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Na fronteira dos valores

 

Machado de Assis, primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, ensinou no discurso da fundação que a instituição precisa do apoio de todos, que a tradição é o nosso primeiro voto; que ele deve perdurar, e que o passemos aos sucessores como o pensamento e a vontade iniciais. Por isso, o objetivo não apenas meu, mas de toda a diretoria, não é impor idéias, mas conduzir a vontade de todos, claro que sem perda de um só milímetro do espaço das competências.


O novo olhar sobre os problemas do desenvolvimento parte da perspectiva do conhecimento, cuja gestão acelera a geração de novos saberes e sua incorporação sob a forma de inovações, com o deslocamento da fronteira dos valores.


Este é o século do conhecimento, seja como técnica, seja como informação. Há uma partição do conhecimento com o fosso a separar ciências e humanidades. Há uma divisão que a evolução do saber vem agravando, pelas crescentes incompreensões, resultando no risco de que se sabe mais e mais sobre menos e menos, quase tudo sobre quase nada.


A idéia de civilização refere-se aos valores reconhecidos, estendidos por toda a humanidade. Implica e contém a idéia de progresso. O homem civilizado opõe-se ao homem primitivo. Já a idéia de cultura revive no presente o ''passado eterno''. Se a civilização tende a apagar diferenças pela pasteurização, a noção de cultura sublinha as diferenças para bem refletir a consciência de nação, de pátria como um pertence.


À Academia Brasileira de Letras compete participar do humanismo compatível com este século do conhecimento. Seu papel é preservar e valorizar a memória nacional: a língua como instrumento do conhecimento e da convivência; as letras como reveladoras/formadoras da identidade nacional; a cultura preservada e habilmente inserida em processo civilizatório que seja também caracteristicamente brasileiro. Sem deixar de fora nada do que é humano: a ciência, que reside no espírito, que observa e explica; e a poesia, que habita a alma, que sente e compreende.


Para tanto, creio, a Academia deve propor e liderar um sistema básico de referência para a compreensão e valorização da cultura brasileira. Fazê-lo não a partir de uma concepção restritiva de cultura, mas de um conceito dela amplamente antropológico: abarcando todo o pensar, o agir, o fazer humano, quando motivados por valores. E valores não apenas estéticos ou históricos; também os geradores das muitas habilidades, inclusive técnicas utilitárias, populares. Fazê-lo não como simples testemunha do passado, mas a partir de uma visão dinâmica da cultura, de uma cultura ''viva'', libertadora, integradora. Inserida em uma projeto nacional que se inspire em um novo e transformador humanismo.


Uma nova política cultural para o país, nela inserida uma política de valorização e uso da memória, deve contrapor-se à pressão homogeneizadora da globalização, mas sem os cacoetes do oposto tribalista. A globalização pode ameaçar a identidade nacional, ameaçar a própria língua, veículo por excelência da construção social de uma realidade autenticamente brasileira.


Para essa defesa da língua e da cultura a Academia contará com o apoio das suas congêneres nos nossos estados, cujos laços vamos estimular e promover.


Vamos também ampliar significativamente a divulgação, por todo o Brasil, do que fazemos em nossa Casa e o que fazem dentro e fora dela os nossos acadêmicos. Pretendemos estimular o diálogo da ABL com a sociedade brasileira que será o alvo e o estímulo permanente para a nossa caminhada.


Vamos buscar o apoio das empresas, das universidades, das ONG's, das bibliotecas, dos museus, dos teatros, das empresas de comunicação, das entidades literárias e culturais e das estruturas governamentais para que, juntos, possamos combater o bom combate em benefício do povo e da cultura do país.


Alceu Amoroso Lima disse ao tomar posse, em 1935, que são complementares e de duas ordens as funções literárias da Academia: de tradição e de manutenção do que ficou de bom; de criação e de renovação da cultura nacional. É lição permanente e atual.


Se o futuro é um chamamento, estamos prontos para ele. Se o futuro é um sonho, é boa a sua fisionomia. Ouço a Maria Rita cantar que a alegria quem dá é Deus e que a tristeza é a gente quem faz. Deus deu-me a alegria desta hora, evitarei a outra parte, pois quero ter, na presidência da ABL, sempre presente a lição de dom Hélder Câmara:


''É graça divina começar bem. Graça maior, persistir na caminhada certa. Mas a graça das graças é não desistir nunca''.


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 18/1/2006