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O golpe de misericórdia de Gilberto Freyre

 

Quando, em 1933, foi publicado Casa-grande & Senzala, fixava-se o marco irreversível de um novo momento na história dos estudos sociais no Brasil. Com esse livro, o primeiro da grande trilogia freyriana sobre a formação histórica do caráter social brasileiro, assinalavam-se as reflexões e perplexidades diante do que somos nós - os brasileiros - e do que poderemos vir a ser, antes e depois, de Casa-grande & Senzala.


É através do seu primeiro livro de grande fôlego, desdobramento da dissertação do mestrado na Universidade de Columbia, em 1921, que Gilberto Freyre areja o pensamento e a ciência social brasileiros com o que de mais novo havia à época nos campos da sociologia e da antropologia cultural. Ele nos livra do bolor dos preconceitos oitocentistas, então dominantes entre os nossos intelectuais, a respeito do nosso povo e das suas potencialidades: o equívoco do determinismo racial, ao modo de Gobineau, Lapouge, Agassiz, Amon e Chamberlain, e a falácia, não menos perniciosa, da impossibilidade do surgimento de grandes civilizações em áreas tropicais - o determinismo geográfico. Casa-grande & Senzala constitui, assim, o golpe de misericórdia nos pressupostos eurocêntricos que fundamentavam uma visão sombria do futuro do Brasil.


Se, em Retrato do Brasil, Paulo Prado sucumbe ao fatalismo das conseqüências de uma suposta tristeza essencial do brasileiro; e se Mário de Andrade, com Macunaíma, não consegue ir além da perplexidade diante do ''herói'' de um povo ''sem nenhum caráter'', é Gilberto Freyre quem, através de Casa-grande & Senzala, descortina ao brasileiro, graças à perspectiva culturalista haurida no contato com Franz Boas, seu mestre em Columbia, uma compreensão nova de si mesmo e das suas potencialidades como povo e nação; uma autocompreensão, ao mesmo tempo, cientificamente realista e otimista. Otimista, cabe ressaltar, porém sem nenhuma marca, por leve que fosse, de ufanismo ingênuo ou oportunista.


Decorridas sete décadas da publicação de Casa-grande & Senzala, lançado em 1933, e Sobrados e mucambos, em 1935, e mais de 40 anos do aparecimento de Ordem e progresso, lançado em 1959, cabe perguntar: como a peculiar abordagem sociológica de Gilberto Freyre e sua maneira pessoal de entender o social e o sociológico se situam diante das mais recentes tendências da sociologia? Estariam superados os seus métodos e pressupostos teóricos?


Se, de um lado, são inegáveis a complexidade da abordagem freyriana e seu permanente desafio a estudiosos e exegetas - numa complexidade que levou Dante Moreira Leite ao equívoco da conclusão de que ''não é possível identificar um ponto de vista bem definido na obra de Gilberto Freyre, nem identificar o método por ele empregado para chegar às suas afirmações'' -, de outro lado, como bem o demonstrou o sociólogo Sebastião Vila Nova, em ensaio obrigatório a quem pretenda conhecer profundamente o pensamento de Gilberto Freyre, é inquestionável a presença nítida de algumas linhas teórico-metodológicas, além de epistemológicas, que, de modo coerente, sustentam a sua abordagem.


O primeiro entre os pressupostos básicos da sociologia freyriana é a relevância do cotidiano e, em conseqüência, do indivíduo, não só como objeto, mas como sujeito e protagonista da história e da sociedade. E não será esta uma das tendências mais assinaláveis na sociologia contemporânea? É o que vêm demonstrando, por exemplo, correntes como o individualismo metodológico, entre os seguidores de um marxismo crítico, como igualmente exemplifica o crescente interesse, entre sociólogos franceses, pela técnica da história de vida.


É que, destoando dos grandes clássicos europeus - sobretudo Marx e Durkeim, mas, também, Weber - notoriamente voltados ao estudo das instituições sociais, entendia Gilberto Freyre que não é possível penetrar nas sutilezas do social sem atender ao lugar do cotidiano, do individual e do psicológico na configuração da sociedade. Isto não significa que Gilberto tenha negligenciado a dimensão da sociedade e da cultura. Que sociólogo mais do que ele terá combinado com tão refinado esprit de finesse os métodos de abordagem dos fenômenos sociais em sua dupla dimensão macro e micro-estruturais? Constituem eles, aliás, questão de crescente importância nos círculos sociológicos da atualidade, uma questão à qual Gilberto não somente esteve presente, mas também soube enfrentar, com ''engenho e arte'', na análise das situações sociais em sua grandiosa trilogia sobre a sociedade brasileira.


Daí talvez a sua recusa aos insistentes convites para ocupar cátedras em universidades americanas e inglesas, que preteriu para manter-se fiel à sua pernambucanidade, ao seu Recife muito querido e ao seu refúgio de Apipucos, com arraigada lealdade à obra de escritor e de sociólogo. Suas idéias estão hoje mais atuais do que nunca, como inesquecível contemporâneo e como inexcedível intérprete do Brasil.


A preocupação com o que Edgard Morin denomina ''pensamento complexo'' representa evidência inequívoca da alta relevância desse problema nas ciências sociais da atualidade. E que sociólogo terá concretizado tão exemplarmente a proposta do ''pensamento complexo'' quanto Gilberto Freyre, ele próprio um espírito que conjugou não somente diferentes abordagens científicas do social, mas, até mesmo, recorreu ao artístico e ao poético para melhor compreender os fenômenos que estudou?


Finalmente, a atenção de Gilberto à ecologia, que o levou à Tropicologia, representa uma antecipação pioneira do autor de Casa-grande & Senzala sobre a maior atualidade das ciências sociais, a exemplo do trabalho de um Ignacy Sachs e, entre nós, de José Bautista Vidal, ao destacarem a extraordinária relevância econômica dos Trópicos para o futuro da humanidade.


Jornal do Brasil (RJ) 15/12/2004

Jornal do Brasil (RJ), 15/12/2004