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A realidade se impõe

 

O presidente Bolsonaro teve que abandonar a retórica irresponsável sobre a gravidade da crise do novo coronavírus, devido às evidências em escala mundial. A preocupante lentidão do governo federal nas ações de combate ao coronavirus foi quebrada ontem com a decretação do estado de calamidade pública. Só segunda-feira foi montado o gabinete de crise, que se reunirá hoje já sob o novo espírito, o que deveria ter sido feito há pelo menos 15 dias. Diversas medidas emergenciais continuam em estudo, espera-se que hoje, depois da primeira reunião do grupo, sejam anunciadas.

O ministro Paulo Guedes anunciou uma série de medidas, mas falta muita coisa, inclusive para guiar os executivos estaduais, que, na parte relativa à sociedade, estão muito mais avançados. Por isso Bolsonaro diz que as medidas tomadas pelos governadores prejudicarão a economia, como fosse possível reativar a economia sem a ação do governo federal de compensação aos pequenos e micro-empresários.

Também as grandes empresas precisarão de estímulos para enfrentar a crise, que já está fazendo com que previsões de recessão este ano no país se generalizarem entre os agentes econômicos.

O presidente da República deveria estar à frente dessa ação, não apenas fisicamente, mas como símbolo da cidadania que terá que suportar sacrifícios do distanciamento social. Bolsonaro, ao contrário, diz que tudo não passa um complô para acabar com a economia e com o governo.

Daqui a pouco teremos um país trancado em casa e o cidadão precisará de um líder para animá-lo, para dar uma visão de futuro. Enquanto a crise se agrava, o presidente anuncia publicamente que dará duas “festinhas” particulares na próxima semana, para comemorar seu aniversário e de sua mulher.  

Exemplar da diferença entre seus pares, um vídeo que circula nas redes sociais mostra como diversos chefes de governo reagiram, começando por Donald Trump, ídolo de Bolsonaro que soube colocar o GPS para recalcular seu itinerário político quando viu que menosprezar o coronavírus colocava sua reeleição em xeque.

Trump, cercado de autoridades civis e militares, declarou “emergência nacional” nos Estados Unidos para combater a epidemia. O primeiro-ministro Boris Johnson, do Reino Unido, disse que esta é a “a pior crise de saúde pública de uma geração”. A chanceler Angela Merkel ressaltou a possibilidade de que até “60% da população da Alemanha” serão contaminados pelo novo coronavírus.

Na França, o presidente Emmanuel Macron classificou a situação como “a mais grave crise sanitária que atingiu a França em um século”. No Japão, o primeiro-ministro Shinzo Abe avisou que o governo não hesitará em tomar “medidas duras” para proteger a saúde dos cidadãos.

Já o presidente Bolsonaro continuava até ontem a classificar de “histeria” a reação à crise, e se dedica a picuinhas menores. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que vem tendo uma atuação competente na gestão das ações de saúde pública, encontra obstáculos desde o primeiro momento da crise devido a questões políticas.

Mandetta teve que pedir permissão a Bolsonaro para encontrar-se com o governador de São Paulo João Dória numa atividade pública sobre o coronavírus. Mesmo assim, Bolsonaro não gostou. Agora mesmo, por ter ido ao Supremo Tribunal Federal (STF) a convite do ministro Dias Toffoli, para uma reunião com os presidentes da Câmara e Senado, Madetta teve que se explicar a Bolsonaro.

Talvez por isso ele não tenha colocado o ministro da Saúde como coordenador do gabinete de crise, dando a tarefa para o chefe do gabinete civil General Braga Neto. Embora esteja deixando seu lado médico prevalecer, o ministro Luiz Henrique Mandetta é deputado federal e tem jogo de cintura para escapar de armadilhas.

Saiu-se bem quando teve que enfrentar questionamentos sobre o comportamento do presidente Bolsonaro ao apertar as mãos de simpatizantes, e conseguiu convencê-lo a manter a proibição dos cruzeiros marítimos de entrarem no país, para conter o Codiv-19.

 Bolsonaro já tem um conselheiro na área, o diretor-presidente indicado para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), contra-almirante  Antonio Barra Torres, que filmou toda a participação do presidente na manifestação de domingo. Ele tem posição divergente à do ministro Mandetta, e defende que não são necessárias medidas drásticas para enfrentar a crise.

Pela decisão do fim da noite de decretar estado de calamidade pública, o contra-almirante Torres perdeu a disputa de poder, para o bem do país.

O Globo, 18/03/2020