio, que tanto viajara por imperativos da inteligência e eficácia do trabalho, iniciara a viagem vertical sem retorno, sem ser circular. E nós descíamos do Tabor para Gethsemani.


Se tudo começa de novo quando tudo se acaba, então chegara o tempo de agrimensura da saudade, que Da Costa e Silva chamou de ''asa de dor do pensamento''.


Não era um egoísta, nem um paranóico da glória pessoal. Fez para muitos e construiu pensando no sucesso dos talentos em quem acreditara.


Em compensação, está recebendo homenagens, como a da galeria New Tate, de Londres, dirigida por Todoli e da galeria com o seu nome na principal avenida de Bruxelas, tendo à frente o embaixador Jerônimo Moscardo, que nem chegou a conhecê-lo pessoalmente.


Temos, aqui no Brasil, o Prêmio CNI/Sesi de Artes Plásticas, também com o seu nome, numa obsessão afetuosa de Armando Monteiro Neto. Além do Prêmio criado pelo Congresso Nacional, com apoio de parlamentares, entre outros, Osvaldo Coelho, Maurício Rands, Cristovão Buarque, Marco Maciel, tornado tema de Gilberto Gil, que irá mostrá-lo este ano ao mundo intelectual e artístico, numa frente comum do Congresso e do Ministério da Cultura.


Há dias, lembrei a Maria do Carmo, sua mãe, que Victor Hugo escreveu haver chama nos olhos do jovem e brilho de luz nos olhos dos velhos. Os pais continuam a ver a chama que brilha nos olhos dele.


Seis anos após a sua morte, a gente sabe que estar longe não é estar distante. Resta-nos a tarefa permanente de arrumar o seu quarto, fiéis aos versos de Chico Buarque, na Ópera do Malandro:


''A saudade é o revés do parto, a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu''.


Jornal do Brasil (RJ) 8/2/2006