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O Brasil imaginado

 

Talvez o Brasil precise de um pouco mais de mau-humor e receio do futuro para realizar suas utopias, como comentou o historiador José Murilo de Carvalho, coordenador do ciclo de palestras “Futuros do presente: o Brasil imaginado” em que a Academia Brasileira de Letras vem debatendo os diversos aspectos do nosso projeto de país.

O ex-presidente e acadêmico Fernando Henrique Cardoso abriu a série, destacando a importância do “soft power” no mundo atual, seguido pelo ministro-interino da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) e presidente do IPEA Marcelo Neri, que falou sobre o futuro social do país, e pelo professor da USP Jacques Marcovitch, que abordou o futuro internacional. O ciclo se fecha na terça-feira com a palestra do escritor Silviano Santiago, prêmio Machado de Assis 2013 da ABL, sobre o futuro cultural.

O comentário de José Murilo se deveu a dois tópicos dessas palestras, pois Neri ressaltou que o Brasil é heptacampeão em felicidade futura, de acordo com pesquisas em 160 países, e Marcovitch que os países que mais se destacaram nos últimos anos na capacidade de enfrentar a crise econômica e de se readaptar ao novo mundo multipolar que vem sendo redesenhado têm entre as características comuns a consciência dos riscos que correm, “uma sensação de risco que leva a que pensem estrategicamente”.

Marcelo Neri separou os grandes avanços alcançados pelo país nos últimos 50 anos por décadas, ressaltando uma curiosidade: todas as grandes transformações ocorreram em anos terminados em 4: o golpe de 1964, inaugurando um período de crescimento econômico, com aumento da desigualdade e falta de liberdades políticas; em 1974, depois do choque do petróleo no ano anterior que impactou a economia, começa a abertura política; processo lento que atinge o ápice em 1984 com a campanha das “Diretas Já”, iniciando uma década da redemocratização, mas da instabilidade política e econômica.

As décadas seguintes foram a da estabilização, com o Plano Real em 1994, e a da redistribuição de renda e queda da desigualdade, a partir de 2004 com a eleição de Lula no ano anterior, e o surgimento do que ele chamou de “a nova classe média”. “Agora, temos as manifestações e não sabemos o que esperar para 2014”, ressaltou, salientando que as reivindicações das ruas refletem as prioridades brasileiras atuais: melhoria na saúde e educação, e combate à corrupção.

Dar mais acesso aos serviços do estado, este deve ser o objetivo do futuro: “Colocamos uma massa de brasileiros no mercado, e agora temos que dar mais mercado para essas pessoas”. O professor Marcelo Neri chamou a atenção para novas pesquisas internacionais que mostram que, embora a felicidade e a renda tenham correlação muito próxima, no Brasil ela é menos forte.

“Somos felizes como fator cultural, o otimismo é nossa característica”, disse, citando uma pesquisa sobre a satisfação com a vida nos próximos 5 anos, na qual o Brasil se sagrou o “heptacampeão mundial de felicidade futura”.

Já o professor Jacques Marcovitch, de relações internacionais, ex-reitor da USP, salientou a necessidade de o país ter uma visão estratégica para alcançar seu lugar no futuro, que deve ser “nossa luta de todos os dias”.

Marcovitch buscou países que “podem ajudar a pautar nossa agenda de construção do futuro” entre aqueles que têm conseguido melhorar sua situação no período de 2008 a 20012, apesar da crise. Países que do ponto de vista do bem-estar, de segurança, de inovação, de capacidade de integrar vários segmentos sociais, conseguem superar os problemas.

Entre eles, Austrália, Israel, Holanda, Hong Kong, Coréia, Singapura. Estão também na lista dos que têm as melhores universidades do mundo, “o que revela a preocupação com as próximas gerações, com a inovação, com as humanidades, a cultura”.

Esses seriam “estados estratégicos”, países capazes de se reposicionar rapidamente, com capacidade de inovação tecnológica. Alguns deles, apesar de permanentemente ameaçados, conseguem se manter no topo da lista por terem consciência dos riscos que o país corre, riscos ambientais, na área de segurança, econômicos.

São países que têm uma forte identidade cultural e se destacam pela qualificação de sua governança, sua compreensão da dinâmica internacional e capacidade de perceber as necessidades internas. Marcovitch destacou “a capacidade de perceber e de transmitir a seus cidadãos as perspectivas reais dos riscos que esses países correm. Essa consciência de risco passa a se constituir em uma agenda de prioridades”.

O Brasil, pela sua dimensão continental, precisaria criar mais espaços de reflexão fora do centro-sul, e pensar seu futuro a partir das especificidades de suas regiões: “A construção do futuro depende da conexão entre academia e sociedade na construção de um sonho, de uma utopia”.

O Globo, 25/8/2013