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O Acordo por dentro e por fora (III)

 

Para o trabalho de implantação do Acordo de 1990 na 5ª edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) de 2009, a equipe técnica da ABL que assessora a Comissão de Lexicologia e Lexicografia teve de levar em conta, além do texto oficial, como seria esperado, a tradição ortográfica que se vinha fixando desde a reforma de 1911 e dos sucessivos Acordos Acadêmicos a partir de 1931, conforme historiamos nos dois primeiros artigos desta série.

Vale a pena insistir que as decisões de 1990 não passavam de um "acordo" - e não se tratava de uma "reforma"- para, na medida do possível, negociar os pontos discordantes remanescentes das propostas de 1943-1971, ligadas ao Brasil, e de 1945-1973, ligadas a Portugal. Tudo o que corria comumente constituía a tradição ortográfica que deveria continuar vigente e, por isso mesmo, estaria ausente, em rigor, do texto oficial. Por isso, as chamadas "inovações" ou "desrespeitos" de que a ABL tem sido recriminada a até ameaçada de processo judicial se prendem a ter a Casa de Machado de Assis ficado fiel a essa tradição ortográfica vigente que, como dissemos, não foi posta na mesa de negociação pelos signatários do Acordo de 1990.

Tomemos alguns exemplos elucidativos. O novo texto antecipa a preocupação dos ortógrafos com a grafia das denominações de espécies botânicas e zoológicas, objeto do futuro vocabulário ortográfico comum relativo à terminologias científicas e técnicas previsto no  Artigo 2º. Conforme a tradição, os compostos de dois substantivos, unidos ou não por preposição, eram hifenados:"arcebispo-bispo", "mesa-de-cabeceira". Já no Acordo de 1990, dispensa-se o hífen se houver preposição separando os dois componentes; portanto, "mesa de cabeceira" sem hífen. Todavia fez-se no Acordo uma exceção: se se tratasse de denominações de espécies botânicas ou zoológicas, a presença de preposição ou outro elemento não dispensaria o hífen; "couve-flor", "erva-de-chá", "bem-me-quer", "cobra-capelo", "cobra-d'água", "bem-te-vi" (Base XV, 3º).

Ora, em casos de compostos que, além de incluídos nessa exceção, também se aplicam a outras noções, que não a espécies botânicas e zoológicas, adotamos, na 5ª edição do VOLP, a regra geral neste último caso. Assim , um composto como "bico-de-papagaio" seria hifenado quando espécie botânica, mas "bico de papagaio" sem hífen, quando aplicado a 'nariz adunco' ou 'saliência óssea'; "não-me-toques" com hífen quando se refere a certas espécies de plantas, e "não me toques" sem hífen com o significado de 'melindres'. Nossa decisão foi acompanhada pelo linguista dr. João Malaca Casteleiro, integrante da equipe dos negociadores portugueses, quando orientou o Vocabulário Ortográfico da Porto Editora, saído depois do VOLP.

Outro caso de hifenização ocorreu na Base XVI, 1º, b), em que se exige este sinal gráfico no encontro de duas vogais iguais, no final do prefixo ou pseudoprefixo e no início do segundo elemento: "anti-ibérico", "contra-almirante", "auto-observação", "micro-onda", etc. Esqueceu-se o texto oficial de que sempre houve encontros deste tipo não hifenados na tradição ortográfica brasileira e luso-africana, como são: "preeminência", "preencher", "reedição", "reeleição", etc. Esta lição no novo Acordo fez que alguns editores supusessem que agora se escreveria re-eleição, re-edição, etc., contrariando a larga tradição vigente na ortografia do idioma. (CONTINUA)

 O Dia (RJ), 11/9/2011