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Os demônios interiores de Machado

 

Que fazer com Machado de Assis neste começo de milênio? Como enfrentá-lo? Temos de responder a estas perguntas entre agora e 2008. Parece longe? Está perto. É que, em 2008, estaremos comemorando o centenário da morte de Machado. Elevado pelo país que foi dele e é nosso ao comando mesmo da cultura de uma nação, Machado de Assis inventou o Brasil tal como Dante inventara a Itália e Shakespeare determinara a invenção da Inglaterra. Machado criou cada um de nós, formou-nos, plasmou-nos. Com todas as diferenças de nossa heterogeneidade, somos o que Machado de Assis fez de nós.


Quando teria ele começado essa tarefa singular de dar alma a um povo? Ainda é um mistério para muitos dos que nos curvamos sobre sua obra o que teria acontecido em 1881 a Machado de Assis, que então lançava Memórias póstumas de Brás Cubas. Pois de 1872 até então haviam seus livros sido normais, bem-comportados, não muito diferentes dos de outros escritores da mesma geração.


Com Brás Cubas surge não somente um tom novo mas também uma estranha mistura de humor, sátira e jocosidade, num sarcasmo entre sólido e macio, nítido em seus significados e fazendo, antes de tudo, pensar. Mas não só isto, porque Machado de Assis não aceita passivamente o papel de narrador onisciente; na realidade ele penetra por dentro da própria onisciência e deixa o leitor como partícipe do mistério oculto nas coisas, pessoas e acontecimentos. Memórias póstumas de Brás Cubas passou ao largo da crítica brasileira de então porque, embora sendo, como é, um livro eminentemente brasileiro, pega o tragicômico da condição humana como um todo, e nele se aprofunda.


O último de seus livros anteriores, Iaiá Garcia, fora romance ameno, amável, de narração corrida, um capítulo depois do outro, cada um desdobrando a trama, engendrada com propriedade, mas de desenvolvimento facilmente adivinhável, livro que talvez não aparecesse numa sinopse da literatura brasileira se Machado de Assis houvesse morrido em 1880 e fosse aquela a sua última publicação. Críticos brasileiros indagam-se sobre o que teria havido em 1879 ou 80 para que surgisse aquela explosão, aquele autor novo. Seria o mesmo homem? Afirma um desses críticos que, a partir de então, ''Machado liberou o seu demônio interior para começar uma aventura nova''.


A escritora americana Susan Sontag, em prefácio escrito para uma edição das Memórias póstumas de Brás Cubas nos Estados Unidos (onde tem o título Epitaph for a Small Winner), escreve: ''Espanta-me que um escritor de tal grandeza não ocupe ainda, na literatura universal, o lugar que merece''. Continua para dizer, não fosse ele brasileiro, e não houvesse passado a vida inteira no Rio de Janeiro, se fosse italiano ou russo, ou mesmo português, teria ultrapassado esse eurocentrismo literário. Por sua vez, Salman Rushdie acha que ''se Jorge Luís Borges é o escritor que tornou Garcia Marquez possível, então não é exagero dizer-se que Machado é o escritor que tornou Borges possível''.


Ao longo dos 18 anos seguintes que faltavam para terminar o século, publicou Machado mais dois romances que integram, com o Memórias póstumas, o mais importante tríptico da literatura brasileira. Em 1891 saiu Quincas Borba, que fora personagem do romance anterior, e em 1899 publicou-se Dom Casmurro, o Otelo brasileiro, diferente em tudo do outro. Em Machado de Assis, assume o ciúme um ceticismo satírico, não simplesmente cinismo. Em Quincas Borba, um cachorro e seu dono têm o mesmo nome. É o mais pungente de seus livros, embora termine também com uma brincadeira trágica, ou naquilo que o inglês chamaria de jest, quase um abandono final do autor em relação a seus personagens.


Contudo, analisada a obra de Machado, vê-se que o demônio interior já começara a se libertar em muitos de seus contos. Há quem o julgue melhor contista do que romancista. Grande foi a quantidade de narrativas curtas que escreveu. Duzentas ou mais. Delas, muitas compostas antes de Memórias póstumas de Brás Cubas, integram hoje antologias internacionais. Verdade é também que exatamente em 1881 publicou O alienista, que é dos mais altos produtos da contística brasileira, e contos como Cantiga de esponsais, Primas de Sapucaia, Noite de Almirante, A cartomante, Uns braços, Noite de Natal, são todos posteriores a 1883.


A memória brasileira palpita nos livros de Machado de Assis, a memória nua e crua tanto quanto a memória glorificada. A memória do sonho tanto quanto a memória da sombra. Há muito descobrimos que precisamos de ambas, do Brasil lúdico e do Brasil que pensa.


Que faremos para comemorar o centenário da morte de Machado? Teremos de começar, desde já, a estabelecer planos concretos nessa direção. Poderemos partir de uma declaração oficial de que 2008 será O ano de Machado de Assis. Ciclos de conferências e seminários serão realizados por todo o país, reedições de seus livros, tanto a preços populares como em formato de luxo, deverão ser incentivadas, bem como lançamentos de estudos e análises de sua obra.


A Academia Brasileira de Letras, Casa de Machado de Assis, terá uma programação especial. Filmes baseados em livros de Machado serão exibidos, concursos literários de textos sobre o autor e sua obra serão apresentados. Também as crianças brasileiras deverão participar dessa luta pela nossa memória. Não podemos esquecer-nos de que país sem memória está morto, e não sabe. Vamos celebrar Machado. Condignamente.


 




Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 18/05/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 18/05/2005