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Quando a teoria ajuda a prática

 

Todo texto de caráter científico ou que trate de matéria das ciências utiliza palavras e expressões pertencentes às respectivas nomenclaturas ou terminologias, cujos conceitos devem ser conhecidos por aqueles que desejam ler e compreender o que dizem tais textos técnicos. Por esta razão, quando indagada a quem competia elaborar uma reforma ortográfica, a notável filóloga Carolina Michaëlis de Vasconcelos respondeu: "Evidentemente aos profissionais que se ocupam cientificamente de línguas, sobretudo(...) do idioma pátrio, quer pertençam  à Academia, quer não."

Um texto que fala de ortografia trabalha uma terminologia própria das Ciências da Linguagem, ainda que sejam poucos os termos aí empregados, quase sempre de nosso conhecimento desde os primeiros anos de escola primária e ginasial ou, como hoje se diz, do curso fundamental.

Entre os componentes desta terminologia encontramos 'vogal', 'consoante', 'ditongo', 'classes gramaticais', 'prefixo'. 'sufixo', 'radical', 'falso prefixo', 'aglutinação' etc. Quando escapa ao leitor conceituação correta desta terminologia, a norma ortográfica elaborada pelo autor ou pelos autores do texto técnico pode não ser entendida corretamente, ou até contestada sem razão pelo leitor.

Vimos, por exemplo, nesta coluna de 10/7/2011, como a redução de um radical do tipo de 'bel-prazer' ('bel' por 'belo') e  'és-sueste' ('és' por 'este') foi incorretamente  aproximada a redução de falsos prefixos do tipo de 'autoestrada' ('auto' por 'automóvel') e 'cineteatro'('cine' por 'cinema'). Tal procedimento permitiu ao leitor desavisado  a crítica ao texto oficial do novo Acordo, sob a alegação de que , em ambos os casos, se impunha a grafia com hífen, isto é, se teria de "corrigir" 'autoestrada' em 'auto-estrada', e 'cineteatro' em 'cine-teatro', ambos, portanto, hifenados.

Outro crítico acérrimo  do novo Acordo, mas destituído de preparação teórica para trazer à questão ortográfica sugestões aproveitáveis, condena a "incoerência" do texto oficial de mandar duplicar o 'r' e o 's' finais de 'biorritmo' e 'microssistema' aglutinados, mas separados por hífen 'para-raios', 'guarda-redes', 'para-sol', 'guarda-selos' e asemelhados, esquecendo-se de que, no primeiro caso, temos prefixo (falsos prefixos) e, no segundo, formas nominais e verbais que, quanto ao emprego do hífen, se regem por diferentes princípios. O texto oficial do Acordo, com razão , os põe em situações diferentes quanto ao emprego do hífen.

Cuidado especial há de merecer, também, o caso em que o falso prefixo e o radical apresentam idêntico aspecto formal. O fato sugeriu a uma leitora imaginar possível incoerência em registrar com acento gráfico e hífen as grafias de 'rádio-cassete', 'rádio-gravador' e 'rádio-vitrola', em contraste com as grafias não acentuadas e aglutinadas 'radioamador' e 'radioemissora'. No primeiro caso, tempos compostos formados de substantivos seguidos de outro substantivo ou adjetivos, cujas grafias se regem pelo princípio estabelecido na  Base XV, 1º; no segundo, temos elemento prefixado de origem grega 'rádio' que se aglutina ao segundo elemento regulando-se pelas normas ortográficas estabelecidas para casos  tais. Esta relação de substantivos provenientes do grego ou do latim terminados em 'o' que passam a elementos prefixais de compostos, refereridos na Base XXIX das normas ortográficas de 1945, não foi tratada em extensão no texto de 1990, o que permite surgirem essas indecisões nos usuários.

Entra também no exercício correto da teoria ortográfica conhecer e distinguir as vantagens e desvantagens dos diversos sistemas que fundamentaram uma reforma ortográfica (o etmológico, o fonético e o misto), dos quais o que se tem mostrado inoperante e utópico é aquele no qual um fonema só pode se representado por um único grafema ou letra. Nenhuma ortografia de língua culta no mundo utiliza esse sistema, que tem encontrado no Brasil, radicado em Brasília, um grupo de adeptos que perderam o trem da história. Esse utópico sistema já foi ensaiado em propostas oriundas de Portugal e do Brasil. A pá de cal nesse sistema foi dada por várias autoridades entre nós; escolhemos a lição de Maximino Maciel na edição de 1922 da sua Gramática Descritiva: " Este sistema não pode prevalecer, pois a prosódia do vocábulo varia com os tempos, lugares e os indivíduos, e até no mesmo individuo, de modo que lavrará a anarquia, a confusão, por não haver base menos variável e mais fixa." Este sistema favorece a dialetação e o aparecimento de muitos homônimos e desfigura a língua "o querermos reduzi-la a um acordo de pronúncia e  de grafia."

O Dia (RJ), 31/7/2011