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Para além do emprego

 

No momento em que se discutem reformas estruturais na economia, um artigo do economista José Roberto Afonso,  um dos maiores especialistas em finanças públicas do país, publicado na Revista do BNDES que circula a partir de hoje trata de uma questão colateral à reforma da Previdência que se tornará crucial para nosso desenvolvimento.

Afonso considera a reforma da Previdência necessária, mas insuficiente para lidar com um futuro em que cada vez mais o trabalho não passará por emprego e salário. Ele ressalta que financiar e manter a seguridade social que tinha essas premissas – emprego e salário - é um debate crescente no mundo, que o Brasil ignora e do qual não participa.

Até Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial já alertaram que será preciso um novo pacto social, lembra José Roberto Afonso. No artigo, ele volta ao economista John Maynard Keynes, que foi a base de seu doutorado na Unicamp, mas analisando aspecto que poucos conhecem: ele ajudou a estruturar o chamado estado do Bem-Estar Social, na década de 30 e 40 na Inglaterra, depois copiado pelo resto do mundo, inclusive o Brasil.

José Roberto Afonso lembra que a rede de proteção social adotada em meados do século passado girava em torno do emprego, formalizado no Brasil pela contratação com carteira de trabalho assinada. Empregadores e empregados contribuem sobre o valor de seus salários, que também passa a balizar os benefícios pagos no futuro (aposentadoria), ou antes, em caso de alguma intempérie (uma delas é o seguro-desemprego).

Afonso adverte que “esse paradigma está sendo quebrado pela revolução em curso, na indústria, na economia e na sociedade, que compreende, entre outros fatores, uma intensa automação do processo de trabalho, substituindo trabalhadores por robôs, a economia compartilhada e a do “bico”, com trabalhadores exercendo suas funções sem vínculo contratual, físico e temporal.

 Cada vez mais, escreve ele, trabalho não representará, necessariamente, emprego. Os países precisarão construir um novo pacto ou contrato, social e também econômico, para lidar com essa realidade. Keynes  já alertava que exagerar na tributação de salários desestimularia os empregadores a contratar trabalhadores formalmente. “Qualquer semelhança com a situação no Brasil não é mera coincidência”, ressalta José Roberto Afonso.

Para ele, “é preciso outro arranjo. A única certeza que se têm é que como se está, não mais ficará”. O economista afirma que, na contramão do que os últimos governos têm feito, é fundamental fortalecer arranjos como o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que tem sido desidratado, “não apenas porque o desemprego vai explodir, mas porque é urgente retreinar e requalificar mão-de-obra”.

 José Roberto Afonso diz que até mesmo o lado SENAI/SENAC deveria ser prestigiado. Para ele, “não é a educação que resolverá o desafio, mas habilidades”. A Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne os países mais desenvolvidos do mundo, que o Brasil almeja integrar, tem batido muito nessa tecla, lembra Affonso.

Melhorar o sistema de ensino, para conseguir colocação aos futuros trabalhadores, é fundamental, analisa José Roberto Afonso. Mas, para ele, “será premente também mudar as qualificações de quem já está dentro do mercado de trabalho”. A rede de proteção social aos trabalhadores gira em torno do emprego, e os salários são o referencial, seja para cobrança de contribuições sociais, seja para pagamento de benefícios, como seguro-desemprego e aposentadoria.

José Roberto Afonso assegura que “essa construção será abalada pela revolução econômica e social, que passará pela automação do processo de trabalho e a expansão do trabalho independente”. A realidade nova forçará a renovação do pacto social brasileiro, de modo que o amparo ao trabalhador deverá assumir outras formas que não apenas a carteira assinada, e revisitar o esquema de financiamento aos investimentos.

Para fomentar esse debate, o artigo de José Roberto Afonso resgata as lições de John Maynard Keynes “para iluminar as reformas necessárias para enfrentar o futuro”. Ele chama a atenção para o fato de que quando se examinam as atividades de Keynes entre as vésperas da Segunda Guerra Mundial e os primeiros anos seguintes, “constata-se que deu grande atenção aos gastos sociais e ao orçamento público, em especial, no âmbito de suas atividades como conselheiro governamental”.

 Keynes classificou como ficção o caráter contributivo do sistema, pois seria preciso custear mais do que benefícios ligados diretamente ao trabalhador. Os serviços de caráter geral (como os de saúde) e os eventuais déficits do sistema precisariam ser cobertos pelo Estado – ou, melhor, pelos contribuintes em geral e com recursos oriundos de impostos. Como acontece hoje entre nós.

Um fundo composto pela arrecadação das contribuições (fixadas a cada quinquênio) custearia os serviços médicos, os benefícios de assistência (exceto para crianças) e as pensões (exceto dos ex-combatentes de guerra). Como não conseguiu aprovar um projeto de reforma tributária para aumentar a arrecadação, Keynes contentou-se com mudanças que reduziram a despesa pública futura, como poderá fazer o ministro da Economia Paulo Guedes.

O Globo, 10/04/2019