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Na ilha com Fidel

 

Com a era Fidel se esvaindo em Cuba, enfrentamos uma fartura de depoimentos sobre o país e o Comandante.


Resolvi contar um pouco da experiência do seu convívio, por dez dias, em 1988, tanto na Havana, assombrosa ruína em seu centro histórico, a despeito da UNESCO, quanto na simbólica Santiago.


Este filme ainda corre pelos meus olhos quase nítido, desafiando a memória péssima, o desamor a tomar notas, numa postura de escassez que me prejudica. Muito vi, muito escutei e quase tudo esqueci, ao longo da vida. Continuo assim e talvez pior com o acúmulo dos tempos, dos anos, das horas.


Não desejo tratar da política em Cuba, já que nunca fui de bater palmas para o espichado do período fidelista e isso, ainda que refreie, pode mascarar meu diagnóstico.


Do que vi por lá só aplaudo educação e saúde. O demais é ruim, quando não absurdamente inaceitável, como a questão da liberdade, dos direitos humanos. Saúde e educação, louváveis. Tudo mais é resto.


Mas estou a mencionar o que não objetivo. Quero é dizer da personalidade envolvente do Comandante. Estive, naquela temporada, algumas vezes junto dele, ouvindo-o quase em privado. Éramos poucos. Minha mulher, Roseana Sarney, Tereza Duere (inesquecível a sua emoção nos encontros com o ídolo), o jornalista Antonio Lima e mais duas ou três pessoas. Daí o desfrute de alguma intimidade. Beber rum de sua adega particular; comer lagosta à mesa dele; tentar responder um questionário centopéico; ver seus olhos brilharem ao escutar violão tocado por brasileiro; falar muito bem de José Sarney e muitíssimo mal de outro prócer político sulista; observar o sulco na cadeira preferida, a de braços de couro, cavado com a longa unha; constatar o paranóico aparato de segurança (Disse-me: “Só me senti seguro em N. York, nas conferências da ONU. Lá, não queriam me matar. Lá, não”); a voz dissonante para o porte agigantado do esportista de caça submarina. São muitos os detalhes desse filme que não esqueci, como a respeitosamente afetuosa atenção com as mulheres do nosso grupo, a quem distinguiu com palavras e presentes. No embalo, ganhei rum que ostenta envelhecimento de 50 anos e charutos fantásticos, segundo me disseram Arraes e Francisco Brennand, a quem os repassei. Hoje, José Paulo Cavalcanti seria também herdeiro...


Ouvi-o em cena aberta. Discurso de mais que três horas, no 26 de julho, em Santiago. Acerquei-me da tribuna para ver se havia notas no púlpito, tomado de espanto por tanta estatística. Nem uma papeleta. Levei foi um “chega prá lá” da segurança, que nem tomou conhecimento de ser parte da tribuna de honra, de integrar um grupo seletíssimo de convidados. Alguns desses, chefes de Estado. Empurraram-me. Duzentas mil pessoas, na praça, sideradas. Olhos e ouvidos abertos para a pregação bipolar: louvor desmedido e ataque arrasador, dependendo de quem fosse o outro.


Na chegada a Santiago, por ordem dele, um sobrevôo bem baixo da Sierra Maestra; na chegada a Havana, a presença de ninguém menos que a cunhada Vilma Espín, a simpática esposa do sisudíssimo Raul Castro, que os dias inteiros se desdobraria em atenção aos visitantes brasileiros.


Fidel, ao me saber pernambucano, exaltou Nabuco e sua descendência, particularizando carinho pela obra do escritor e por Maria do Carmo que, sendo nora de Nabuco, também era irmã de Afonso Arinos. Fiquei feliz.


Pois é, de tantos chefes de Estado estrangeiros com quem tive algum tipo de diálogo, seja Gorbachev, Deng Xiao Ping, Frondizi, Fujimori, Reagan, Pinochet, Carter, Mario Soares, Sanguinetti, Prodi e outros mais, dois deles imprimiram em mim traços para sempre: João Paulo II e Fidel Castro.


Que dupla!


Jornal do Commercio (RJ) 12/5/2008